Fazer cortesia com chapéu alheio é um dos ditos populares mais ouvidos em matéria de federalismo brasileiro. Com mais intensidade ainda em matéria de renúncia fiscal, em que pese a literalidade da impossibilidade de isenção fiscal heterônoma.1
Por óbvio que a qualidade dos administradores públicos (e/ou das advocacias públicas) não deveria permitir tal violação a dispositivo constitucional, a saber, o inc. III, do art. 151. Contudo, não são poucos os exemplos de isenção transversa que deixam gestores dos chamados entes menores com o “pires na mão”, como denota outro conhecido dito popular.
Entende-se por isenção tributária transversa a renúncia fiscal realizada por ente tributante competente, que, por via reflexa, causa impacto em outro ente, o qual faria jus, originalmente, ao repasse de percentual do tributo objeto do benefício fiscal. Aqui, vale um destaque prévio: benefícios fiscais são instrumentos legítimos de planejamento financeiro e devem ser objeto de governança hábil a ensejar o cumprimento dos fins para os quais foram concebidos.
Um exemplo que se pretende analisar diz respeito à isenção fiscal de tributos que dizem respeito a verbas objeto de redistribuição constitucional de receita. Tal fato ocorre, não só em relação a tributos federais, como o imposto de renda, como também no que respeita aos tributos estaduais, como o IPVA. Por óbvio que a isenção transversa só se verifica nos casos em que a receita oriunda dos tributos é compartilhada com Estados e Municípios.
A máxima seguida é “quem tem o poder de tributar, também tem o poder de isentar”. Entretanto, tais isenções causam impactos indiretos nos entes que dependem de repasse. O Supremo Tribunal Federal tem julgados oscilantes em relação à matéria. Ora entende que falece aos Estados e municípios questionar a legitimidade de isenção concedida, como decidido no Recurso Extraordinário 705.423, em regime de repercussão geral. Outras vezes, reconhece a obrigatoriedade de compensação, tendo em vista a frustração pelo não auferimento de receita. Consulte-se, nesta hipótese, o Ag. Reg. no RE 1.251.766/CE.
A solução deste impasse parece que deve ser encaminhada através do diálogo, devendo os entes afetados serem ouvidos previamente no bojo de deliberação sobre a política pública. A solução consensual permitirá alcançar melhores níveis de eficiência para todos os envolvidos.
Importante para tanto que, a título de lege ferenda, se fomente a celebração de convênios para deliberação sobre isenções fiscais que digam respeito a tributos que causem impacto negativo no orçamento de Estados e municípios.
Todavia, em face dos interesses arrecadatórios envolvidos e da conveniência de se conceder isenções a título de incentivo à implantação de indústrias, por exemplo, uma alternativa poderá consistir na edição de lei nacional regulamentando o procedimento a ser adotado. A instituição de critérios confiáveis pelo Poder Legislativo não fere a autonomia e a independência dos entes federados, uma vez que deriva de um poder legitimamente eleito para o fim de legislar sobre interesses de toda a sociedade. Pelo contrário, estar-se-ia fomentando o federalismo de cooperação e, ao mesmo tempo, evitando conflitos entre os entes federativos, desde que o processo deliberativo leve em consideração balizas seguras visando, de fato, ao aperfeiçoamento da accountability.
Contudo, não parece ser condição sine qua non nem suficiente que União, Estados e municípios se valham do diálogo e que cheguem ao desejado consenso no que tange à concessão de isenções.
Parece, ainda, de bom tom que as decisões tomadas pelo Poder Judiciário sejam de tal forma que sirvam de orientação para a solução definitiva dos conflitos. Com efeito, a lógica das soluções dialogadas deve ter supremacia sobre: (I) reconhecer o direito à compensação, desequilibrando o planejamento financeiro do ente maior; (II) declarar inexistente o direito subjetivo à compensação, desequilibrando, de outro lado, o planejamento financeiro do ente prejudicado.
De todo modo, as soluções adotadas pelo Supremo Tribunal Federal constituem eterno desafio a qualquer sorte de planejamento financeiro, palavra de ordem na concretização de direitos fundamentais, na qualidade dos objetivos maiores e fundantes da República Federativa brasileira.
Há muito se espera da Administração Pública um planejamento consentâneo com os objetivos, metas e possibilidades financeiras reais. Legitimar a administração pública a impor medidas legislativas baseadas em mera liberalidade, sem levar em consideração a consequência sobre os demais, é desguarnecer de tutela jurídica da legítima expectativa, sem qualquer domínio final sobre o fato, os entes prejudicados, que muito dependem de tais recursos.
Sem dúvida, o ente tributante não tem capacidade institucional para fazer a avaliação das consequências sobre os demais decorrentes da isenção concedida. Por isso, é fundamental, o diálogo, seja direto, seja através dos representantes do povo. Com isso, serão apresentadas e sopesadas as consequências daquela renúncia, assegurando, inclusive, o cumprimento do disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Por certo, soluções consensuais são mais complexas do que o simples “uso da canetada”, mas se o Brasil pretende, de fato, levar a efeito a opção democrática eleita pela Constituição Federal de 1988, precisará passar pelo processo de governança pelas razões públicas, que tem por base o diálogo.
É preciso que os ditames do federalismo de cooperação sejam trazidos para a realidade da Administração Pública. O seu uso meramente retórico e altamente abstrato não dá conta de solucionar questões complexas da sociedade.
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1 Consistente, em brevíssima síntese, na impossibilidade de um ente federativo conceder isenção de tributo que não seja de sua competência.