Migalhas de Peso

2021: O ano do contribuinte (?)

A reforma do processo civil brasileiro e a gestação do Novo CPC foi um projeto coletivo bem maturado, capitaneado por uma comissão de notáveis especialistas da matéria e que de fato ouviu outros especialistas e a sociedade toda, ao longo de alguns anos.

16/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

“Eu sei que esses são tempos sombrios, mas sempre há luz” (Joe Biden, 19.1.2021)

No Brasil, a velha máxima de que o ano só começa depois do Carnaval fica especialmente prejudicada em um ano em que, excepcionalmente, não haverá Carnaval, e no qual já assistimos a eventos bastante marcantes entre janeiro e o início de fevereiro. De uma inimaginável invasão ao Capitólio à posse do novo presidente dos Estados Unidos, passando, aqui no Brasil, pelas agitadas eleições dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal à retomada das atividades no STF e no STJ. Talvez o marco mais simbólico da inauguração de 2021 para nós, brasileiros, tenha sido o começo da vacinação contra a COVID-19 no país. É o início tímido da desafiadora tarefa de vacinar milhões de brasileiros, que pode se estender por até mais de um ano, mas já significa o princípio da virada contra o grande mal que nos tem afligido desde o ano anterior.

O ano de 2020 fez milhares de vítimas, no mundo todo, entre elas, em linguagem real e figurada, os contribuintes. Foram mães, pais, avós, filhos, netos, cônjuges, companheiros, amigos, conhecidos e desconhecidos. Uma dor enorme que ainda estamos vivendo, em sentido real.

Mas, na linguagem figurada, os contribuintes também foram grandes vítimas de 2020. A reboque da crise econômica, tivemos, evidentemente, uma crise fiscal, resultante de uma necessidade imperiosa de aumento dos gastos públicos em função da pandemia e do estado de calamidade que se instaurou em meio a um cenário de incertezas e dificuldades para a preservação de caixa por parte das empresas, notadamente no auge da quarentena.

No campo da legislação tributária, vimos várias iniciativas concretas especialmente voltadas à suspensão de tributos para empresas do SIMPLES. Os contribuintes de fora do SIMPLES, que buscaram aplicar normas da própria Receita Federal que admitiam a suspensão de tributos em caso de decretação de calamidade pública, encontraram enorme resistência no Poder Judiciário, como se estivessem a postular uma moratória judicial e não a aplicação de normas já existentes. A solução daqueles em maiores dificuldades econômicas muitas vezes foi adiar o pagamento e a declaração de tributos, valendo-se do instituto da denúncia espontânea, quando da retomada, para afastar multas. Regras mais claras para o recolhimento de tributos em casos de calamidade pública teriam dado maior tranquilidade em um período já naturalmente tenso por uma série de outros motivos.

Da mesma forma encontraram resistência aqueles contribuintes que buscavam substituir garantias como o depósito judicial por outras menos onerosas, previstas na legislação. Fica para 2021 o dever de equacionarmos melhor a questão das garantias do crédito tributário, seja por meio de uma flexibilização e ampliação do escopo dos métodos alternativos de resolução de disputas tributárias como o negócio jurídico processual e a transação tributária, seja por meio de medidas legislativas que concedam efeito suspensivo da exigibilidade do crédito tributário a garantias que já são equiparadas legalmente a dinheiro, como a carta de fiança bancária e o seguro garantia. Caso contrário, o que se tem, na prática, é um depósito que se mantém como “pagamento forçado e antecipado” de um débito que o contribuinte entende indevido e está discutindo judicialmente, mesmo quando se trata de um recurso vital para a empresa. Não se pode permitir que o paciente morra asfixiado deixando o cilindro de oxigênio guardado no cofre.

No âmbito do Poder Executivo, tivemos a apresentação oficial do projeto de lei contemplando uma das etapas da reforma tributária pretendida pelo governo: a criação de um protótipo de IVA-Federal – a Contribuição sobre Bens e Serviços, que pretende substituir o PIS e a Cofins. Embora a iniciativa de simplificação e racionalização seja louvável, é certo que ainda há muitas críticas procedentes e não totalmente resolvidas, centradas principalmente (i) no aumento de carga tributária e na alta regressividade do tributo; (ii) na pouca clareza com relação às suas hipóteses de incidência e à amplitude de sua base de cálculo e (iii) nas deficiências práticas da não cumulatividade. 

Ainda restam outras indefinições no campo da reforma tributária relacionadas: (i) à forma de implementação do IVA nos outros níveis da federação; (ii) ao retorno da CPMF, ainda que sob o rótulo de um “imposto digital”, associado ou não à desoneração da folha de salários; (iii) às alterações na legislação da tributação da renda para contemplar a tributação dos dividendos, entre inúmeras outras medidas, algumas de criatividade ímpar e bastante preocupantes.

De fato, não parecem faltar pautas, ideias e agenda para uma reforma tributária. Talvez o que esteja faltando seja um centro de comando e de coordenação para captar o que é “bom”, afastar o que é “ruim” e entregar o que é “possível”. Os novos presidentes da Câmara e do Senado já sinalizaram que pretendem caminhar juntos e priorizar a aprovação da reforma. Embora haja projetos muito bem elaborados, não custa lembrar que a última grande reforma tributária que tivemos no país, na década de 1960, contou com o trabalho e a dedicação de dois dos mais notáveis tributaristas da época: Gilberto de Ulhôa Canto e Rubens Gomes de Souza.

Por mais que uma reforma tributária seja uma tarefa multidisciplinar para a qual é imprescindível o trabalho de especialistas em economia, contabilidade, finanças públicas, entre outras, é preciso dizer o óbvio: no final do dia, o produto a ser entregue é um texto constitucional e legal a ser publicado no Diário Oficial. Embora ele tenha impacto sobre toda a sociedade, ele será interpretado fundamentalmente por aplicadores do Direito. Então, nada melhor do que se montar uma comissão plural, com os grandes juristas, das mais variadas escolas, especializados no tema, para elaborar um projeto sólido e consensual de reforma tributária, a ser debatido em audiências públicas por toda a sociedade, com o tempo de maturação necessário e sem açodamentos. 

A reforma do processo civil brasileiro e a gestação do Novo CPC foi um projeto coletivo bem maturado, capitaneado por uma comissão de notáveis especialistas da matéria e que de fato ouviu outros especialistas e a sociedade toda, ao longo de alguns anos. O resultado, embora não seja imune a críticas, foi considerado bastante satisfatório pela comunidade jurídica em geral. Esse pode ser um caminho a ser trilhado, para que a reforma tributária não fique, como está hoje, sendo mais objeto de disputas do que de consensos. Mais do que de um “pai”, a reforma tributária precisa do “país”.

Todavia, quiçá tão ou ainda mais importante do que reformarmos o sistema tributário, modificando as bases tributárias, precisamos proteger o contribuinte brasileiro contra uma perniciosa tendência de autoritarismo fiscal que lamentavelmente temos visto crescer em alguns segmentos. Não bastassem a dificuldade de compreensão já naturalmente imposta pelo cipoal que é a nossa legislação tributária, considerada uma das mais complexas do mundo, e o sem número de obrigações acessórias, que faz o Brasil ser campeão em burocracia fiscal, os contribuintes brasileiros ainda têm que conviver com alterações constantes de interpretação da legislação tributária por parte das autoridades fiscais, com multas em valores muito elevados – muito superiores às praticadas na média internacional  – por qualquer erro ou simples divergência que tenham com o Fisco e, mais recentemente, com a iniciativa de criminalização daqueles que se valem do seu direito constitucional de debater exigências fiscais.

Não estamos nos referindo àqueles contribuintes que ocultam fatos do fisco, em esquemas de sonegação mais ou menos sofisticados. Tampouco estamos falando dos chamados “devedores contumazes”, que o STF, recentemente, no julgamento do RHC 163.334, entendeu que praticam crimes contra a ordem tributária por sistematicamente declararem e não pagarem ICMS.  Estamos tratando aqui de contribuintes que por um simples lapso na aplicação da intrincada legislação tributária, ou por uma singela diferença de interpretação em relação ao Fisco, são punidos com multas em patamares elevados ou mesmo confiscatórios e têm de enfrentar procedimentos penais instaurados com o claro intuito de intimidá-los e compeli-los ao pagamento de valores que a administração tributária entende devidos, mas que ainda estão em discussão no contencioso tributário.

Essas práticas que apelam para a força e para coação em detrimento do diálogo e do consenso precisam ser urgentemente banidas do Direito Tributário. Um CDC pode ser um marco legislativo relevante para abolir esse tipo de expediente e, desse modo, evoluirmos para outro patamar civilizatório e mais democrático em matéria de cidadania fiscal.

Por fim, no que tange ao Poder Judiciário, o “julgamento do ano”, por todos aguardado para 2020, não aconteceu. Os famosos embargos de declaração no RE 574.706 (“Tema 69 – Exclusão de ICMS na Base de Cálculo do PIS e da Cofins”) não foram julgados e ainda seguimos na indefinição com relação à matéria. É preciso encerrar de uma vez por todas e adequadamente essa disputa, de modo a pararmos de alimentar especulações de toda a sorte.

É muito claro que só o “ICMS destacado” na nota fiscal – jamais o recolhido – deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins. Por uma razão muito simples: ele é o único que o próprio Fisco sempre entendeu estar incluído na “receita bruta”. Qualquer outra linha diferente dessa não passa, com todo respeito, de uma tentativa oblíqua de se alterar o resultado do julgamento, já que o “ICMS pago” sempre foi absolutamente neutro no que tange à composição da base de cálculo do PIS e da Cofins. De outro giro, nada justifica também uma modulação de efeitos nesse caso, quando toda a jurisprudência do STF já sinalizava que a receita bruta não abrangia os tributos sobre ela incidentes. A prevalecerem as vazias alegações fiscais ad terrorem de “rombos de caixa” e as disputas tributárias sempre hão de terminar em modulação, já que algum impacto nos cofres públicos sempre há. A variação é só de grau. Além de não se tratar de um argumento jurídico propriamente dito, esse tipo de raciocínio estimula a “inconstitucionalidade útil”. Pior, a alegação padece de um ranço autoritário que precisa ser combatido: por que o impacto no caixa da União é mais nocivo do que o impacto no bolso da sociedade?  A lógica de uma “Constituição Cidadã” deveria levar justamente à conclusão oposta.

Ainda no campo judicial, se há muito a comemorar em matéria de eficiência com um número recorde de disputas tributárias julgadas no STF em um único ano, em montante equivalente ao que o Tribunal julga em mais de uma década, não há tanto que o contribuinte possa celebrar em relação aos resultados obtidos. Os números revelam que a taxa de êxito dos contribuintes foi muito reduzida e inferior à metade da média histórica (47% nos 100 casos anteriores ao início do plenário virtual e 21% nos casos julgados no plenário virtual). Talvez isso se deva ao fato de que a digitalização do processo, um tanto acelerada por conta da pandemia, acabou na prática implicando sacrifícios à defesa (ex: dificuldades para realização de audiências e sustentações orais em meio a tantos julgamentos simultâneos no plenário virtual).

Ora, a evolução tecnológica e a digitalização do processo não podem implicar uma involução em matéria de acesso à justiça. Pelo contrário, os meios virtuais deveriam possibilitar a ampliação do espaço de interação dos advogados com os juízes e demais atores do processo (ex: audiências em horários alternativos, possibilidade de sustentação oral por videoconferência; “online dispute resolutions”, participação do advogado no debate no plenário virtual, entre outras medidas). Felizmente, essas ideias vêm tendo boa acolhida na cúpula do Poder Judiciário.   

O último grande julgamento tributário do STF no ano de 2020 deixou certa preocupação nos contribuintes. Ao julgar o Tema 939, em julgamento por videoconferência, a Corte reputou constitucional, por maioria de votos, a delegação para o Poder Executivo do poder de fixar alíquotas de PIS e Cofins sobre receitas financeiras. Mesmo que a Corte tenha entendido que se tratava de uma matéria de cunho eminentemente técnico e que o Fisco tinha que respeitar o teto de alíquota máxima fixado pelo legislador, a CF/88 foi bastante rígida com relação à reserva de lei no Direito Tributário, a ponto de ter sido expressa e pontual com relação às exceções ao princípio da legalidade no que tange à fixação de alíquota (II, IE, IPI, IOF, CIDE-combustíveis e ICMS monofásico sobre combustíveis). É dizer, a Carta foi muito mais minuciosa do que, por exemplo, ao estabelecer os prazos máximos dos mandatos dos Presidentes da Câmara e do Senado. Ampliar essas hipóteses de delegação legislativa explicitamente previstas no texto constitucional é, na prática, retirar poder do Congresso e, em última análise, dos cidadãos, sobre a fixação da carga tributária e transferi-lo ao Fisco. Isso causa certa apreensão em se tratando de PIS e Cofins, que são os tributos de maior arrecadação federal. 

Não obstante, a pauta do STF nesse primeiro semestre reserva espaço para a resolução de uma série de disputas fiscais relevantes relacionadas: (i) ao ICMS (incidência ou não sobre o download de software; a possibilidade de cobrança de diferencial de alíquotas, após a EC 87/15, sem a edição de lei complementar; a validade da alíquota de ICMS diferenciada em função da origem da mercadoria, nos termos fixados, pela Resolução 13/12 do Senado Federal); (ii) às taxas em geral (taxas locais sobre atividades econômicas de contribuintes relacionadas à exploração de petróleo e à mineração, limites da taxa judiciária e validade do número de empregados como critério para fixação da base de cálculo de taxa de fiscalização de estabelecimento); (iii) à incidência de CIDE sobre software; (iv) às contribuições previdenciárias (relativas ao FAP, RAT e SAT) e a uma série de outros tributos.

O ano, em matéria tributária, promete. Há uma clara intenção de se priorizar a pacificação de temas essenciais ao dia a dia do contribuinte. Afinal, o cenário é mais do que nunca de necessidade de recursos financeiros e de dificuldades orçamentárias. O momento impõe e vem contando com a solidariedade de todos. Mas, é preciso ter em mente que o autoritarismo, o voluntarismo e o intervencionismo, inclusive no campo fiscal, só irão agravar a nossa crise, como tem ocorrido ultimamente nas demais searas. Quanto maiores forem as nossas controvérsias, dificuldades e dúvidas, mais teremos que ser fiéis às nossas convicções democráticas, agarrar-nos à segurança institucional que a Constituição de 1988 nos proporciona e nos valer dos meios legítimos e institucionais de pacificação pelo Direito.

Parafraseando a epígrafe desse artigo: em tempos complexos, precisamos mais do que nunca de racionalidade. Em matéria de constitucionalismo fiscal, isso significa pensar o Estado não como um fim em si mesmo, mas como um meio de garantir a todos uma vida digna, com respeito às escolhas e aos projetos individuais. O contribuinte, como o próprio nome já diz, é a pessoa que viabiliza financeiramente a construção do Estado. Ele entrega uma parcela do seu patrimônio em prol de um projeto coletivo, que em última análise deve zelar por ele, protegê-lo e retribuí-lo em igual medida, para que ele alcance um resultado superior àquele que obteria em sua trilha individual. Quando cada contribuinte é tratado com respeito e compreensão, o benefício se reverte em proveito de todos. Se a nossa meta em 2021 é resgatar esses valores humanitários que andavam meio esquecidos, para salvar vidas, é bom olhar para eles. A ser essa de fato a agenda, não temos dúvidas de que 2021, ou qualquer outro ano em que isso aconteça, será o ano do contribuinte. E já está mais do que na hora desse merecido tributo.

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

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João Rafael L. Gandara de Carvalho
Advogado da área tributária de Pinheiro Neto Advogados.

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