Migalhas de Peso

A inconstitucionalidade da demissão sem justa causa de empregados públicos

É preciso haver deferência às escolhas constitucionais na concretização dos princípios que a Carta enuncia.

4/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

O regime jurídico dos empregados públicos – os que atuam nas empresas públicas e sociedades de economia mista - sempre suscitou matizados questionamentos. Os temperamentos necessários, em relação à necessidade de realização de concurso para ingresso na administração pública indireta, ressoam como um dos principais, impactando outros temas. Uma consequência inevitável parece recair sobre a impossibilidade de demissão sem justa causa.

A Constituição Federal de 1988 positivou o concurso como o meio de concretizar o princípio da impessoalidade no tocante ao ingresso no serviço público para esses empregados (art. 37, caput e inciso II), ainda que não regidos por normas estatutárias, próprias da administração direta. Não parece de bom alvitre dar um cheque em branco a gestores ocasionais, de modo a que possam dispensar tais empregados sem balizas normativas claras que justifiquem, ou não, a sua permanência no serviço público.

Quando a Administração Pública, direta e indireta, entende que seus quadros precisam de reforço e realiza a seleção de novos quadros por concurso, confronta-se, em verdade, com necessidade estrutural, e, não, conjuntural. O planejamento cumpre finalidade perene. Análise pontual de não mais ser necessário tal ou qual cargo ou emprego há de ponderar que se poderá dispensar um agente público, não apenas se extinguirá uma vaga. Como consequência, tal agente deve ser realocado. A simples demissão, com o fito de realização de novo concurso, constituir via transversa de violação da impessoalidade administrativa, que é tão princípio quanto o ingresso mediante concurso público.

Viola a eficiência administrativa a realização de um certame para seleção de profissional que já mantinha relação funcional com empresa pública. Caso se apurem elementos comprobatórios de sua incompatibilidade com o desempenho da função pública, o direito brasileiro consagra outros meios, como é caso da demissão por justa causa.

Especificadamente no tocante à demissão por justa causa decorrente de demonstrada ineficiência, somente haveria de ser autorizada diante de parâmetros claros e objetivos de avaliação de desempenho, ao final de processo administrativo individual, com as garantias da ampla defesa e do contraditório, sob pena de nulidade absoluta.

E aqui parece ser indiferente se as estatais atuam em regime de concorrência no mercado ou em regime de monopólio, pois ambas estão sujeitas à obrigatoriedade de realização de concurso público. A contrapartida ao ingresso mediante concurso é a impossibilidade de demissão sem justa causa. Isso, por si só, já configura um diferenciador das demais empresas privadas que atuam no mercado, sendo exigência compatível com os ditames constitucionais.

Por ocasião da análise que sobre o tema se debruçará o Supremo Tribunal Federal será fundamental a modulação dos efeitos, sob pena de gerar-se descalabro no planejamento das estatais e seus recursos humanos. Daí ser fundamental que os legitimados a atuar como amicus curiae se mobilizem para contribuir em debates no processo decisório, permitindo que os julgadores tenham acesso às consequências decorrentes de tal decisão. Assim como fundamental, que as estatais afetadas demonstrem em processo específico os impactos da aplicação da decisão em seu corpo funcional, de modo a permitir a aplicação de um “distinguishing” baseado em avaliação a cada caso.

É preciso haver deferência às escolhas constitucionais na concretização dos princípios que a Carta enuncia. Conferir a possibilidade de demissão sem justa causa de empregados públicos celetistas não encontra respaldo na discricionariedade administrativa, mas pode resvalar em exercício de poder arbitrário, que não se coaduna com o estado democrático de direito. Como ensinava a profa. Carmem Lúcia Antunes Rocha, antes de ingressar como Ministra da Suprema Corte, “O servidor – seus direitos e, principalmente, seus deveres – antecede o trabalhador como matéria de cuidados constitucionais” (Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos, p. 57. Ed. Saraiva, 1999).

Jessé Torres Pereira Junior
Desembargador do TJ/RJ. Professor convidado da Escola de Direito Rio, da Fundação Getúlio Vargas, e da Escola Superior de Advocacia OAB/RJ.

Thaís Marçal
Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.

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