Migalhas de Peso

A profissionalização para a proteção das comunidades religiosas

Antes intocáveis, as comunidades religiosas estão sendo constantemente alvo de ataques estatais e da população, muito por conta da informalidade que pairou durante anos.

28/1/2021

Nos dias atuais, a separação entre o Estado e a religião no Brasil se torna cada vez mais latente, deixando as comunidades religiosas de possuir o status outrora existente de “intocável” e passando a serem vistas por alguns quase como inimigas.

Sem fazer qualquer juízo acerca das razões e valores, são notórias as crescentes investidas da autoridade estatal e de grande parte da população contra o que eles chamam de “privilégios da religião”, motivadas algumas vezes por convicções pessoais amplamente debatidas, mas, quase sempre justificadas pelo apontamento de fraudes cometidas no gozo de tais “privilégios”.

Como exemplo, temos a questão das imunidades tributárias dos templos religiosos, muito debatida atualmente por conta dos diversos escândalos relacionados a aquisição de imóveis de luxo em nome das comunidades religiosas, utilizados exclusivamente por seus líderes.

Face a essa crescente onda de desconfianças e restrições, entendo não haver alternativa às comunidades religiosas senão a profissionalização de sua estrutura organizacional, tornando muito mais clara a forma com que a comunidade é gerida.

Tomando por base a comunidade evangélica, vislumbro inexistir espaço atualmente para as igrejas informais, levando em conta os riscos existentes, sendo recomendável a sua constituição legal, com a efetivação do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, formação de diretoria, conselho fiscal e, contabilidade organizada, evitando-se alegações acerca de eventual lavagem de dinheiro, entre outras.

É ainda crucial a separação entre o patrimônio pessoal dos líderes e o patrimônio da comunidade religiosa, sendo que somente a última deve gozar de imunidade tributária, devendo todas as aquisições serem condizentes com a atuação da comunidade.

Nesse sentido, ainda no exemplo da comunidade evangélica, pastores e obreiros podem ser remunerados sem problemas, contanto que se respeite as legislações laborais e o estatuto social da igreja. Remunerações informais e em dinheiro, sem registro, devem ser evitadas.

Todo o dinheiro que entra e sai da comunidade religiosa deve ser contabilizado e escriturado de acordo com a sua natureza (dízimo, oferta, outros, etc.) e sempre que possível identificada a sua origem. Ex. Valor de dízimo recebido do membro X, relativo ao mês Y, no valor de Z, na data A.

Quanto ao dízimo, é importante uma ressalva, eis que tal temática tem sido frequentemente instada nos tribunais do país, tanto no que concerne a sua análise acerca da natureza jurídica (doação ou dever de consciência religiosa), quanto ainda por conta de diversos pedidos de ex-membros, muitas vezes aceitos, que alegam terem sofrido “estelionato religioso”, somente tendo contribuído, segundo eles, por falsas promessas de prosperidade financeira ou ainda mediante ameaça de não ser “amaldiçoado”.

Diante disso, minha sugestão é a elaboração de um termo de dizimista, a ser assinado por todos aqueles que o forem, onde conste expressamente as razões de ser dizimista, não se tratando obrigatoriamente de questões a serem cumpridas na vida terrena. Nestes casos, a informação correta e precisa é a melhor ferramenta para elidir demandas.

Também deve ser ressaltada a impossibilidade de doação da totalidade do patrimônio, devendo constar no termo qual a proporção do patrimônio que aquela doação representa.

Outro ponto que está em voga no Brasil é a tese do denominado “Abuso do Poder Religioso”, utilizada de forma extensiva ao abuso de poder, previsto na LC 64/90, no que concerne aos pleitos eleitorais, tendo sido amplamente debatida a possibilidade de enquadramento das autoridades religiosas no artigo 22 da mencionada Lei, quando, na qualidade de líderes ou representantes da comunidade religiosa, orientam os seus membros a votar em determinado candidato.

Mencionada tese foi rejeitada pelo TSE, no julgamento do REspe 8285, pelo entendimento de que a autoridade religiosa não poderia ser enquadrada como autoridade oficial, para fins de cometer abuso de poder. Mesmo assim, a ventilação da mencionada tese fica de alerta para as autoridades religiosas, acerca de possíveis implicações no âmbito do direito privado.

Desta feita, sugere-se que opiniões pessoais não sejam veiculadas nos meios oficiais das comunidades religiosas, e, quando tal, fique claro que se trata de opiniões e não orientações.

Outro ponto que merece destaque se refere aos dados coletados pelas comunidades religiosas, no âmbito de sua atuação, e o seu respectivo armazenamento.

Conforme já ressaltado em artigo de minha autoria publicado neste rotativo1, entendo que a adequação das comunidades religiosas, de todos os portes, a LGPD, é de fundamental importância para evitar possíveis penalizações, tal como já ocorrido na Europa, utilizando-se como exemplo o case das testemunhas de Jeová.

Neste diapasão, é cediço que haverá um conflito futuro entre a privacidade e a liberdade de religião, e, em um momento em que se tornou frequente o debate acerca da influência da religião nas pessoas, certamente as comunidades religiosas serão alvo de investigação por parte da Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

Isso porque, a LGPD classifica como sensível o dado pessoal sobre “origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”.

No caso das Comunidades Religiosas, uma simples lista com os nomes dos membros já configura o tratamento de dados sensíveis, eis que, indiretamente, estar-se-á diante de dados que demonstram a convicção religiosa.

O ideal é que todos os dados colhidos pelas Comunidades Religiosas estejam embasados em uma das hipóteses autorizadas pela LGPD, tais como: (i) consentimento do titular; (ii) cumprimento de obrigação legal; (iii) execução de contrato; (iv) exercício regular de direitos; e, (v) legítimo interesse.    

Utilizando novamente a comunidade evangélica como exemplo, podemos armazenar os dados dos dizimistas mesmo sem o consentimento do titular, com base no exercício regular de direito em processo judicial, face a possibilidade de eventual pedido de restituição, conforme já citado acima, ou ainda, com base no cumprimento de obrigação legal, consistente em prestar informações as autoridades sobre eventual lavagem de dinheiro.

Lembrem-se que, quando tratamos da LGPD, o ponto principal a ser verificado é a amplitude do direito à informação, devendo os titulares dos dados estarem sempre cientes de quais, onde, e como são armazenados seus dados. Nesse sentido, faz-se crucial a adoção por parte das comunidades religiosas de uma política de proteção de dados, a ser elaborada casa-a-casa, de acordo com o porte e a capacidade do local. Não há modelos prontos, tampouco, regras absolutas sobre o tema, podendo os dados ser armazenados de maneira telemática ou física, desde que cumpridos os requisitos legais, de modo a gerar a segurança necessária.

Desta forma, concluímos que a profissionalização das comunidades religiosas é medida necessária para a manutenção de suas operações de maneira segura, elidindo-se os riscos advindos dos conflitos existentes entre o Estado-população-religião, além de trazer maior confiança acerca da licitude das atividades das comunidades religiosas.  

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1- DA LIBERDADE RELIGIOSA À TRANSFERÊNCIA INTERNACIONAL DE DADOS, O QUE A UNIÃO EUROPEIA PODE NOS ENSINAR SOBRE A LGPD. Disponível aqui. 

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European Privacy Framework. Disponível aqui.

Governo Federal. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 – Lei Geral de Proteção de Dados. Disponível aqui.  acessado no dia 22/09/2020;

KRUG, Clara. A segurança digital da Europa. Disponível aqui. .

Lex Magister - A Diretiva Europeia sobre Proteção de Dados Pessoais - uma Análise de seus Aspectos Gerais. Disponível aqui. .

STF - ARE: 1141960 RS - RIO GRANDE DO SUL 0044781-56.2007.8.21.0017, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 26/06/2018, Data de Publicação: DJe-129 29/06/2018.

BET, Thiago Barelli. Disponível aqui. 

Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-25/17. Disponível aqui.  acessado no dia 22/09/2020;

Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-311/18. Disponível aqui. acessado no dia 22/09/2020;

Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-708/18. Disponível aqui. acessado no dia 22/09/2020;

Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-507/17. Disponível aqui. acessado no dia 22/09/2020;

Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-136/17. Disponível aqui acessado no dia 22/09/2020;

Tribunal de Justiça da União Europeia. Processo C-272/19. Disponível aqui.  acessado no dia 22/09/2020;

União Europeia. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho. Disponível aqui..

 

Thiago Barelli Bet
Sócio do escritório Barelli & Gastaldello Advogados Associados. Advogado no Brasil e em Portugal, é especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil. Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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