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Efeitos da insuficiência do depósito ofertado na ação de consignação em pagamento (tema 967 - STJ)

O STJ definiu que nas ações de consignação em pagamento, o depósito parcial da dívida conduz à improcedência do pedido.

13/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A ação de consignação em pagamento está prevista no CPC/15 em seus artigos 539 a 549. Trata-se de uma ação de procedimento especial que visa possibilitar o pagamento de uma determinada quantia ou entrega de coisa devida, em caso de recusa injustificada pelo credor, não localização deste, ou mesmo incerteza no local ou quem irá receber.

Tal procedimento visa desonerar o devedor da obrigação. Quando tratar de entrega de uma quantia em dinheiro, um dos requisitos é a realização do depósito judicial desses valores. Nesse sentido, elucida Humberto Pinho: “A ação de Consignação em Pagamento é um instituto criado pelo direito processual apenas para regular o procedimento de eficácia liberatória do pagamento, sem que haja, de forma necessária, a transferência do bem ao credor”.1

Nesta mesma toada, ensina Maria Helena DINIZ: “O pagamento em consignação é o meio indireto do devedor exonerar-se do liame obrigacional, consistente no depósito em juízo (consignação judicial) ou em estabelecimento bancário (consignação extrajudicial) da coisa devida, nos casos e formas legais.”2

Veja que o propósito da consignação é garantir que o bom pagador não seja punido com juros, multa e outros encargos que poderiam ser aplicados por uma eventual mora injustificada. Conforme nos ensina o professor. Silvio Venosa: “O pagamento feito pelo devedor não constitui apenas uma manifestação de obrigação, trata-se de um direito seu. Não é do interesse do devedor que a dívida se prolongue além do estipulado. É evidente que isso lhe trará maiores encargos, juros, correção monetária, multa. Assim, o bom pagador desejará pagar na forma contratada. Tanto que a lei lhe confere meios coercitivos para jungir o credor a receber3

Nesse sentido, existia uma discussão se a insuficiência parcial do depósito judicial ensejaria a extinção do feito, ou se na verdade ensejaria a exoneração parcial da dívida.

Vale ressaltar, que a discussão não correspondente as hipóteses de obrigações por prestações sucessivas (art. 541 CPC), as quais já eram aceitas pela doutrina e jurisprudência, sendo que nessas hipóteses os pagamentos continuam após a sentença.

Na ação de consignação em pagamento de prestações mensais, os depósitos continuam após a sentença de 1º grau; a respectiva regularidade, todavia, fica dependente de conferência a ser realizada depois do trânsito em julgado”. (STJ, REsp 139.402/MG, j. 5/2/98).

Enunciado 60 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Na ação de consignação em pagamento que tratar de prestações sucessivas, consignada uma delas, pode o devedor continuar a consignar sem mais formalidades as que se forem vencendo, enquanto estiver pendente o processo”.

Quanto à discussão em comento, o assunto foi tratado pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça como tema repetitivo. Sendo fixado o entendimento de que a insuficiência do depósito geraria improcedência do pedido, sob o fundamento de que pagamento parcial da dívida não extingue o vínculo obrigacional.4

Esse referido julgado, trata-se de recurso do TJ/DF, em face de um acórdão que considerou que a insuficiência da quantia depositada era suficiente para manter a obrigação de pagamento.

Na discussão um dos julgadores envolvidos foi voto vencido, o relator Lázaro Guimarães, que destacou: "Na ação de consignação em pagamento, a insuficiência do depósito não conduz à improcedência do pedido, mas sim à extinção parcial da obrigação, até o montante da importância consignada, acarretando o reconhecimento da sucumbência recíproca, devendo a sentença que concluir pela insuficiência do depósito determinar, sempre que possível, o montante devido que valerá como título executivo, ainda que para tanto seja necessária a revisão de cláusulas contratuais".

No processo, existiram diversos “amicus curie” que auxiliaram na discussão, vários concordam com o posicionamento do relator. Entre eles, a Federação Brasileira de Bancos – FEBRABAN: "nas hipóteses em que o valor depositado pelo consignante for insuficiente, será o caso de parcial procedência do pedido, havendo extinção parcial da obrigação, ou seja, extinção em relação à parte que foi efetivamente depositada" e que, "em relação aos eventuais encargos moratórios, estes somente incidirão sobre a parcela não adimplida".

Do mesmo modo o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor – BRASILCON: "mostra-se incontroverso que o depósito parcial realizado pelo consumidor deve ter seu cunho satisfativo reconhecido, como decorrência lógica do disposto nos artigos 544 e 545 do Código de Processo Civil"

Corroborando também com esse mesmo entendimento O Ministério Público Federal, opinou que: "a insuficiência do depósito na ação de consignação em pagamento não conduz à improcedência do pedido, mas ao julgamento de parcial procedência, tendo em vista a extinção parcial da dívida, abatendo-se do saldo devedor o montante já depositado em juízo"

No mesmo sentido, o Banco Central do Brasil – BACEN, também se posicionou: "possui entendimento segundo o qual, na ação de consignação em pagamento, a insuficiência do depósito não conduz à improcedência do pedido, mas sim à extinção parcial da obrigação, até o montante da importância consignada"

Sob esse prisma, defende-se que existia a possibilidade de permitir extinção parcial da obrigação, como uma espécie de amortização parcial da dívida, pois o montante foi efetivamente depositado, sendo considerado que a dívida deveria ser considerada como divisível.

Esse entendimento é sobretudo sustentado, pela jurisprudência na vigência do antigo CPC. Vale destacar que o art. 899 do CPC/735 (artigo que continua em vigor no art. 545 do CPC) versa que nos casos de insuficiência do depósito efetuado em ação consignatória o juiz determinará, sempre que possível, que o montante devido valerá como título executivo, podendo a execução ser promovida nos próprios autos. Sendo assim, sob essa premissa, era considerada válida a sentença que determinava parcial procedência à ação de consignação em pagamento.

Todavia, no voto proferido no bojo do REsp em comento, a ministra Isabel Gallotti, divergiu: “A consignatória objetiva a liberação do devedor, que se considera obrigado ao pagamento de certa importância ou à entrega de determinada coisa. Se o credor recusa-se a recebê-la, não importa por que motivo, a ação de consignação será a adequada para solucionar o litígio. Efetuado o depósito, o réu deduzirá as razões de sua recusa que, malgrado a aparente limitação do artigo 896 do CPC, poderão ser amplíssimas. Assim, por exemplo, a alegação de que aquele não foi integral envolverá eventualmente a discussão sobre interpretação de cláusulas contratuais, de normas legais ou constitucionais, e tudo mais que seja necessário para que o juiz verifique se a importância ofertada e depositada corresponde exatamente ao devido”.

No mesmo sentido, seguiu o voto da ministra Nancy Andrigi: "Em ação consignatória, a insuficiência do depósito realizado pelo devedor conduz ao julgamento de improcedência do pedido, pois o pagamento parcial da dívida não extingue o vínculo obrigacional".

Também seguiram com esse entendimento, os ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Boas Cueva, Marco Buzzi, Marco Aurélio Belizze, Pauo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro.

Para sustentar esse entendimento, considerou-se que o texto no Código está previsto que a recusa deve ser por justa causa.

Nesse sentido, foi utilizado a doutrina de SILVIO RODRIGUES, Direito Civil, Vol. II. Ed. Saraiva, 1986, p. 195, ensina que: "Quando a recusa do credor encontra justificativa, a ação é julgada improcedente; quando não se esteia em boa razão, como no exemplo acima, a ação é julgada procedente e o depósito equivale a pagamento."

Outro ponto defendido, seria a impossibilidade de fracionar o pagamento, que deve ocorrer de forma integral. Somente poderia ser diferente se as partes em comum acordo optarem pelo recebimento de forma diversa da ajustada na obrigação assumida.

Também é interessante destacar a questão da “identificação da mora do credor”. Pois segundo o voto vencedor está disposto que “O sistema jurídico brasileiro não prevê a simultaneidade de mora, podendo ela estar ausente ou presente em momentos disjuntos, conforme o momento e as atitudes das partes contratantes, porém nunca ao mesmo tempo ocorrendo em prejuízo do consignante e do consignado”.

Por esse motivo, o voto considerou que a jurisprudência predominante do STJ (até aquele momento) não seria compatível com “o princípio de direito civil de que não há mora simultânea”. Tampouco seria compatível no aspecto processual da ação consignatória, a qual determina, como pressuposto para o exame do mérito, o depósito inicial da integralidade da dívida vencida.

Vale ainda recorrer ao tradicional mandamento civilista de que o credor não é obrigado a receber em termos diversos do que foi contratado (art. 313 do CC.: "o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa [...]”)

Ou seja, julgar parcialmente procedente ação consignatória pauta em depósito parcial seria o mesmo que impor ao credor parcelamento não convencionado pelas partes.

Conclui-se que a “consignação em pagamento é modalidade de extinção das obrigações que equivale, por disposição de lei, ao pagamento, a recusa do credor que se avalia na consignação é a mesma que se avaliaria por ocasião do pagamento

De tal forma, restou decidido: "Em ação consignatória, a insuficiência do depósito realizado pelo devedor conduz ao julgamento de improcedência do pedido, pois o pagamento parcial da dívida não extingue o vínculo obrigacional".

Em suma, acredito que o posicionamento majoritário na votação do referido REsp está correto, pois caso contrário, em certos casos, o credor inevitavelmente seria penalizado de forma indevida, sendo impelido a aceitar quantia menor que a pactuada entre as partes, devido ao efeito da parcial procedência da demanda.

_________

1 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: introdução ao processo civil. v. II, São Paulo: Saraiva, 2012. Fls. 489-490

2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 2°volume:teoria geral das obrigações-23. ed. ver., atual. e ampl. De acordo com a reforma do CPC e com o projeto de lei 276/07,-São Paulo: Saraiva, 2008, p.246

3 VENOSA, Silvio de Salvo. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, p. 174, 9. ed. – São Paulo: Atlas, 2009

4 CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. CONTRATO BANCÁRIO. IMPROCEDÊNCIA. FINALIDADE DE EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO. NECESSIDADE DE DEPÓSITO INTEGRAL DA DÍVIDA E ENCARGOS RESPECTIVOS. MORA OU RECUSA INJUSTIFICADA DO CREDOR. DEMONSTRAÇÃO. OBRIGATORIEDADE. EFEITO LIBERATÓRIO PARCIAL. NÃO CABIMENTO. CÓDIGO CIVIL, ARTS. 334 A 339. CPC DE 1973, ARTS. 890 A 893, 896, 897 E 899. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. CPC DE 2015. 1. "A consignação em pagamento visa exonerar o devedor de sua obrigação, mediante o depósito da quantia ou da coisa devida, e só poderá ter força de pagamento se concorrerem 'em relação às pessoas, ao objeto, modo e tempo, todos os requisitos sem os quais não é válido o pagamento' (artigo 336 do NCC)". (4ª turma, REsp 1.194.264/PR, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, unânime, DJe de 4/3/11). 2. O depósito de quantia insuficiente para a liquidação integral da dívida não conduz à liberação do devedor, que permanece em mora, ensejando a improcedência da consignatória. 3. Tese para os efeitos dos arts. 927 e 1.036 a 1.041 do CPC: - "Em ação consignatória, a insuficiência do depósito realizado pelo devedor conduz ao julgamento de improcedência do pedido, pois o pagamento parcial da dívida não extingue o vínculo obrigacional". 4. Recurso especial a que se nega provimento, no caso concreto. (STJ - REsp: 1.108.058/DF 2008/0277416-2, relator: ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), Data de Julgamento: 10/10/18, S2 - 2ª seção, Data de Publicação: DJe 23/10/18)

5 Art. 899. Quando na contestação o réu alegar que o depósito não é integral, é lícito ao autor completá-lo, dentro em 10 (dez) dias, salvo se corresponder a prestação, cujo inadimplemento acarrete a rescisão do contrato. § 1º Alegada a insuficiência do depósito, poderá o réu levantar, desde logo, a quantia ou a coisa depositada, com a conseqüente liberação parcial do autor, prosseguindo o processo quanto à parcela controvertida. (Incluído pela Lei 8.951, de 13/12/94) § 2º A sentença que concluir pela insuficiência do depósito determinará, sempre que possível, o montante devido, e, neste caso, valerá como título executivo, facultado ao credor promover-lhe a execução nos mesmos autos. (Incluído pela Lei 8.951, de 13/12/94)

Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez
Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós graduado em Direito Empresarial pela FGV-SP e pós graduado em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

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