Migalhas de Peso

Implementação de programa de compliance como redutor de multa por ato de corrupção

Não se pode aplicar a redução apenas em face da existência formal do programa. É indispensável que este seja avaliado como eficiente, ou seja, capaz de identificar, classificar e combater os riscos corruptivos.

19/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O art. 7º, VII, da lei federal 12.486/13 adota a existência de programa de integridade (compliance) como um dos fatores hábeis a ensejar a redução da multa aplicável a sociedade empresária por ato de corrupção, cominada no art. 6º, I, da mesma lei. Contudo, a aptidão do programa para reduzir a penalidade administrativa vincula-se à especificidade que deve acompanhar suas elaboração, implementação e operação, de modo a que seja qualificado como eficiente.

Não se pode aplicar a redução apenas em face da existência formal do programa. É indispensável que este seja avaliado como eficiente, ou seja, capaz de identificar, classificar e combater os riscos corruptivos. A previsão legal genérica para diversos nichos de mercado e portes variados de empresas parece privilegiar fórmulas prontas de compliance “de prateleira”, que muito prejudicam a avaliação factual inerente à implementação de um programa de integridade.

O fato de lei em sentido estrito não ser o instrumento adequado para a fixação de critérios para aferição do que seria um compliance efetivo torna imperativo que instrumentos de segunda ordem normativa (resoluções, regulamentos, portarias) façam a devida regulamentação do tema, observadas as especificidades de cada caso. A lei traça diretrizes gerais, ao passo que resoluções, regulamentos e portarias projetam os conceitos genéricos à disciplina de situações concretas específicas da estrutura da pessoa jurídica empresarial e do contexto em que atua.

Multa nada mais é do que pena pecuniária imposta à pessoa física ou jurídica faltosa para com uma obrigação. Ato administrativo punitivo, ou seja, aquele que contém uma sanção a ser importa pela Administração ao agente público ou particular que cometer a infração, configurando conduta que a norma de regência defina como reprovável.

Recorde-se a lição de Hans Kelsen, a que, nada obstante o ultrapassar de meio século e pelo menos três gerações de gestores públicos (considerando-se o lapso de 20 anos como o de cada geração, segundo critérios estatísticos), parece amoldar-se a conjugação dos artigos 6º, I, e 7º, VII, da lei federal 12.486/13, como transcrita por Daniel Ferreira, verbis:

[...] “uma ordem social pode – e é este o caso da ordem jurídica – prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem..., ou seja, uma pena no sentido mais amplo da palavra. Desta forma, uma determinada conduta apenas pode ser considerada, no sentido dessa ordem social, como prescrita – ou seja, na hipótese de uma ordem jurídica, como juridicamente prescrita – na medida em que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção (no sentido estrito)... Uma outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas, no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas – particularmente contra condutas humanas indesejáveis -, com um ato de coação, isto é, com um mal – como a privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros -, um mal que é aplicado ao destinatário mesmo contra sua vontade, se necessário empregando até a força física – coativamente, portanto. Dizer-se que, com o ato coativo que funciona como sanção, se aplica um mal ao destinatário significa que este ato é normalmente recebido pelo destinatário como um mal... [...] Dito de outra forma, Kelsen entende que o que é devido é a sanção. A conduta prescrita não é a conduta devida, devida é a sanção. Com base em tais ilações pode-se afirmar, portanto, que a toda norma corresponde uma sanção (ou vice-versa, melhor dizendo), ainda que aparentemente isto não ocorra. Nessas hipóteses estar-se-ia diante de normas não autônomas, isto é, de normas necessariamente ligadas a outras para fins de garantir seu caráter normativo” (Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pp 17-18).

É o que ocorre com as normas dos indigitados artigos da lei federal 12.486/13. Poder-se-ia tutelar a omissão em regulamentar, pois existe um poder-dever da administração de regulamentar a matéria, sob pena de tornar inócuo o preceito legal que instrumentaliza o princípio da moralidade administrativa, a que devem servir os programas de integridade.

Ilustre-se com o decreto federal 8.420/15, cujo art. 42 dispõe sobre a avaliação dos programas de integridade. De modo a conferir maior grau de especificidade, a Controladoria-Geral da União editou as portarias de 909 e 910, ambas em 2015, tratando, também, da avaliação de programas de compliance. Toda produção legiferante da União induz as pessoas jurídicas integrantes da administração indireta da União, bem como da administração direta e indireta de Estados e municípios brasileiros, à edição de atos normativos com vistas a regular a avaliação de programas de integridade. Diante do interesse regional ou local, imperioso que Estados e municípios, respectivamente, editem leis em sentido estrito, de acordo com as especificidades que as justifiquem.

Aos entes federados cabe, no exercício de seus deveres legislativos, dar concretude aos programas de compliance que pretendam a redução da multa aplicável por ato de corrupção. O legislador nacional criou o direito subjetivo em favor daquele que possa valer-se do redutor da multa desde que implemente programa de compliance efetivo, sob pena de se beneficiar da própria torpeza. Para tanto, necessária se faz a regulamentação em cada ente federado, tal como procedeu a União Federal. Previsão genérica sobre o conceito de compliance não basta, sob pena de se conferir grau subjetivo de escolha ao gestor sem parâmetros, consagrando, destarte, arbítrio avesso à integridade.

O estabelecimento de critérios objetivos, eficientemente regulamentadores, deve pautar-se, no regime democrático de direito, em normatização dialógica. Exigir o impossível é tão equivocado quanto exigir aquém do possível. A justa medida só será atingida mediante debate público qualificado e efetivo. Ou não será aplicável o redutor legalmente previsto. Eis o desafio de ontem, de hoje e de amanhã.

Jessé Torres Pereira Junior
Desembargador do TJ/RJ. Professor convidado da Escola de Direito Rio, da Fundação Getúlio Vargas, e da Escola Superior de Advocacia OAB/RJ.

Thaís Marçal
Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.

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