Migalhas de Peso

Competência legislativa e a definição de produtos essenciais nas relações de consumo

Estado de Rondônia promulgou lei que define quais produtos são essenciais, conceito que atualmente é lacuna no CDC sendo suprido caso a caso. A discussão sobre a competência é objeto da ADI 6665.

22/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

A partir da década de 90, a legislação brasileira sofreu alterações substanciais, tendo por escopo modernizar ou unificar temas que antes eram tratados de forma esparsa. Nesse contexto, considerando as evoluções e mudanças que ocorreram nas relações de consumo, iniciamos a década com o CDC.

Assim, ainda que pudéssemos discorrer sobre a eficácia desse diploma legal, considerando que alguns aspectos não mais se aplicam ao perfil consumerista dos dias atuais, não será o nosso objetivo – não neste momento. Explicamos. 

Recentemente, a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica – ABINEE, propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, em face da lei 4.878 de 27 de outubro de 2020, do Estado de Rondônia, precisamente seus artigos 1º e 2ª, que dispõe sobre os produtos essenciais tratados no Código de Defesa do Consumidor, lei Federal 8.078, de 11 de setembro de 1990.

Os artigos, tanto da lei Estadual e Federal, tratam do Direito do Consumidor nos casos de vícios de produtos, duráveis ou não duráveis, de qualidade e/ou quantidade, que tornam o produto impróprio ou inadequado ao consumo ou, ainda, haja diminuição no valor, prevendo o direito ao consumidor de exigir a substituição/reparo das partes viciadas do produto.

Especificamente, em caso de vício do produto, o Código de Consumidor aduz no art. 18, parágrafo primeiro, alíneas de um a três, que, caso o vício não seja sanado no prazo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha, as seguintes possibilidades:

I – a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;

II – a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III – o abatimento proporcional do preço.

Mais adiante, no parágrafo terceiro, traz ainda a faculdade do consumidor utilizar das possibilidades acima descritas de forma imediata se, em virtude da extensão do vício, a substituição das partes viciadas do produto comprometerem a qualidade ou a característica no produto, ocorrer em diminuição do valor (desvalorização) ou nos casos de produtos essenciais.

O grande ponto crítico é que o CDC não define o que seja “produto essencial” e, diante da lacuna, o conceito foi sendo delimitado por meio da doutrina e jurisprudência, até chegarmos a ideia de que bem essencial é “aquele que possui importância para as atividades cotidianas do consumidor ou que foi comprado para um evento específico que irá ocorrer em breve. Em síntese, a análise da essencialidade do produto deve se pautar nas necessidades concretas do consumidor” (Ministro Herman Benjamim).

Todavia, embora a essencialidade seja analisada de acordo com caso concreto, alguns produtos e serviços já são visualizados pelo ordenamento jurídico como fundamentais para as atividades do cotidiano, tais como: alimentos, medicamentos, fornecimento de água, energia elétrica e serviços de telecomunicações.

Pois bem. E onde está inserida a lei 4. 878/20 do Estado de Rondônia, mencionada inicialmente? A norma, decretada pela Assembleia Legislativa do Estado e promulgada pelo Governador, tem como enfoque principal dar entendimento aos produtos considerados essenciais na ausência da distinção pelo CDC.

Portanto, no art. 1º da lei Estadual, restou estabelecido como produto essencial os seguintes itens:

I - geladeira;

II - fogão;

III - máquina de lavar roupa;

IV - cama e/ou colchão;

V - celular;

VI - computador pessoal; e

VII - equipamento para tratamento médico.

Além de estabelecer que os itens são essenciais, podendo o consumidor escolher de forma imediata, sem a necessidade de aguardar o prazo de trinta dias para que seja sanado o vício, a Lei prevê a aplicação de multa em caso de descumprimento de até 41 (quarenta e um) UPF’S por autuação, a ser aplicada pelos Órgãos de defesa do consumidor e revertida ao Fundo Estadual de Defesa do Consumidor – FUNDEC.

Para materializar a multa acima, sinalizamos que uma Unidade Padrão Fiscal (UPF) para o Estado de Rondônia, por meio da Secretaria de Estado de Finanças – SEFIN, prevê o valor de R$ 92,54 (noventa e dois reais e cinquenta e quatro centavos). Portanto, a multa atingiria o patamar de R$ 3.794,14 (três mil, setecentos e noventa e quatro reais e quatorze centavos).

Nesta esteira, a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica – ABINEE propôs ADIn, encaminhada ao STF, requerendo a concessão de medida liminar para suspender os efeitos dos dispositivos da Lei estadual 4.878/2020 de Rondônia, que entrou em vigor em 26 de janeiro de 2021, e, ao final, torná-la nula integralmente.

A essência do debate versa sobre competência. A Assembleia Legislativa de Rondônia teria extrapolado sua competência legislativa concorrente para legislar sobre produção e consumo e sobre responsabilidade por dano, por ser uma matéria regulada por lei Federal (CDC), ou seja, o exercício da competência legislativa concorrente dos Estados não pode derrogar o direito federal.

A CF distribui as competências em vertentes privativa, comum e concorrente entre os entes federados, sendo rol taxativo listado da seguinte forma: no art. 22 a competência legislativa privativa da União, no art. 23 a competência comum e no art. 24 a competência concorrente da União, Estados, do Distrito Federal e Municípios.

Cumpre informar que o Congresso Nacional, através do projeto de lei 3256/19, prevê alteração no art. 18 da lei 8.078/90 (CDC), para dispor sobre a essencialidade de um produto, como sugestão acresce ao parágrafo terceiro o seguinte texto:

§ 3º - A. Entende-se por produto essencial aquele cuja demora para ser reparado prejudique significativamente as atividades diárias do consumidor e o atendimento de suas necessidades básicas.

§ 3º - B. Os produtos utilizados como instrumento de trabalho ou estudo, os equipamentos de auxílio à locomoção, à comunicação, à audição ou à visão, assim como aqueles destinados a atender as necessidades e a promover a plena inclusão social de pessoas com deficiência são considerados essenciais.

Cumpre salientar que o texto foi alterado pelo Senado Federal, em 06 de abril de 2020, e encaminhado à Câmara dos Deputados para revisão.

Ademais, a referida Ação ainda será passível de análise, e caberá ao STF realizar o controle de constitucionalidade, todavia, alguns pontos de indagação a referida lei estadual são necessários. Inicialmente, os casos considerados essenciais pela lei serão taxativos?

Cabe pontuar que há uma tendência, especialmente brasileira, de codificar todas as situações cotidianas. Assim, temos hoje um ordenamento jurídico imensurável, e que por muitas vezes, ao tentar conceder previsão a todas as situações, não consegue trazer eficácia real as leis que promulga, nem mesmo identificação entre a sociedade e seu texto. Questionamos: é imprescindível preencher todas as lacunas e conceitos, considerando a velocidade que a sociedade e suas relações têm se modificado?

Apenas para reflexão, citamos o constitucionalista Lassale, que em sua obra “A Essência da Constituição”, traz a distinção entre a Constituição Real/efetiva e a Constituição jurídica. Nesse sentido, a segunda não passaria de mera folha de papel que deve necessariamente refletir a primeira. Caso elas se divorciem, as escritas se tornariam “ilegítimas”, e seu pensamento aduz que “nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder”.

Também, devemos considerar que a Lei Estadual de Rondônia poderia trazer prejuízos à uma parcela consumerista do estado, sendo que a tipificação acarretaria uma excludente de outras possibilidades de produtos essenciais, que já são analisadas no caso concreto em virtude de a lei Federal (CDC) e entendimento jurisprudencial. Ainda nesta seara, cada Estado poderia delimitar os bens essenciais para atender sua regionalidade?

Por fim, cabe destaque a aplicação de penalidade pecuniária prevista na Lei, a ser aplicada pelos Órgãos de defesa do consumidor, posto que neste ponto a Superintendência Estadual, por meio do Procon, já realizam a fiscalização e aplicação de multas pecuniárias em caso de infrações cometidas contra o direito ao consumidor, também revertidas para o Fundo Estadual de Defesa do Consumidor, portanto, daria margem para ocorrer a repetição da punição sobre o mesmo fato - bis in idem.

Ressaltamos que o tema não está consolidado, considerando que ainda será passível de análise pelo STF e, mesmo que pendente de apreciação, nos traz a oportunidade de repensarmos as relações de consumo, quem são os consumidores e fornecedores da atualidade, bem como o nosso papel no aperfeiçoamento da legislação que servirá para reger nossas interações na sociedade.

Marcus Renato Souza Caribé
Advogado líder da MoselloLima Advocacia, especialista em Direito e Processo do Trabalho e Direito e Processo Civil.

Lorena Faria Batista
Advogada líder da MoselloLima Advocacia, especialista em Políticas Públicas, Direitos Sociais e Coletivos.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024