Migalhas de Peso

A hipocrisia do Direito Penal na pandemia de Covid-19

Em meio à pandemia de Covid-19, o Direito Penal e toda sua ineficaz carga simbólica são novamente suscitados para responder ao vazio de políticas públicas que garantam a saúde da população.

14/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Há muito, aponta-se que o sistema de justiça criminal, um complexo de instituições voltadas ao enfrentamento à criminalidade, desempenha, mesmo que com a inconsciência de boa parte dos seus atores, um papel fundamental na sustentação das desigualdades sociais.

"Punição e estrutura social", de Rusche e Kirchheimmer, lançado ainda em 1939, já evidenciava a relação concreta entre formas de punição e modo de produção, com os tipos de pena utilizados em cada período histórico atendendo invariavelmente às demandas do interesse econômico dominante. A obra impulsionou a crítica criminológica que avança até os dias atuais, incorporando outros importantes elementos como raça e gênero na compreensão da repressão penal. áH

A partir de tanto já produzido no âmbito das criminologias críticas, não se torna tarefa das mais difíceis enxergar a deficiência do direito penal para lidar com os problemas sociais. Em nosso país, facilmente se pode perceber que a criatividade legislativa para a concepção de um sem-fim de novos tipos penais e o constante endurecimento das punições, nas últimas décadas, não têm resultado na diminuição da violência. O crescente número de 887.139 pessoas presas (CNJ, jan/2021) sem que sequer 30% dos homicídios sejam solucionados (Instituto Sou da Paz, 2020), num país em que há mais de 10 anos são assassinadas pelo menos 50 mil pessoas, ajudam a ilustrar o fracasso do sistema de justiça criminal.

Desse modo, a expansão do aparelho de repressão estatal só encontra guarida no papel (não mais tão) oculto que desempenha em favor das classes dominantes, perpetuando uma camada de pessoas marginalizadas e o bloqueio à formação de laços nos grupos subalternos da sociedade, que poderia resultar na confrontação do status quo, cada vez mais concentrador de renda no alto da pirâmide social em detrimento da qualidade de vida dos trabalhadores.

A insegurança é bastante lucrativa para as classes mais abastadas: ganham, com ela, desde a diversificada indústria privada na área da segurança até os políticos que se elegem com o discurso populista calcado no medo, passando pela parte sensacionalista da mídia de massa que obtém audiência com a exploração da violência. Como de costume, perde o povo, que continua sem usufruir de políticas públicas sérias e baseadas em evidências para a superação dos problemas sociais mais graves.

Diante desse cenário, não é de impressionar a capacidade de atores políticos para continuarem batendo na mesma falida tecla que aponta a atuação do direito penal como resposta para toda a sorte de adversidades, até mesmo a falta de perspectiva de vacinação em meio à pandemia de Covid-19.

A mais recente iniciativa nesse sentido foi promovida pelo senador Ângelo Coronel (PSD/BA), que apresentou projeto de lei para tornar crime a omissão e oposição à vacinação, a propagação de notícias falsas sobre a eficácia da vacina e o desestímulo à adesão ao programa de vacinação. Conforme a proposição, quem se omitir, sem justa causa, na condição de pais ou responsáveis legais, à vacinação obrigatória de criança ou adolescente, em situação de emergência de saúde pública, fica sujeito a pena de reclusão, de um a três anos. Para quem deixar de se submeter, sem justa causa, à vacinação obrigatória; e criar, divulgar ou propagar, por qualquer meio, notícias falsas sobre as vacinas do programa nacional de imunização ou sobre sua eficácia, a pena é de reclusão, de dois a oito anos, e multa. Além disso, se o autor for agente público, as penas poderão ser aplicadas em dobro, sem prejuízo de punição por improbidade administrativa.

Para além da atecnia da proposição, cujo texto, repleto de obscuridades, não protege o cidadão do arbítrio estatal, o Projeto, mesmo que seja dotado das melhores intenções – embora inúteis – serve como obstáculo e desperdício de energia para um enfrentamento eficiente à pandemia, que não precisa de novos delitos ou penas, mas de políticas públicas de saúde apoiadas na ciência, que encarem o problema e comecem a resolvê-lo, como já o fazem tantos outros países, governados pelas mais diversas ideologias (como recentemente registrou o professor Wilson Gomes, da UFBA).

Na ausência de propostas que indiquem caminhos capazes de garantir a vacinação e conscientizar a população acerca da importância dessa e de outras medidas em larga escala, a repressão penal e todo o seu simbolismo carregado de ineficiência funciona como cortina de fumaça, caminho mais fácil para criar a ilusão coletiva de que algo está sendo feito pelo Poder Público – quando muito pouco de relevante se consegue notar.

Para mais, esse tipo de atuação legislativa representa uma deturpação do próprio direito penal enquanto campo do conhecimento fundamentado por princípios como a intervenção mínima, que preceitua a excepcionalidade da intervenção penal, cuja utilização deve se dar tão somente em situações estritamente necessárias à proteção dos bens jurídicos mais importantes; a subsidiariedade, pelo qual o direito penal deve funcionar como última instância do controle social, atuando apenas quando os demais meios de controle não funcionarem; ou a fragmentariedade, que limita a incidência do direito penal – o mais invasivo dos instrumentos estatais contra o cidadão –, a  uma pequena parte do conjunto de condutas humanas, que em regra são lícitas.

Vale lembrar que o ordenamento penal brasileiro já dispõe de condutas consideradas criminosas relacionáveis à pandemia e que estão sendo praticadas à vista de todos sem que isso represente ameaça a quem as comete ou mínima contribuição no enfrentamento à Covid-19 até aqui, com destaque para o artigo 268 do Código Penal, que considera delito infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. As inúmeras aglomerações ocorridas na campanha eleitoral de 2020 e as que vêm acontecendo nas festas de verão pelo país não deixam dúvidas a esse respeito.

O fácil e frágil discurso populista penal que insiste em indicar a expansão da repressão criminal como solução para toda sorte de problemas sociais não resiste, portanto, a uma rápida análise quanto a sua eficiência. A criação de novos tipos penais termina sendo sempre medida tomada para que as coisas continuem como estão. E elas não estão nada bem, pelo menos para a maioria – com a costumeira importante contribuição do direito penal para tanto.

Victor Barreto
Advogado criminalista no escritório Suassuna de Vasconcelos; mestrando em Direito, Estado e Constituição na UnB e consultor legislativo da Assembleia Legislativa de Pernambuco.

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