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Negativa de fiança não significa inafiançável: Prisão de Daniel Silveira

A prisão do deputado Daniel Silveira se fundou no suporto crime ser permanente, portanto possível o flagrante, e se tratar de crime inafiançável. Assim, estariam atendidos os requisitos constitucionais para quebra da imunidade formal do membro do congresso nacional. Entretanto, a inafiançabilidade não ocorre, sendo apenas uma hipótese de negativa de fiança.

18/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

As palavras proferidas pelo deputado Daniel Silveira são inaceitáveis. Seus atos e incitação à violência conta os poderes constituídos, menos ainda. A democracia e a Constituição devem ser defendidos. Porém, jamais sacrificando a própria constituição.

O deputado foi preso em 16/02/21 por ordem do ministro Alexandre de Moraes, pela suposta prática das condutas descritas no artigos 17, 18, 22, incisos I e IV, 23, incisos I, II e IV e 26, todos da lei 7.170/73 (lei de Segurança Nacional).

A flagrância foi justificada afirmando se tratar de crime permanente. Certa ou errada, é uma interpretação possível vez que, como afirmando, os vídeos continuam disponíveis. Se os vídeos são a consumação prosseguindo no tempo, ou se as visualizações se tratam de exaurimento, com o delito se consumando no ato de disponibilização do vídeo, é algo que com certeza será objeto de ampla discussão acadêmica e doutrinária. Mas, como dito, é uma interpretação possível.

Mas, de acordo como §2° do art. 53 da Constituição da República, além da prisão ser em flagrante, há um segundo requisito para que um membro do Congresso Nacional possa ser preso: ser o crime inafiançável. Conforme as lições de Bernardo Gonçalves Fernandes (2020, p. 1272-1273):

A imunidade formal traduz-se, em termos gerais, na possibilidade dos deputados e senadores não serem presos (ou não permanecerem presos), ou ainda, na possibilidade de sustação de ação penal contra deputado ou senador por crime praticado pelos mesmos após a diplomação. (...)

Nesse sentido, há exceção presente na própria norma constitucional que permite a prisão. Essa será no caso de prisão em flagrante, por crime inafiançável em que os deputados e senadores poderão ser presos.

Eis o problema. Trata-se de crime inafiançável? A lei 7.170/73 nada fala. A lei 8.072/90 (lei de Crimes Hediondos), também não. A Constituição também não apresenta, nos incisos do artigo 5° que tratam de crimes inafiançáveis, especificamente os incisos XLII, XLIII e XLIV, nenhuma hipótese cabível no caso. Como se poderia, então, justificar a prisão do deputado?

Para tal, o ministro da suprema corte recorreu a uma disposição do Código de Processo Penal sobre a possibilidade de concessão de fiança. O artigo 324 do CPP traz hipóteses em que “[n]ão ser[a, igualmente, concedida a fiança”, cujo inciso IV fundamentou a decisão do ministro. Vejamos, então.

Inicialmente, salta ao olhos a palavra “igualmente”. Ela nos remete ao artigo anterior, 323, que traz hipóteses em que não será, absolutamente, concedida a fiança, e é elencado um rol de crimes. Racismo, tortura, tráfico, terrorismo (os 3 Ts) etc. Todos os incisos do artigo 323 trata de crimes. Ou seja, do tipo pena atribuído.

Já o artigo 324 não trata de crimes, mas de circunstâncias onde não será concedida a fiança. Nesse sentido, Aury Lopes Jr. (2017, p. 199) separa tais artigos entre crimes inafiançáveis e situações de inafiançabilidade.

A leitura dos incisos em questão é clara de que não se trata de crimes inafiançáveis, mas sim circunstâncias que impedem a concessão, como anterior quebra de fiança. Entre elas, a circunstância invocada: “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva”.

A interpretação feira pelo eminente ministro não sobrevive aos mínimos critérios hermenêuticos. A Constituição é taxativa de que a prisão é autorizada pelo “fragrante de CRIME inafiançável”. E não de negativa de fiança.

Aceitar que a incidência da hipótese do artigo 324, inciso IV, ou mesmo qualquer outro inciso do referido artigo, torna o crime inafiançável significa dizer que qualquer crime que presença os requisitos dos artigos 313, nas circunstâncias do artigo 312, são inafiançáveis. O número de crimes inafiançáveis se tornaria imenso. Exempli gratia, Furto Noturno (art. 151, §1°) seria crime inafiançável.

O inciso IV do artigo 324 trata unicamente de uma situação fática, e não típica.

Por fim, o inciso IV deve ser contextualizado, no sentido de que, se presentes os requisitos e fundamento para a prisão preventiva e sendo ela necessária, não se concederá liberdade provisória com fiança. A necessidade da prisão preventiva é incompatível com a fiança, por elementar, pois são situações excludentes. (LOPES JR., 2020, p. 757)

A necessidade da prisão preventiva antecede o inciso IV. Como a Constituição veda a prisão para crimes afiançáveis (que são a regra), já traz consigo o não cabimento para os demais casos. Dizer que a necessidade gera o cabimento leva a uma tautologia, onde o resultado justifica o seu fundamento. O artigo 312 é o último filtro de admissibilidade, só sendo possível depois que todas os critérios anteriores foram preenchidos.

É um assassinato hermenêutico, e um atentado contra a própria Constituição que, nos incisos XLII, XLIII e XLIV traz um rol taxativo de crimes inafiançáveis. Taxativo pois a fiança é regra. A liberdade é regra, e a prisão é a exceção. E mesmo o rol constitucional é passível de expansão por instância infraconstitucional, via a lei de Crimes Hediondos.

Conforme leciona Renato Brasileiro de Lima:

Quando se compara a antiga redação do art. 323 com a nova, fica evidente o quanto o legislador quis revigorar o instituto da liberdade provisória com fiança. Tanto é verdade que houve uma diminuição dos crimes inafiançáveis, o que reforça o entendimento de que, doravante, a regra será a concessão da liberdade provisória com fiança, cumulada (ou não) com medidas cautelares diversas da prisão do art. 319 do CPP. (LIMA, 2020, p. 1173)

Em que caibam todas as críticas ao discurso proferido pelo deputado, esta reescrita do excepcionalíssimo instituto da inafiançabilidade é, igualmente, um ataque à Democracia, ao Estado, às Instituições e, principalmente, à Constituição.

Não podemos jamais jogar o bebê fora com a água do banho. Não podemos atacar a Constituição sob o discurso de sua defesa. Independente da situação de (in)afiançabilidade da sua prática, os crimes imputados não são inafiançáveis. Se o nosso papel é defender a Constituição, devemos defender sempre. Defender quando concordamos com o que é feito é fácil. A verdadeira missão é defender quando discordamos. Isso sim é ser principiológico.

Post Scriptum: muitos juristas de renome estão afirmando que o deputado Daniel Silveira teria cometido outros crimes, que são inafiançáveis e/ou que a fala dele não estaria coberta pela imunidade formal enquanto congressista. Perfeitamente, tais hipóteses são possíveis. Porém não foram os fundamentos da decisão do ministro para fundamentar a prisão. Como já foi escrito em outro lugar, não é aceitável que uma decisão seja acidentalmente correta, alcançando a mesma resposta que seria atingida pelas vias adequadas. Em um Estado de Direito, a fundamentação é tão importante como a resposta alcançada. Se há outras fundamentações, válidas, que sejam aplicadas. O que se defende aqui é simples: o artigo 324, IV do CPP não torna crimes inafiançáveis. E este sim foi o fundamento utilizado e, portanto, é o que aqui se analisa e comenta.

_________

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2020.

LOPES JR. Aury. Prisões Cautelares. 5. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017.

LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2020.

 

Rodrigo Pedroso Barbosa
Mestre em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, autor e advogado criminalista.

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