Migalhas de Peso

Os 5 C's da boa redação jurídica

Para a confecção de uma peça jurídica de qualidade, há 5 atributos essenciais que devem ser observados por todo e qualquer jurista.

12/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A palavra é, indubitavelmente, o instrumento basilar de trabalho do operador do direito. É por isso que o jurista não pode furtar-se de dominar, com maestria, o seu traquejo. O mundo do Direito e suas contendas giram majoritariamente em torno de embates argumentativos a fim de se fazer prevalecerem teses, o que torna indispensável uma boa comunicação.

Assim, convém observar que há algumas características que não podem faltar em nenhuma peça jurídica que se pretenda de qualidade. São qualidades que devem ser perseguidas pelo redator jurídico a todo momento, uma vez que, presente em sua integralidade, esse conjunto de atributos promove a eficácia do texto forense, assegurando uma eficiente transmissão da mensagem intencionada.

Trata-se dos “5 C’s da boa redação jurídica”. Analisemos detidamente cada uma dessas importantes características. 

Clareza

Diz respeito à limpidez na transmissão da mensagem, de modo que se torne facilmente compreendida pelo receptor. A clareza é das mais importantes qualidades do discurso jurídico, pois sua ausência tem o condão de minar por completo o entendimento da tese que se quer defender, o que, consoante asseverado, consubstancia a maior parte do múnus do jurista.

Para promover a clareza, é necessário eliminar eventuais ambiguidades de sentido e fazer uso de uma linguagem simples, porém elegante e adequada ao contexto. A própria redação das leis no Brasil impõe o cumprimento desse requisito, conforme se observa no art. 13, §2º e incisos, da Lei Complementar 95/98.

Além disso, conforme veremos a seguir, o emprego de uma linguagem pernóstica e hermética, que agrada exclusivamente ao emissor, e confundindo o receptor, evidencia a presença da exata antípoda da clareza: a obscuridade. 

Coerência

Está relacionada ao estabelecimento de sentidos lógicos ao longo do texto, de modo que a mensagem faça sentido e cumpra o papel almejado com sua redação. A falta de coerência, tal qual a de clareza, tem se revelado o produto final de uma preocupação excessiva dos juristas com o uso de palavras e expressões pretensamente eruditas, empregadas de maneira inadequada. O obstáculo à coerência é, por evidência, a incoerência, a falta de lógica.

É inadmissível conceber a ideia de que um advogado ou advogada tenha uma petição inicial indeferida em razão da falta de coerência. Infelizmente, a prática forense nos mostra que a ausência desse atributo ainda redunda naquela desonrosa consequência processual: a inépcia da inicial.

Da mesmíssima sorte, não menos improdutivos são os casos em que uma das partes processuais precisa protocolar embargos de declaração para solicitar que o magistrado esclareça questões de sua decisão. Aliás, o próprio fato de existir um tipo processual específico para, dentre outras situações, lidar com a falta de sentido das sentenças judiciais, por si só, já denota a gravidade que há em uma decisão incoerente. 

Coesão:

É o atributo da interligação bem-sucedida e lógica entre as partes da dissertação, seja entre as frases de um parágrafo, seja entre os parágrafos de um texto. Essas conexões geralmente são firmadas pelos chamados “conectivos de passagem”, que relacionam as unidades semânticas do texto e contribuem para a concatenação das ideias, estabelecendo relações de sentido voltadas para a boa compreensão.

A percepção facilitada, ao longo do texto, das relações de sentido entre as frases é o melhor indicativo de um texto coeso. Esses sentidos, por coordenação ou subordinação, podem ser de causa, consequência, concessão, condição, comparação, conformidade, conclusão, explicação, proporcionalidade, temporalidade, finalidade, etc. As conjunções e locuções conjuntivas são essenciais para firmar essas ligações de sentido.

Em uma outra nota, impende observar que a falta desse atributo traz uma prolixidade ao texto e, não raro, redunda também em incoerências. Poucos lapsos de redação são tão deselegantes quanto a construção de parágrafos e teses que em nada se relacionam uns com os outros. A interligação dos elementos do texto e a fluidez da mensagem dependem, de forma inescusável, da atenção à coesão. 

Concisão:

Concerne à objetividade na comunicação, evidenciada pela capacidade do redator de “dizer muito em poucas palavras”. A concisão contribui diretamente para clareza do texto e, no meio jurídico, também favorece a diminuição da mora processual.

Como bem sabemos, o deslinde das demandas processuais mais complexas costumam ser demorado, porém essa delonga também ocorre amiúde pela presença de manifestações longas e desnecessariamente repetitivas.  E aqui importa diferenciar os conceitos de reiteração e redundância: a primeira representa uma estratégia argumentativa de reforçar questões importantes ao longo da exposição jurídica, enquanto que a segunda encerra um vício redacional e linguístico que atenta contra a objetividade do texto, e por isso deve ser evitada.

Foi-se o tempo em que petições e decisões judiciais precisavam ostentar páginas e páginas de fundamentação jurídica para serem consideradas de grande quilate no meio jurídico. Com o advento do emprego expansivo da tecnologia na administração da justiça, adentramos uma nova era jurídica, marcada por formas inovadoras de se dizer o direito e que se caracteriza, sobretudo, por exposições sintéticas e úteis nas manifestações processuais.

Dizer apenas o necessário, nos dias atuais, é elegante e significa dispor de um atributo indispensável para o bom funcionamento da máquina judiciária e para a redução da burocracia administrativa. 

Correção

Traduz-se pelo respeito à gramaticalidade do ponto de vista técnico. A correção se realiza pela atenção às normas de ortografia, regência, concordância, acentuação, etc.; pelo uso escorreito dos sinais de pontuação; e pelo emprego adequado das formas morfológicas — pronomes, adjetivos, advérbios, conjunções, preposições, substantivos, entre outros. A incorreção gramatical representa uma das maiores máculas do texto jurídico na atualidade, imiscuindo-se constantemente com o “juridiquês”.

Sem ignorar a existência de incorreções das mais encontradiças nos petitórios jurídicos, é importante reconhecer que a ausência de correção gramatical representa, atualmente, o vício mais presente nas decisões judiciais. Há uma miríade de razões para tal fato, e elas são das mais variadas naturezas.

De um lado, temos o estrondoso número de demandas que aportam no Poder Judiciário diariamente e que termina por gerar uma redução na qualidade das peças em prol de dar vencimento a uma maior quantidade de casos. Por outro lado, aqui também pesa a crescente obsessão pelo cumprimento de metas de produtividade nos tribunais de justiça brasileiros. Entretanto, convém frisar que nem sempre qualidade e quantidade precisam ser variáveis inversamente proporcionais na produção do texto jurídico.

A preocupação demasiada com o conteúdo das petições e decisões judiciais, em detrimento da forma durante a produção delas, também contribui fortemente para incorreções, sobretudo de pontuação e ortografia.

Sejam quais forem as razões que levem os juristas a claudicar das regras gramaticais, certo é que o devido desvelo para com a norma culta representa elemento indispensável não apenas na seara jurídica, mas em qualquer ramo profissional. Em vista disso, é necessário que os operadores do direito realizem sempre uma reciclagem das normas gramaticais, a fim de assegurar o respeito à norma culta nas peças jurídicas. 

Traçadas essas considerações acerca dos atributos essenciais da boa redação jurídica, devemos ressaltar que a presença uníssona desses cinco elementos em qualquer manifestação forense permitirá, sem grandes tribulações, uma comunicação eficaz de fatos e fundamentos jurídicos, contribuindo para o atingimento do mister profissional de qualquer jurista. De outra banda, é útil lembrar-nos de que qualquer erro cometido na manufatura do texto forense poderá sempre ser remetido à ausência de uma ou outra das qualidades retrocitadas.

Ainda transita em abundância nas interações do foro uma linguagem marcada pelas exatas antípodas de todos esses atributos, de modo que a comunicação entre as partes processuais se torna cada vez mais obnubilada, engessada e ineficiente. Essa nebulosidade que impregna a comunicação jurídica, causada também pelo famigerado “juridiquês”, pode ser facilmente evitada por meio do respeito à norma padrão da língua portuguesa, bem como pelo emprego de técnicas redacionais que ajudem a deixar a escrita jurídica sempre arejada e agradável.

Posto isso, seguem algumas recomendações de escrita que reputamos relevantes e que podem ser usadas pelo operador do direito para dar substância e solidez à sua redação jurídica. 

A PRIMEIRA delas é a de sempre vincular fundamentos a argumentos. Sói ocorrer nos petitórios e decisões judiciais a consignação de artigos de leis, ementas de julgados e citações doutrinárias desprovidos de conexão com o caso concreto. Ou mesmo o inverso: a disposição de elementos fáticos sem qualquer base jurídica a eles atrelados. Aqui se viola, a um só tempo, os requisitos da coesão e da coerência.

A SEGUNDA recomendação a ser observada é a abolição de termos pretensamente rebuscados que em nada contribuem para o desenvolvimento dissertativo do texto. O emprego de palavras “pseudoeruditas” é precisamente o que caracteriza o “juridiquês” e empobrece a dissertação jurídica, mormente quando o resto do texto não dá sustento ao uso dessas expressões “bonitas”. É o que o professor Eduardo Sabbag apelida de “plantio de palavras”. Tal prática se presta à mera ocorrência de agradar o ego do emissor da mensagem, dando-lhe uma falsa sensação de erudição e satisfação com sua própria habilidade textual. De outra banda, em nada agrada o receptor da informação, razão pela qual esses termos devem ser afastados o máximo possível, sob pena de se frustrar toda a razão de ser da peça jurídica.

A TERCEIRA observação a ser feita é a de se afastar da escrita forense os chamados “ISMOS”. São eles: os solecismos, os estrangeirismos (anglicismos, galicismos, espanholismos, etc.), os arcaísmos, os preciosismos e os modismos. Dar vazão à presença dessas falhas redacionais significa criar e aprofundar verdadeiros abismos de compreensão, que podem ser facilmente evitados como o emprego de bons mecanismos de escrita. 

Assim sendo, é notório que são inúmeros os algozes que assolam a comunicação jurídica hodiernamente; e eles ultrapassam em muito os percalços comuns acima elencados. Nada obstante essas dificuldades, sabemos que o estudo dos problemas mais urgentes, e seus respectivos remédios, têm o condão de extirpar da redação jurídica as erronias mais grosseiras e promover uma comunicação de qualidade, isenta das agruras do tal “juridiquês”.

Não nos olvidemos de que as dificuldades ora tratadas afligem não apenas os advogados e advogadas menos avisados, como também os magistrados e magistradas que se ocupam exclusivamente da matéria de suas decisões, relegando a segundo plano a forma em que o conteúdo é exposto. A forma, ressaltamos, deve ostentar igual atenção por parte do jurista. A priorização do conteúdo em detrimento da forma representa sério lapso de comunicação e, não raro, de eficácia no múnus profissional de inúmeros operadores do direito.

Seguindo todas as recomendações apresentadas neste breve ensaio, há certeza no alcance de uma comunicação jurídica de qualidade. E, com o tempo, para além da presença dos 5 C’s da boa redação jurídica, conquistar-se-á também, de lambuja, os atributos da naturalidade e da originalidade no escrever forense, que são adquiridos com a experiência no labor jurídico aliado à prática cotidiana da boa leitura.

Eduardo de Medeiros Nóbrega
Assessor Jurídico no Ministério Público do Estado da Paraíba e Revisor Jurídico. É mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e especialista e Comunicação Jurídica pela Faculdade CERS.

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