Migalhas de Peso

A “lei da liberdade econômica” e a teoria geral do contrato

Manequim velho com roupa nova ou manequim novo com roupa velha?

27/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução

Depois de haver feito um estágio dentro da roupa da medida provisória 881, de 30/4/19, esta se converteu na lei 13.874, de 20/9/19 – Lei de Liberdade Econômica - LLE, para a qual muitos comentaristas têm torcido o nariz, dizendo que ela não trouxe nada de novo, não tendo passado de mais do mesmo. Há razão nessa visão, mas também não há. A esse respeito o herói indeciso do bardo inglês diria: “Ser novo e/ou não ser novo, eis a questão”.

Conforme será visto adiante no exame dessa lei, não há dúvida de que a maioria dos seus dispositivos encontra base em outro anterior sobre o mesmo tema, seja especificamente (leis e regulamentos), seja mais frequente e indiretamente, fundados dispositivos na Constituição Federal ou em princípios gerais de direito.  Mas há novidades, ainda que não absolutas, sabendo nós que, inspirados na física e na química, no direito nada se cria, nada se perde, tudo se aproveita.

No sentido acima vemos que a ementa da referida lei a ela se refere como “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, o que poderia ser entendido como uma construção organizativa e didática e não com a natureza de institutos jurídicos novos.

Dos pontos de vista de organização dos temas afetos a LLE e ao seu papel didático (que tem os operadores do direito como destinatários), ela se reveste de grande importância. Isto porque coloca aqueles dentro de parâmetros mais rígidos para a sua atuação, dificultando intepretações afastadas do sentido da lei em sentido amplo ou restrito, especialmente quando se está diante de conceitos abertos em relação aos quais o inferno tem sido o limite. Inferno para os que são apanhados na teia de argumentos e de decisões que causam grande confusão e insegurança nos mercados aos quais se aplicam, aumentando o que se chama de custos de transação.

Como agentes ativos da interpretação e da aplicação da lei a LLE tem os juízes e os agentes público como os seus destinatários diretos, os quais, muitas vezes, agem como verdadeiros trapezistas do direito, fazem sobre a rede normativa por ele constituída piruetas exegéticas que afrontam qualquer padrão de razoabilidade. Isto porque, diante de conceitos abertos, os macaquinhos que se encontram no sótão de tais operadores jurídicos (os seus neurônios) trabalham preordenados por preconceitos de toda a espécie, dos quais decorre uma interpretação viezada da norma e uma consequente aplicação além ou aquém do que havia sido pretendido pelo legislador. Esses preconceitos são de natureza diversa, contando-se entre eles o background cultural, a ideologia, a natureza de cada um, a comodidade e até a moda jurídica.

Isso é fácil de entender, olhando o modelo político americano, mais fechado do que o nosso no plano das convicções. Tomemos como parâmetro a sua constituição federal (coitadinha, com tão poucos artigos!). Ao resolver uma questão que a tomará como fundamento, a decisão será certamente bem diversa para um julgador republicano ou democrata. A letra é a mesma, mas sua leitura bem diferente, até mesmo oposta. Não é por outra razão que se verifica o esforço dos presidentes de indicarem para aquela Suprema Corte juízes que se encaixem aos seus intentos. No Brasil, como se sabe, aquele modelo tem semelhanças que, aqui, são verdadeiros desastres, com candidatos ao STF fazendo campanhas abertas em troca de votos, ideologia à parte, muito à parte.

Analisemos a lei em questão, ainda que brevemente, dadas as limitações deste texto, verificando que em sua estrutura ela apresenta disposições gerais (incluindo os princípios que adota), a declaração dos direitos de liberdade econômica, as garantias da livre iniciativa e a análise de impacto regulatório. Do ponto de vista funcional, a par das normas que dela fazem parte integrante, os seus objetivos foram buscados pela nova redação dada a outros textos legais, especialmente no que interessa à teoria geral do contrato, aqueles referentes ao Código Civil. Nossas considerações presentes se limitarão às normas aplicáveis ao contrato.

1. Disposições gerais – Os objetivos e princípios da LLE (arts. 1º e 2º)

A Declaração de Direitos de Liberdade Econômica estabelece taxativamente normas de proteção à livre inciativa, ao livre exercício da atividade econômica e diretrizes sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, tomando como fundamentos dispositivos da CF, do que decorre que não se cuida de ímpar novidade. Em tal campo ela faz, digamos assim, um reforço das normas da nossa Lei Maior. Mas isso se revelava necessário? Afinal de contas, legem habemus.

Acho que sim, como um reforço didático mais próxima a LLE do usuário da lei do que a CF e os princípios gerais de direito. Convenhamos, a um juiz é muito mais cômodo julgar com base em uma súmula, em um precedente (e até mesmo um enunciado, cuja força normativa é absolutamente nula) e em uma lei do que buscar a fonte de sua convicção nas fontes constitucionais ou principiológicas da ciência jurídica, um tanto distantes e até mesmo um pouco etéreas. Ora, para colocar o julgador mais perto de suas referências, agora temos a LLE em tudo aquilo a que ela se aplica.

O campo de aplicação da LLE são o Direito Civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho, o que nos mostra que ela não tem complexo de incompletude normativa, cuja aplicação e interpretação ficam por ela delineados. Suas normas são destinadas ao Estado, para o fim da sua aplicação e ordenação, inclusive quanto ao exercício das profissões, do comércio, da atuação das juntas comerciais, dos registros públicos, do transporte e da proteção ao meio ambiente. Uma tarefa e tanto.

A importância da colocação do Estado como destinatário da LLE está na busca da redução – pelo menos em parte – do chamado custo Brasil, que envolve uma burocracia arcaica, responsável pelos elevados custos de transação para a realização de atividades econômicas em nosso país, tão abaixo de uma linha razoável, quando comparado com o resto do mundo. Cabe dizer que nesse sentido temos sido um dos párias da economia (para usar um termo em moda nestes dias).

No sentido acima está disposto na LLE que todas as normas de ordem pública sobre atividades econômicas privadas devem ser obrigatoriamente interpretadas em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, como também deve acontecer quanto aos investimentos e à propriedade. Uma mudança de cento e oitenta graus, passando o Estado a ser agente passivo do tratamento legal e não o particular nas relações entre eles estabelecidas. E boa-fé, ao lado do respeito aos contratos por parte dos agentes públicos, tem sido uma coisa tão rara quanto o valioso selo Olho de Boi aqui emitido em 1843, o segundo do mundo.

Como nada é perfeito – e nesse caso com toda a razão – há restrições no tocante à abertura trazida pela LLE ao direito tributário, ao direito financeiro, e aos Estados, Distrito Federal e aos municípios, que aqui não compete pormenorizar.

Na sequência, a LLE determina os seus princípios:

I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;

II - a boa-fé do particular perante o poder público;

III - a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e

IV - o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.

Parágrafo único. Regulamento disporá sobre os critérios de aferição para afastamento do inciso IV do caput deste artigo, limitados a questões de má-fé, hipersuficiência ou reincidência.

Tais princípios falam por si mesmos. Evidentemente a vulnerabilidade do particular diante do Estado não pode abrir as portas para o oportunismo que tanto conhecemos. Como sabemos, o oportunismo é altamente deletério, abrindo caminhos para o alcance de benefícios não estendidos por quem dele faz uso, tal como foi visto há pouco tempo em relação ao benefício emergencial e aos fura-fila das vacinas contra a covid-191.

Segue-se a declaração dos direitos de liberdade econômica, mais uma vez com fundamento no art. 170 da CF, reconhecidos em favor de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, como sejam:

I – Atividades de baixo risco – que elimina aspectos da burocracia para o seu exercício, condicionalmente ao recurso pelo agente de bens de sua propriedade ou pelo recurso a contratos. Tais atividades serão definidas por regulamento.

II – Liberdade quanto a horários e dias de semana – sob esse aspecto pode o agente econômico escolher os horários e os dias em que exercerá a sua atividade, inclusive em feriados, sem custos ou encargos adicionais. Devem ser atendidas as normas sobre a proteção do meio ambiente, poluição e perturbação do sossego público; referentes a contratos; ao regulamento de condomínios; ao direito real (incluído o de vizinhança); e à legislação trabalhista.

III – Liberdade para a fixação de preços – válida para mercados não regulados, a ser exercida como consequência de alterações da oferta e da demanda. Isto tem a ver com a proibição quanto à pretensão de obter lucros abusivos.

IV – Tratamento isonômico por parte da administração pública – aplicável a atos de liberação da atividade econômica quando exigida autorização estatal, e vinculada a uma jurisprudência administrativa voltada para a isonomia. Fundamento preexistente desse direito concerne ao princípio da impessoalidade, que deve ser praticado pela administração pública.

V – Presunção de boa-fé no exercício da atividade econômica – aplicável sempre que estejam presentes dúvidas sobre a interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico, preservando-se a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição em contrário (neste caso vale o pacta sunt servanda).

VI – Liberdade de criação – como fim de que o agente possa desenvolver, executar, operar ou comercializar novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente. Essa liberdade será objeto de regulamento, que disciplinará os requisitos para aferição da situação concreta, os procedimentos, o momento e as condições dos efeitos correspondentes.

O importante neste passo é o reconhecimento da revogação fática de normas tão somente regulamentares como resultado de sua superação tecnológica em âmbito internacional. Uma questão jurídica que dependerá de prova casuística, quando houver a oposição de algum interessado.

VII - Negócios jurídicos empresariais paritários - Liberdade na celebração de contratos, de forma que o estipulado pelas partes prevaleça sobre as normas de direito empresarial correspondentes, a serem aplicadas de forma subsidiária, exceto os limites normativos de direito público.

Em regra, deve ser reconhecida a paridade entre as partes em negócios jurídicos, exceto se houver norma específica em caso contrário. Dessa forma também fica afastada a noção do empresário hipossuficiente em relações contratuais quando, de um lado, esteja um grande empresário, e do outro, um micro, pequeno ou médio empresário, a não ser quando ficar caracterizado abuso do “grande” em detrimento do “pequeno”.

Note-se, a propósito, que um grande empresário poderá em um caso concreto estar subordinado a um pequeno que, por exemplo, seja o titular de uma patente necessária à exploração do negócio pela outra parte. Dessa forma, deve-se sempre atentar para a situação do caso concreto.

VIII – Administração pública vinculada ao cumprimento de prazos – Nas situações em que o particular necessitar de manifestação de agentes públicos para liberação de atividades, uma vez que tenha cumprido todas as exigências pertinentes, a Administração Pública é obrigada a estipular um prazo para a sua decisão o qual, uma vez vencido sem outra exigência, implica na aprovação do pedido feito.

Estamos aqui diante de uma verdadeira revolução nas relações entre o Estado e o particular que sempre se via em condição de inferioridade e sem condições de exigir a prestação que lhe era devida.

IX – Proibição da exigência de certidões sem a expressa previsão legal – Norma que claramente desburocratiza a atividade do agente e reduz os seus custos.

2. Mudanças legislativas com implicações na Teoria Geral do Contrato (art. 7º)

Nesse plano foi alterado o artigo 421 do Código Civil e acrescentado o 421-A.

A mudança no primeiro correspondeu à inserção do parágrafo único, tendo restado a seguinte redação:

Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.”

A redação anterior era um pesadelo para os agentes econômicos, uma vez que a liberdade contratual havia ficado subordinada ao atendimento da função social do contrato, conceito aberto e indeterminado sobre o qual foram escritas centenas de páginas, longe os comentadores da construção de um entendimento uniforme2.

Para este autor, em resumo, a função social do contrato em geral é a de proporcionar que o seu programa econômico seja realizado no benefício das partes. E sob esse aspecto cada contrato na sua espécie tem um programa econômico próprio. Não tendo assim sido reconhecido por boa parte da jurisprudência, instaurou-se o caos sobre a interpretação da aludida expressão o que, como sempre, gerou insegurança, incerteza e aumento dos custos de transação na celebração de contratos.

Ora, bem a propósito, o parágrafo único veio delimitar o papel do julgador pelo estabelecimento da norma de uma intervenção mínima no regramento dos contratos, estabelecendo o padrão de que a sua revisão ficava condicionada a situações de natureza excepcional, ou seja, aquelas que fogem à normalidade dos negócios, tal como se verificou a pandemia do covid-19.

Além disso, conforme já foi mencionado linhas acima, foi determinado o reconhecimento pelo novo art. 421-A da paridade e simetria dos contratos civis e empresariais, conforme o seu texto, abaixo:

Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;

II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.

A nova regra, portanto, é da paridade e simetria desses contratos, colocadas as partes em igualdade de condições em situações normais de contratação. O afastamento dessa presunção (portanto, de natureza relativa) é condicionado à verificação do caso concreto que a afastem, bem como o tratamento jurídico presente em leis especiais, como é o caso do Direito do Consumidor que submete os contratos a outra tutela legal.

Buscando afastar o subjetivismo do juiz na interpretação dos contratos, quanto às suas cláusulas e aos seus pressupostos de revisão ou de resolução, foi dado o direito às partes de estabelecerem previamente parâmetros objetivos para essas finalidades. Como efeito temos a geração de segurança e de certeza quanto ao entendimento da vontade das partes dando-se a redução dos custos de transação. É claro que as partes devem zelar para que os critérios adotados sejam efetivamente objetivos, com o afastamento de uma análise subjetiva, sempre incerte e insegura quanto à sua construção.

Terceiro cuidado do legislador foi para o campo da alocação de riscos, que sempre deve ser definida pelas partes, a ser observada pelo julgador. Todo contrato apresenta determinado risco de inadimplemento de ambas as partes, o que ocorre naqueles de execução diferida ou continuada no tempo. A situação econômica de base pode mudar e quando se está no plano do risco e não da incerteza esse aspecto pode ser mensurado ou estabelecido segundo critérios objetivos, não sendo depois disso permitido ao julgador deles fugir.

Finalmente, a revisão contratual ficou subordinada à verificação de uma excepcionalidade e sempre limitada nos seus efeitos.

Conclusão

A LLE repetiu normas, desde a CF, passando por leis ordinárias e chegando ao regulamento. Isso é reconhecido. De outro ela trouxe coisas novas e o resultado deve ser tomado como positivo. Restará ver, passado mais algum tempo de sua vigência e por meio do recurso à jurimetria, se ela terá causado o efeito pretendido ou se ficou no campo das boas intenções. 

Em próximo texto serão versados os demais temas da LLE.

_________

1 A esse respeito encontra-se notícia no jornal O Estado de São Paulo de 26/1/21 sobre um novo negócio em Portugal, praticado por proprietários de cães, que os alugam para terceiros para que possam sair de casa, em um caso de abertura das normas sobre as restrições do ir e vir. Afinal de contas, cães não sabem ir ao banheiro.

2 Veja-se a esse respeito nosso e de Rachel Sztajn “Teoria Geral do Contrato – Fundamentos da Teoria Geral do Contrato”, Ed. RT, São Paulo, 2ªed. Revista, atualizada e ampliada, São Paulo, 2014, pp. 181 e segs.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

O SCR - Sistema de Informações de Crédito e a negativação: Diferenciações fundamentais e repercussões no âmbito judicial

20/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024