A boa-fé objetiva é um princípio típico do negócio de seguro que, de tão importante, foi incorporado pela teoria geral dos contratos. Hoje, consta expressamente no Código Civil1.
Não é de hoje que lhe dedico especial atenção. Algum tempo atrás, escrevi um breve artigo a respeito, endereçando-o ao portal jurídico JusNavigandi e à revista do Clube Internacional de Seguros de Transportes.
Na oportunidade, tratou o artigo da relação segurado-segurador, do dever de transparência e de verdade quando do preenchimento de avaliação de risco. Por oportuno, reproduzo integralmente seu conteúdo, tendo-o como espécie de preâmbulo deste novo artigo, com outra abordagem.
Abro aspas:
A boa-fé no contrato de seguro de transporte e a perda do direito de indenização
Problemas de faltar com a verdade no preenchimento do questionário de avaliação de risco
Pelo contrato de seguro – diz o artigo 757 do Código Civil – o segurador se obriga, mediante pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
A regra legal dispõe sobre os deveres principais do segurador e do segurado, sendo certo que existem outros, informadores da relação contratual e que não podem ser relegados. No rol desses deveres tem-se o princípio da boa-fé objetiva, uma obrigação inafastável e de vital importância, uma vez que própria da índole do negócio de seguro. Tão importante, aliás, que migrou do campo do seguro para o Direito Civil como um todo, especialmente o Direito das Obrigações.
Nas regras que tratam “do seguro”, o princípio da boa-fé objetiva aparece no artigo 765, respeitando sua gênese e tratando-o de forma especial, além de figurar no artigo 422, destinado às obrigações em geral. Daí sua magna importância, uma vez que o legislador conferiu distinção superlativa ao conceito legal: “a mais estrita boa-fé e veracidade”.
Em evento realizado em São Paulo, no Instituto Butantan, no dia 24 de abril de 2015, organizado pelo escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, com apoio da Argo Seguros Brasil S.A., direcionado para profissionais do mercado de seguros e magistrados, o palestrante e convidado de honra, Paulo de Tarso Sanseverino, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, disse em alto e bom som que “o princípio da boa-fé objetiva é uma regra que constitui via de duas mãos, a ser respeitada tanto pelo segurador como pelo segurado”. As palavras do ministro Sanseverino caem como luva à mão ao conteúdo deste texto e formam seu ponto de partida, tendo-se por foco o dever de o segurado prestar declarações absolutamente verdadeiras.
No caso específico do seguro de transporte (de carga), o princípio da boa-fé objetiva ganha relevo ainda maior quando do preenchimento do questionário de avaliação de risco. Isso porque o questionário tem que ser fidedigno e impecável. Por meio dele, o segurado fornece ao segurador as informações necessárias para a avaliação do risco e o esquadrinhamento da apólice de seguro. Logo, qualquer omissão deliberada e/ou informação dolosamente prestada de forma inverídica assumem peso de bigorna e deformam a essência do seguro, ferindo de morte o conceito de boa-fé. A consequência imediata é a perda do “direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido”, como se vê na redação do artigo 766 do Código Civil.
Diante disso, é certo afirmar que o questionário de avaliação de risco preenchido de forma infiel pelo segurado implicará perda de qualquer e eventual direito de indenização de seguro.
Além do referido artigo 766, tem-se em favor do segurador o postulado da exceção pelo contrato não cumprido. Ora, se o segurado faltou com a verdade quando do preenchimento do questionário de avaliação do risco, induzindo a erro o segurador, estará este isento de qualquer dever contratual com ele e faltoso segurado.
Nesse sentido, a jurisprudência: “se o segurado atenta contra o dever de veracidade, a ordem jurídica impõe-lhe a sanção de perda do direito de indenização” (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Recurso 1.0024.13.050455-8/001, Relator: Des. Mariângela Meyer). O tratamento rigoroso é justo e necessário, pois a boa-fé objetiva não admite qualquer forma de mitigação dolosa, sob pena de o próprio negócio de seguro ser visceralmente atingido, prejudicando não apenas o mercado segurador, mas os segurados em geral.
Antes mesmo do Código Civil de 2002, a boa-fé já havia sido consagrada como regra legal em sentido estrito e com peso de princípio fundamental pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, dispondo-a como um dos mecanismos de calibragem para controle de cláusulas abusivas. O que o Código Civil fez foi ampliar a regra para todos os aspectos das obrigações em geral e do contrato de seguro em especial, não se limitando ao campo das cláusulas abusivas, mas mergulhando no oceano das condutas dos contratantes.
E mais uma vez invocamos a inteligência do ministro Paulo de Tarso Sanseverino que em seus julgados sobre o tema costuma expor com precisão: “(...) a boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta social ou padrão ético de comportamento, que impõe, concretamente, a todo cidadão que, nas suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade”. Vê-se, claramente, o fundo social do princípio-regra e o quanto ele se harmoniza com a natureza do contrato de seguro.
Em suma: tratando-se de uma conduta dolosa do segurado ou um grau de culpa inescusável e capaz de configurar a culpa equiparada ao quase dolo, outra solução não poderá ser senão a “perda da garantia” de que trata o artigo 766 do Código Civil e/ou a aplicação em favor do segurador do benefício fundamental da exceção pelo contrato não cumprido.
Apesar do baixo conteúdo semântico e da aparente subjetividade, o princípio da boa-fé é uma regra legal em sentido estrito e que se impõe com primazia por conta de sua natureza principiológica, sendo incogitável sua não observação regular a todo momento da relação contratual de seguro e, em especial, no instante do preenchimento do questionário de avaliação de risco.
Trata-se, pois, de dever primordial do segurado preencher com lealdade, com ética, colimado na lisura e na verdade o questionário de avaliação de risco, sob pena de alquebrar a validade e a eficácia do instrumento e perder todo e qualquer direito relativamente ao contrato de seguro. Nunca é demais lembrar que o Direito não se presta a referendar o torto!
Fecho aspas.
Muito do que foi antes escrito e acima lembrado pode e deve ser considerado para este modesto e sumário estudo. Isso porque os arquétipos são perfeitamente válidos, mesmo que outra seja a abordagem.
Agora, aqui, o que interessa não é a relação segurado-segurador, mas a busca do ressarcimento em regresso do segurador sub-rogado contra o causador do dano. E ao se falar em causador de dano, fala-se notadamente no transportador de carga.2
A inspiração é a mesma: as palavras do ministro Sanseverino, proferidas em diferentes oportunidades, segundo as quais a boa-fé é sempre uma via de mão dupla.
Um pleito de ressarcimento em regresso não é relação contratual em sentido estrito, mas muitas vezes remete a alguma e se nutre de elementos que lhe são próprios. Daí a importância da boa-fé objetiva que é muito maior que o dever de lealdade entre as partes litigantes.
Normalmente quando se fala em boa-fé no contrato de seguro, fala-se do dever que têm o segurado, de prestar informações verídicas, e o segurador, de não criar imbróglios para pagar a indenização.
Pouco se fala, porém, do exercício do ressarcimento em regresso e de um ponto em especial: a legitimidade ativa do segurador sub-rogado.
Este é o objetivo.
Ao pleitear o ressarcimento em regresso contra o transportador danador, o segurador sub-rogado não defende apenas os seus legítimos interesses, mas os do colégio de segurados, os do mútuo.
Indiretamente, pode-se dizer sem exagero algum, defende ainda os da sociedade em geral, tendo-se em elevada conta a importância invulgar do negócio de seguro, profundamente caracterizado pela função social.
Por isso, o direito-dever de ressarcimento há de ser especialmente tutelado e jamais esvaziado, inibido, diminuído, prejudicado.
Não bastasse tudo isso, o transportador responde objetivamente pelos danos e prejuízos causados em decorrência do não aperfeiçoamento da sua obrigação.
O direito do segurador não exsurge do contrato de transporte – que lhe é irrelevante, até por não ser parte –, mas da sub-rogação que se opera por lei e em vigência da apólice de seguro. Todavia, alguns aspectos da infidelidade contratual do transportador danador podem e devem ser aproveitados, sempre em defesa da plenitude do ressarcimento.
Fala-se, por exemplo, da responsabilidade objetiva do transportador por causa da sua condição de devedor de obrigação de resultado, equiparada à de depositário que, por sua vez, é marcada pelos deveres de guarda, conservação e restituição.
Fala-se também em responsabilidade objetiva porque o transportador é protagonista de atividade de risco e, portanto, alguém que se submete a um sistema jurídico-normativo mais rigoroso, conforme o art. 927 do Código Civil.3
De todo modo, ainda que não houvesse em favor do segurador sub-rogado a possibilidade de alegar a responsabilidade objetiva para a busca do ressarcimento em regresso contra o transportador, seu direito poderia, como de fato pode, ser muito bem alinhavado pela regra geral da responsabilidade civil de que trata o art. 186 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”.
Invariavelmente, o dano causado pelo transportador autoriza a ideia de concorrência de responsabilidades, objetiva e subjetiva, sendo certa a presença de alguma conduta especialmente inidônea, ainda que desenhada pela ideia de falha operacional.
Vê-se, então, que é amplo o espectro legal do segurador sub-rogado no efetivo acionamento do seu direito-dever de regresso contra o segurador.
E cabe aqui um testemunho: quase todo litígio de ressarcimento em regresso de segurador sub-rogado na pretensão original do dono da carga (segurado) contra o transportador danador é fadado ao êxito, ao menos em relação ao suporte fático.
Normalmente, o contexto factual é muito favorável ao segurador sub-rogado, até por causa da dinâmica da responsabilidade civil. A imputação, portanto, não é difícil, muito pelo contrário.
Já a possibilidade de o transportador se defender robustamente – insisto, relativamente aos fatos e à imputação de responsabilidade – costuma ser menor e, mesmo, penosa.
Por isso, habilidosamente, os advogados que defendem transportadores (marítimos, aéreos, ferroviários e rodoviários) muito se valem das chamadas questões preliminares, dos temas puramente formais ou de estratégias que escanteiam as verdades fenomênicas, os fatos propriamente ditos; e com isso não raro obtêm êxito.
Não é pequena a plêiade de defesas indiretas. Causa desconforto e até um senso de injustiça, já que a forma se sobrepõe indevidamente à substância e a busca da justiça passa a ser menos importante do que deveria.
Mas é uma estratégia, e não se pode dizer de modo algum que é indevida ou menos digna do que o enfrentamento da questão de fundo, do bem da vida do litígio. E como é significativa a plêiade, apenas um desses temas será neste momento abordado, bem ao sabor do enquadramento pretendido da boa-fé objetiva.
O tema escolhido é a legitimação ativa da seguradora, algo conectado também aos princípios informadores do mutualismo e da sub-rogação.
Ocorrido o sinistro de transporte, o segurador o regula. Estando presente a superposição do clausulado ao ato-fato, procede assim ao pagamento da indenização de seguro, sub-rogando-se nos direitos e ações do segurado (beneficiário) contra o causador do dano, o transportador.
É pela sub-rogação que se exerce o ressarcimento. E é pelo ressarcimento que se garante a higidez do seguro, se protegem os legítimos interesses dos segurados e da sociedade em geral e se obriga o causador do dano a reparar integralmente o que deve.
Sabe-se que a sub-rogação é “típica dos seguros de coisas e seguros financeiros, ou seja, aqueles seguros em que o objetivo é o pagamento de uma indenização proporcional ao dano ou ao prejuízo do segurado. (...) O titular de um bem deve escolher entre reivindicar a reparação do dano diretamente a reparação do dano diretamente ao causador ou optar pelo recebimento da reparação de seu segurador”.4
Disso ninguém duvida. Muito menos da importância do ressarcimento em regresso, a consequência imediata da sub-rogação. O ressarcimento é, em primeira e última análise, a proteção dos interesses do mútuo e da sociedade, bem como justa imputação de responsabilidade ao causador do dano, que não pode se ver impune do seu dever de reparação integral porque alguém foi previdente e contratou o seguro.
O que, infeliz e erradamente, se tem posto em dúvida é a prova da sub-rogação, a comprovação da legitimidade ativa para a causa do segurador.
Tradicionalmente, a comprovação se dava por meio do recibo de quitação, também conhecido como recibo de pagamento de indenização de seguro. Um instrumento físico, datado, assinado por representante do beneficiário da indenização (segurado) e, em caso de pessoa jurídica, até mesmo carimbado.
Ocorre que o antigo recibo faz tempo se encontra em desuso. Até em nome da praticidade e para beneficiar os segurados, passaram os seguradores a transferir diretamente para a respectivas contas-correntes os valores das indenizações. Tudo rápido, eficaz, direto, econômico e simplificado; tempos modernos, métodos modernos.
Os seguradores deveriam ser louvados por isso. Sua conduta muito absorve do princípio da boa-fé objetiva, e tudo o que tem por fim facilitar a vida dos segurados assim é justo, firme e valioso.
Por incrível que pareça, não é o que muitas vezes ocorre. Em vez de serem elogiados, os seguradores sub-rogados são punidos.
Seduzidos pela argumentação dos réus – os quais colocam em dúvida a efetivação dos pagamentos –, os órgãos monocráticos e colegiados do Poder Judiciário entendem que essas transferências não são bastantes para a comprovação formal da sub-rogação.
E, assim enxergando, desqualificam a legitimidade ativa e ferem de morte a pretensão de ressarcimento em regresso de um dado litígio, premiando o formalismo pelo formalismo e prejudicando a substância.
Causadores de danos são indevidamente deixados impunes e as vítimas, ainda que indiretas, danadas novamente.
O princípio do mutualismo é ignorado e todos os segurados imediatamente prejudicados.
A injustiça avoluma-se e o danador não é responsabilizado, tudo porque a tecnologia de informação, praticamente onipresente, não é considerada como válida e eficaz, ainda que escancarada sua obviedade. Exatamente aí que entra em cena o que ora se advoga: o fortalecimento da boa-fé objetiva e a compreensão contextual do sub-rogação atualmente.
Perfeitamente possível invocar a boa-fé objetiva – que já se fez presente na opção do mercado segurador em efetuar pagamentos indenizatórios desmarmorizados e dinâmicos – para afirmar e afiançar que nenhum segurador demanda ressarcimento em Juízo sem para isso estar devidamente legitimado.
Em outros termos: é impossível um segurador pleitear ressarcimento do causador do dano se antes não tiver efetuado o devido pagamento de indenização a quem caiba recebê-lo.
Daí o primado da boa-fé objetiva. Reconhecer essa situação veraz é importantíssimo para que se valorize, com a devida medida, a sub-rogação conforme demonstrada, ainda que por expediente simples e aparentemente generalista.
Quando se coloca em dúvida a transferência bancária como meio ideal e correto, válido e eficaz, de comprovação da sub-rogação, o que se questiona também (e de modo muito errado, de se dizer) é a idoneidade do mercado segurador e a higidez do negócio de seguro. Nenhum setor da economia é mais regulado do que esse.
Regras e atenções especiais, extremamente rigorosas, ortodoxas, inflexíveis, justamente por conta da função social do negócio de seguro, da sua natureza estratégico-econômica e da elevada carga de proteção de atividades em geral que nele se encerra.
O negócio de seguro, aliás, não é apenas fundamentalmente marcado pela função social, mas é ainda caracterizado pelo múnus público. Evidentemente que toda atividade empresarial, econômica, financeira, é regulada e tem algum nível de interesse público; nenhuma, porém, tanto como a de seguro.
Seguradores são, direta ou indiretamente, fiscalizados pelos segurados, corretores de seguros, acionistas, órgãos públicos, privados ou mistos de regulação, resseguradores, autoridades públicas em geral e, também, as do próprio mercado.
O grau de fiscalização é tamanho que não poucas vozes importantes do setor reclamam de certo exagero e do embotamento da atividade, e inibem-se alguns avanços que a todos poderia beneficiar.
De todo o modo, à parte críticas por esses grilhões potenciais, o que se pretende ao afirmar tamanha regulação é mostrar que nenhum segurador ousaria demandar em juízo sem a devida sub-rogação, sem a certeza de pagamento de indenização a quem de direito.
Ainda que algum segurador fosse tomado de uma má-fé inacreditável e ousasse pleitear judicialmente direito sem o poder, as punições seriam tantas e tamanhas que seu desejo seria de imediato afastado, senão por índole, ao menos por cálculo. Pode o segurador que o fizer ser até mesmo descredenciado, depois de pagar pesadíssimas multas.
Por isso tudo, com o perdão pela repetição, que não é retórica, mas necessária e lógica, é que se pode afirmar, com letras de fogo, que nenhum segurador exerce pretensão de ressarcimento em Juízo se, antes, na forma devida, não houver legalmente se sub-rogado.
O fato de a tecnologia atual gerar, sabe-se lá por qual razão, alguma dúvida quanto à efetividade de um pagamento de indenização de seguro, não quer dizer que o pagamento não se fez.
Tem-se, pois, por incogitável a hipótese de um segurador demandar sem legitimidade. E incogitável também deveria ser tal hipótese por parte da Justiça. O comprovante de transferência bancária haveria de ser mais do que bastante para a comprovação. Todavia, como disse certa vez John Lucaks, ao comentar o duelo entre Churchill e Hitler, o incogitável às vezes é cogitável.
Infelizmente. Não só a razão, a tecnologia digital, a dinâmica dos fatos e dos negócios são desprezadas, mas a própria substância, eis que ferida pela forma, ou melhor, por uma visão manifestamente equivocada da forma.
O mercado segurador deveria entabular um estudo e encaminhar aos tribunais do país algum documento oficial atestando a impossibilidade de que um segurador demande em Juízo ressarcimento contra causador de dano sem a devida permissão legal.
As decisões que afirmaram a ilegitimidade por suposta deficiência documental-probatória foram, todas, sem exceção, equivocadas.
Afirma-se isso com profundo respeito e alguma dor. Todo o mundo sabe que o que não está nos autos não está no mundo. Isso não se discute. Mas o problema reside quando se acredita que não está nos autos aquilo que verdadeiramente está, apenas em uma forma que se pensa não ser a adequada, mas que nem por isso deixa de ser correta.
A boa-fé, portanto, há de ser observada e aplicada para se corrigir de imediato essa distorção grave da realidade.
Sabendo-se que nenhum segurador se atreveria a ajuizar ação regressiva de ressarcimento sem, antes, pagar a indenização devida, e, sabendo-se ainda que isso jamais ocorreu na história do Direito em exercício no Brasil, há de ser ter como firme, justo, certo e valioso o comprovante que se coligir aos autos, emprestando-lhe autenticidade por força da teoria do equilíbrio das probabilidades e do princípio da boa-fé.
A mesma boa-fé que informou o mercado segurador a dispensar o uso do oneroso recibo de indenização, facilitando a vida dos segurados e protegendo a natureza com o desuso de toneladas de papel, há de socorrer os segurados sub-rogados em casos de subsistência de dúvidas maliciosamente plantadas pelos réus.
Talvez nem isso fosse necessário se os juízes – em nome da boa vontade, irmã mais velha da boa-fé – deferissem os requerimentos de ofícios aos segurados para confirmações de recebimentos das indenizações nos casos pendentes de maiores esclarecimentos. Como deferi-lo é prática que se tem tornado incompreensivelmente rara, o fortalecimento da boa-fé seria, como quer parecer ser, a solução.
Em verdade, se a boa-fé fosse mesmo observada na urbanidade das partes aos litígios, a sub-rogação dos segurados jamais seria posta em dúvida, pois os réus, causadores de danos, sabem que os seguradores pagaram as indenizações aos seus segurados, as vítimas originais, já que a esmagadora maioria dos litígios é precedida de intensas reclamações extrajudiciais.
O reconhecimento da boa-fé em diferentes momentos é o melhor meio para se prestigiar um documento que não poderia jamais ser posto em dúvida, uma condição sempre presente.
Se não se entende o avanço da tecnologia ou se permite que estratégia processual de urbanidade duvidosa prospere, o Direito se apequena e a Justiça não se faz. Acredita-se piamente neste espaço que a valorização da boa-fé é o bastante para a correção do problema e o aperfeiçoamento do processo judicial.
Note-se que a lei processual civil brasileira5 fala em interesse e legitimidade para postular em Juízo, não tratando da forma supostamente ideal para a comprovação de ambas.
A sub-rogação é a legitimidade e o direito-dever de buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano é o interesse do segurador sub-rogado, defensor direto dos interesses do colégio de seguros e indireto da sociedade.
O direito do segurador nasce da sub-rogação e esta não tem uma forma específica de comprovação. Qualquer meio idôneo, portanto, é válido e eficaz. Sendo assim, não é idôneo a transferência bancária, agora ainda mais simplificada pela instituição do PIX?
Desconsiderar a validade e a eficácia da transferência bancária é desconsiderar o direito de regresso e beneficiar intoleravelmente o causador do dano.
O causador do dano é liberado do dever de reparação civil integral não porque provou não ser culpado ou, se submetido ao regime da presunção legal de responsabilidade, por ter demonstrado a existência de alguma causa legal excludente, mas porque soube plantar uma falsa dúvida e induziu o juiz a erro, ao desprestígio de um instituto bancário utilizado por milhões e milhões de brasileiros todos os dias e que, no caso específico do mercado segurador, foi abraçado para facilitar e melhorar as vidas de segurados e/ou beneficiários.
Seguradores são sobejamente prejudicados porque resolveram ser proativos e guiados pela máxima boa-fé.
O art. 77, I do CPC6 pode e deve ser interpretado e aplicado à luz do que ora se advoga sobre uma nova leitura do princípio da boa-fé objetiva em relação aos pleitos de ressarcimento em regresso e à comprovação da sub-rogação do segurador.
O direito de defesa é amplo, até porque derivado de um princípio maior, o due process of law, e tem a natureza jurídica de garantia fundamental constitucional. É amplo, mas não tolera nada que não se ajuste ao que se pode chamar de componente de lealdade do processo.
Por mais que o réu tenha o direito de se defender e de colocar em dúvida a legitimidade e o interesse do adversário, é mais do que certo de que, no caso do segurador sub-rogado, esses questionamentos e dúvidas põem ambos os pés na fronteira da litigância temerária, pelos motivos já expostos.
Privilegiando a boa-fé e consciente de o segurador jamais litigar senão plenamente investido das características previstas no art. 17 do CPC, o juiz há de punir o réu que busca o falso incidente processual sobre a legitimidade, fazendo-o no modo previsto no rol do art. 77.
Mudanças significativas da mentalidade e da prática jurídica advirão dessa leitura do Direito Processual e do Direito Civil (Direito do Seguro, em especial), evitando-se a primazia indevida e nada gloriosa da forma sobre a substância, valorizando-se a modernidade do mundo dos fatos e respeitando-se os direitos e interesses do mútuo e da sociedade.
A inexistência da legitimidade e do interesse, que pode ser constatada em muitos casos, jamais se vê nos pleitos de ressarcimento ajuizados por seguradores sub-rogados contra causadores de danos. Jamais. Crer nisso é um verdadeiro salto de (boa) fé.
A boa-fé, entre suas muitas definições e inteligências, é, segundo a Real Academia Española, o “Estándar de conducta ética que debe presidir el ejercício de los derechos subjetivos y los procedimentos y práticas administrativas y processuales.”7
A Espanha possui um dos mais avançados ordenamentos jurídicos da Europa e do mundo, uma Justiça forte e muito bem ordenada, e tem como um dos pontos fundamentais a valorização da boa-fé em muitos dos seus códigos e leis.
Esse padrão ético a presidir o exercício de direitos, procedimentos e práticas em geral, especialmente as processuais, pode, segundo o Código Civil e a Ley 30/92 (art. 2), nos processos daquele país de âmbito administrativo sancionador, atenuar ou, mesmo, excluir a responsabilidade do acusado, atendendo ao princípio da proporcionalidade.
Vamos ainda além. O princípio tem singular importância do Direito Tributário, relativamente às garantias dos contribuintes, conectando-se ao princípio da razoabilidade. Há uma presunção de retidão e ordenança, independentemente de condições e fatos subjetivos.
Enfim, como também afirmam os acadêmicos espanhóis, cujo trabalho é diretamente referendado pelo Consejo General del Poder Judicial, a boa-fé objetiva é uma atuação “que se adecúa a la buena fe, com independência del comportamiento personal del sujeto. CC, arts. 1107, 1688, 1705”.8
Invocando-se a excelente experiência judicial espanhola e se premiando princípios como os da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como se destacando o sentido de sua forma objetiva, pode-se perfeitamente bem advogar a validade e a eficácia de qualquer meio probatório da sub-rogação, ainda que aparentemente esquálido e despido de ortodoxia, porque a boa-fé se impõe, independentemente do comportamento pessoal do sujeito e da instrumentalidade do pagamento da indenização de seguro.
Nada disso, aliás, é novo. O antigo Direito Romano e o Direito Canônico previam e preveem a força condicionante da boa-fé, sua objetividade. A boa-fé fé se presume sempre, a menos que se prove a má (Dino: Commentaria in regulas iuris Pontificii, reg. 82, 5). A sentença latina “bona fider semper presumatur, nisi mala adesse probetur”.
Assim como a Beleza, a boa-fé prevalece. A beleza salvará o mundo, disse Fiódor Dostoievsky; a boa-fé salvará os litígios do formalismo que só promove a injustiça.
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1 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
2 NOTA: a atenção deste artigo são os litígios envolvendo o ressarcimento da carteira de seguros de transportes. O segurador indeniza o dono da carga por faltas e/ou avarias ocorridas no curso de um determinado transporte (qualquer que seja o modo). Sub-roga-se e tem o direito-dever de buscar o ressarcimento integral. Seu direito nasce da sub-rogação e seu dever é um ato de lealdade ao mútuo. O transportador – que responde objetivamente pelos danos e prejuízos – tem o dever de reembolsar a indenização de seguro.
3 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
4 Direito do Seguro, 8ª. ed. – Rio de Janeiro: Funenseg, 2006, p. 58
5 Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade. (CPC)
6 Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade;
7 Diccionario del Español Jurídico, Santiago Muñoz Machado: Espasa Libros, S.L.U., Barcelona, 2016.
8 Idem, Ibidem.