Migalhas de Peso

Em busca de solução consensual da isenção tributária transversa

Entende-se por isenção tributária transversa a renúncia fiscal realizada por ente tributante competente, que, por via reflexa, causa impacto em outro ente, o qual faria jus, originalmente, ao repasse de percentual do tributo objeto do benefício fiscal.

19/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Fazer cortesia com chapéu alheio é um dos ditos populares mais ouvidos em matéria de federalismo brasileiro. Com mais intensidade ainda em matéria de renúncia fiscal, em que pese a literalidade da impossibilidade de isenção fiscal heterônoma.1

Por óbvio que a qualidade dos administradores públicos (e/ou das advocacias públicas) não deveria permitir tal violação a dispositivo constitucional, a saber, o inc. III, do art. 151. Contudo, não são poucos os exemplos de isenção transversa que deixam gestores dos chamados entes menores com o “pires na mão”, como denota outro conhecido dito popular.

Entende-se por isenção tributária transversa a renúncia fiscal realizada por ente tributante competente, que, por via reflexa, causa impacto em outro ente, o qual faria jus, originalmente, ao repasse de percentual do tributo objeto do benefício fiscal. Aqui, vale um destaque prévio: benefícios fiscais são instrumentos legítimos de planejamento financeiro e devem ser objeto de governança hábil a ensejar o cumprimento dos fins para os quais foram concebidos.

Um exemplo que se pretende analisar diz respeito à isenção fiscal de tributos que dizem respeito a verbas objeto de redistribuição constitucional de receita. Tal fato ocorre, não só em relação a tributos federais, como o imposto de renda, como também no que respeita aos tributos estaduais, como o IPVA. Por óbvio que a isenção transversa só se verifica nos casos em que a receita oriunda dos tributos é compartilhada com Estados e Municípios.

A máxima seguida é “quem tem o poder de tributar, também tem o poder de isentar”. Entretanto, tais isenções causam impactos indiretos nos entes que dependem de repasse. O Supremo Tribunal Federal tem julgados oscilantes em relação à matéria. Ora entende que falece aos Estados e municípios questionar a legitimidade de isenção concedida, como decidido no  Recurso Extraordinário 705.423, em regime de repercussão geral. Outras vezes, reconhece a obrigatoriedade de compensação, tendo em vista a frustração pelo não auferimento de receita. Consulte-se, nesta hipótese, o Ag. Reg. no RE 1.251.766/CE.

A solução deste impasse parece que deve ser encaminhada através do diálogo, devendo os entes afetados serem ouvidos previamente no bojo de deliberação sobre a política pública. A solução consensual permitirá alcançar melhores níveis de eficiência para todos os envolvidos.

Importante para tanto que, a título de lege ferenda, se fomente a celebração de convênios para deliberação sobre isenções fiscais que digam respeito a tributos que causem impacto negativo no orçamento de Estados e municípios.

Todavia, em face dos interesses arrecadatórios envolvidos e da conveniência de se conceder isenções a título de incentivo à implantação de indústrias, por exemplo, uma alternativa poderá consistir na edição de lei nacional regulamentando o procedimento a ser adotado. A instituição de critérios confiáveis pelo Poder Legislativo não fere a autonomia e a independência dos entes federados, uma vez que deriva de um poder legitimamente eleito para o fim de legislar sobre interesses de toda a sociedade. Pelo contrário, estar-se-ia fomentando o federalismo de cooperação e, ao mesmo tempo, evitando conflitos entre os entes federativos, desde que o processo deliberativo leve em consideração balizas seguras visando, de fato, ao aperfeiçoamento da accountability.

Contudo, não parece ser condição sine qua non nem suficiente que União, Estados e municípios se valham do diálogo e que cheguem ao desejado consenso no que tange à concessão de isenções.

Parece, ainda, de bom tom que as decisões tomadas pelo Poder Judiciário sejam de tal forma que sirvam de orientação para a solução definitiva dos conflitos. Com efeito, a lógica das soluções dialogadas deve ter supremacia sobre: (I) reconhecer o direito à compensação, desequilibrando o planejamento financeiro do ente maior; (II) declarar inexistente o direito subjetivo à compensação, desequilibrando, de outro lado, o planejamento financeiro do ente prejudicado.

De todo modo, as soluções adotadas pelo Supremo Tribunal Federal constituem eterno desafio a qualquer sorte de planejamento financeiro, palavra de ordem na concretização de direitos fundamentais, na qualidade dos objetivos maiores e fundantes da República Federativa brasileira.

Há muito se espera da Administração Pública um planejamento consentâneo com os objetivos, metas e possibilidades financeiras reais. Legitimar a administração pública a impor medidas legislativas baseadas em mera liberalidade, sem levar em consideração a consequência sobre os demais, é desguarnecer de tutela jurídica da legítima expectativa, sem qualquer domínio final sobre o fato, os entes prejudicados, que muito dependem de tais recursos.

Sem dúvida, o ente tributante não tem capacidade institucional para fazer a avaliação das consequências sobre os demais decorrentes da isenção concedida. Por isso, é fundamental, o diálogo, seja direto, seja através dos representantes do povo. Com isso, serão apresentadas e sopesadas as consequências daquela renúncia, assegurando, inclusive, o cumprimento do disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Por certo, soluções consensuais são mais complexas do que o simples “uso da canetada”, mas se o Brasil pretende, de fato, levar a efeito a opção democrática eleita pela Constituição Federal de 1988, precisará passar pelo processo de governança pelas razões públicas, que tem por base o diálogo.

É preciso que os ditames do federalismo de cooperação sejam trazidos para a realidade da Administração Pública. O seu uso meramente retórico e altamente abstrato não dá conta de solucionar questões complexas da sociedade.

_________

1 Consistente, em brevíssima síntese, na impossibilidade de um ente federativo conceder isenção de tributo que não seja de sua competência.

Adilson Rodrigues Pires
Advogado. Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Presidente da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do IAB. Vice-Presidente da ABDF.

Thaís Marçal
Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.

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