Migalhas de Peso

Compliance na administração pública direta

Programas de Compliance Público já são uma realidade necessária, mas nem todo setor público está preparado.

29/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Grandes empresas privadas no Brasil tratam o compliance, aqui encarado como  sinônimo de integridade nos ensinamentos de Luchione e Carneiro (2017), como requisito imprescindível para expansão de seus negócios, seja porque boa parte delas está sujeita às legislações transnacionais anticorrupção como o FCPA  (Foreing Corrupt Practices Act) e a SoX  (Sarbanes-Oxley), dentre outras; seja porque vivemos o “pós” Operação Lava-Jato, sob a égide da lei Anticorrupção Brasileira (lei Federal 12.846/13, em suma, criada para combater, de forma efetiva, possíveis atos lesivos praticados por empresas aos entes púbicos).

Pensar em compliance no setor público muitas das vezes nos remete ao caso de que alguns – não muitos, órgãos públicos impõem como condição para contratarem que seus fornecedores possuam ou implementem (em curto espaço de tempo) um Programa de Integridade efetivo no combate a atos praticados contra a administração pública (atos de corrupção, lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo, dentre outros). São espelhos desta dinâmica os Estados e Municípios  que editaram leis e decretos visando obrigar a implementação de Integridade nas empresas que contratarem com suas seccionais diretas, como os pioneiros Rio de Janeiro e Distrito Federal ; cobrar obediência a código de conduta aplicável a fornecedores de bens e prestadores de serviços públicos ou a criar Programa de Fomento ao Controle Administrativo.

Mas não nos remete à discussão de que o Poder Público devesse aplicar dita condição a si mesmo, por isonomia, pois atos de corrupção, foco deste ensaio, podem tanto ser praticados por (modalidade passiva, prevista no art. 317 do CP) como para (modalidade ativa, descrita no art. 333 do CP) um funcionário público. Ora, a conformidade nas contratações públicas demanda padrões morais e legais para garantir a escorreita e eficiente aplicação dos recursos públicos apenas de uma parte, a contratada? Recomendável que não.

Se para Nucci  (2015) “o funcionário corrupto desmoraliza o serviço público e afronta o Estado (...)”, um Programa de Integridade Público operante é a solução preventiva essencial.

Três argumentos fáticos para reforçar esse entendimento: o Fórum Econômico Mundial  estimou em 2018 que a corrupção no mundo consome 3,6 trilhões de dólares por ano; a ONG Transparency International , que publica anualmente o Corruption Perceptions Index pontuando entre 0 a 100 pontos o nível de percepção de corrupção no país, sendo menos corrupto aquele que se aproximar de 100, e mais corrupto o que se aproximar de 0, classificou em 2019 a Nova Zelândia e a Dinamarca em 1º lugar, empatadas com 87 pontos, o Brasil com 35 e a Venezuela, 16; a KPMG  traçou o perfil do fraudador constatando que 62% dos fraudadores atua em conluio com pessoal interno e externo - e no setor público, o conluio está associado usualmente às licitações (evidência ou indício de relação estreita entre licitantes; todas as propostas bem acima do orçamento inicial da licitação; empresas conhecidas não dão lances; vencedor da licitação subcontrata licitante perdedor ou não licitante, etc); aos funcionários públicos do processo de compras (relação ou conflito de interesses com o licitante vencedor; licitante oferece presentes ou benefícios para o contratante; especificação da licitação identifica apenas o produto do licitante vencedor, etc); à execução contratual (aceite de faturas sem a fiscalização adequada; sanções não aplicadas mesmo com o baixo desempenho, etc); ao pagamento (mesma pessoa que lança o pagamento autoriza; transações feitas em horários e frequências estranhas, valores inusuais ou para destinatários excêntricos, etc) e ao controle interno (mesma pessoa tem o controle do processo do começo ao fim; manipulação deliberada de documentos, demonstrações financeiras e/ou extravio dos arquivos, etc) – vide referencial completo do Tribunal de Contas da União .

De fato, não há norma expressa que obrigue a Administração Pública Direta a implementar Programa de Compliance/Integridade para, assim como seus contratados, torná-lo atuante e producente no combate a atos contra a atividade pública em seu sentido mais extenso.

A lei Anticorrupção Brasileira nada diz.

A nova lei de Licitações (PL 4253/20, aprovado no Senado em 10/12/20 e encaminhado à sanção ) também não. Apenas exige como critério de desempate de propostas iguais (art. 59, inciso IV) ou regra de contratação de obras de grande vulto, superiores a 200 milhões de reais (art. 25, § 4º).

A Lei das Estatais (lei Federal 13.303/16), idem. A criação de um Programa de Compliance efetivo é obrigatória apenas para empresas públicas e sociedades de economia mista (art. 9º e parágrafos, art. 12 e 14, dentre outros). Aliás, de se perguntar quantos não são os Municípios e Estados controladores das empresas públicas e sociedades de economia mista que não possuem na sua atividade direta um efetivo programa de integridade?

Por isso que o substrato necessário para que Programas de Compliance Público sejam criados, implantados e implementados está na interpretação sistêmica dos princípios disciplinados no “caput” do art. 37 da CF. Em um país de recorrentes casos de corrupção em todos os níveis da Federação, a busca por transparência no trato do dinheiro público é perene e em face disso é que internalizar os pilares do compliance na administração pública é comando que não pode retroceder.

Em alguns anos será inviável dissociar “Poder Público Direto” de “Controladoria Geral” ou de “Secretaria Geral de Transparência e Integridade” tanto quanto será corriqueiro expandir mecanismos de combate aos atos de corrupção e demais atos lesivos à Administração Pública.

Alguns Estados e Municípios de vanguarda entenderam a demanda. O Estado de Goiás , por exemplo, inseriu o art. 21-A à lei 18.672/14 para obrigar seus órgãos e entidades a criarem programas de Compliance Público com “o objetivo de avaliar, direcionar e monitorar a gestão pública, mediante avaliação de riscos e prevenção, identificando e reportando os desvios de conduta, as irregularidades e a prática de ilícitos, visando ao atingimento do interesse público e o combate efetivo a todas as formas de corrupção”. Seguiram o mesmo exemplo o Município de São Paulo , Rio de Janeiro , Itajaí (SC)  e a Corregedoria Geral Estadual de Minas Gerais .

A presente reflexão não tem a pretensão de esgotar o tema, mas reiterar que o compliance aplicado ao setor público já é uma realidade a ser seguida, embora poucos governantes tenham notado sua importância e necessidade. Se o compliance de fato demonstrou resultados eficientes na esfera privada, nada mais salutar ao administrador público que buscar a mesma eficiência na gestão pública.

Ética não está na moda. Nem Transparência e Boa Governança estão: são conceitos já enraizados no cotidiano da gestão pública após anos de corrupção verificada nas políticas coletivas e sociais, e é neste contexto diário da Administração Pública que Programas de Integridade efetivos, coerentes, coesos, monitorados e implementados devem surgir.

If you think compliance is expensive, try non-compliance (Se você pensa que compliance é custoso, tente o não-compliance - Paul McNulty, Ex-Procurador-Geral dos EUA, responsável pela aplicação e pelo cumprimento do FCPA junto ao Departamento de Justiça dos EUA).

Melissa Pulice da Costa Mendes
CPC-A é advogada especialista em Direito Público pela EPM e Profissional Certificada em Compliance Anticorrupção pela LEC - Legal, Ethics and Compliance. Foi Secretária Jurídica do Município de São José dos Campos, SP (2017-2020) e Presidente do GTPD - Grupo de Trabalho para Estudos e Soluções visando adequar a Administração Direta Municipal de São José dos Campos à LGPD (2020).

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