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As polêmicas recomendações da nota técnica 20/2020 do MPT

A nota técnica 20/2020 trouxe diversas recomendações para os empregadores, com objetivo de evitar a expansão ou intensificação do covid-19 no ambiente empresarial.

13/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente, o grupo de trabalho GT-COVID 19 do Ministério Público do Trabalho1 emitiu a NOTA TÉCNICA GT COVID-19 20/2020, cuja última revisão ocorreu no último dia 11 de dezembro de 2020.

Segundo restou ali explicitado, as recomendações têm por objetivo traçar diretrizes para os empregadores adotarem medidas necessárias para vigilância sanitária e epidemiológica, no intuito de evitar a expansão ou intensificação da pandemia do covid-19 no ambiente empresarial.  

Sob o aspecto jurídico formal, insta lembrar que a norma técnica não é vinculativa, razão pela qual seu conteúdo, de natureza recomendatória, não gera obrigação legal aos empregadores.

Além disso, em que pese algumas das diretrizes ali trazidas serem importantes, até mesmo como forma de controle do ambiente laboral, outras, entretanto, não encontram amparo legal, colidindo, inclusive, com algumas normativas já existentes.

De fato, a covid-19 é ali qualificada como doença profissional e a pandemia é conceituada como um "novo risco ocupacional de natureza biológica nos ambientes de trabalho", sem distinguir as atividades ou a natureza do ambiente de trabalho2. Esse entendimento ampliativo, entretanto, contrasta com a legislação previdenciária aplicável, conforme restará abordado mais à frente.

As recomendações constantes da nota técnica do MPT podem ser divididas em duas linhas principais.

A primeira linha sugere alterações no Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO)3, no intuito de aumentar o mapeamento e controle de situações que possam envolver a covid e o ambiente laboral. Trata-se de garantir uma postura pró-ativa do empregador, com o rastreamento e diagnóstico precoce das infecções pelo novo coronavírus e afastamento do local de trabalho dos casos confirmados e suspeitos, bem como seus contactantes, ainda que assintomáticos.

Para tanto, recomenda-se a adoção de procedimentos de testagem de trabalhadores, sem lhes imputar ônus, para diagnóstico do coronavírus4, previsão do período de afastamento da quarentena no PCMSO, de acordo com as orientações científicas dos organismos de saúde nacionais e internacionais, aplicando-se a norma mais favorável ao empregado em caso de divergência.

Sugere-se, ainda, que reste previsto nos exames médicos de retorno ao trabalho após quarentena, a avaliação clínica do empregado e exames complementares, se for o caso, independentemente do período de afastamento. E, em caso de mudança de função, seja realizado exame específico antes da alteração, a fim de que seja verificada a condição física e mental do trabalhador para desempenho das novas funções e respectivos riscos ocupacionais, identificados no Programa de Prevenção de Riscos Ambientais - PPRA.

Tais premissas aliadas a outras revelam que o MPT entende necessária uma verdadeira revisão do Plano de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO, bem como a adoção de um plano emergencial pelo Serviço Especializado em Engenharia e Medicina do Trabalho – SESMT pelo período que perdurar a pandemia, nos termos da norma regulamentadora 4. Tudo isso no intuito de propiciar o controle total do ambiente de trabalho pelo empregador5.

Por isso, importante a adoção, sempre que possível, das recomendações relacionadas às alterações no PCMSO, a fim de que a norma regulamentadora 7 seja readaptada à nova realidade da covid-19, de modo a garantir e reforçar a segurança no ambiente laboral, com mapeamento, inclusive, dos riscos advindos do teletrabalho6.

O segundo aspecto abordado pela norma técnica se relaciona com as providências que deverão ser tomadas, na hipótese de verificação de trabalhadores confirmados ou suspeitos de covid-197. Além do afastamento do local de trabalho do empregado confirmado ou suspeito de covid-19, deverá o empregador realizar o rastreamento dos demais empregados que com ele tiveram contato, mesmo que assintomáticos.

Referido afastamento seria recomendável mesmo que o teste consigne resultado como "não detectável", mas desde que presentes elementos para confirmação clínico-epidemiológica ou, ainda, se existir fundada suspeita de infecção, mesmo que assintomáticos, tal como incluído na última alteração da nota técnica8. Foram reforçadas, ainda, as recomendações de adoção das medidas preventivas no ambiente laboral.  

O ponto sensível e que destoa da normativa previdenciária é a recomendação de abertura de Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT para todos os trabalhadores afastados com confirmação ou suspeita de covid-19, independentemente de existência de nexo causal.

Outra polêmica foi criada em relação à recomendação de registro nos prontuários médicos individuais dos empregados de todos os casos de infecção de covid-19, com atualização mensal e disponibilização não apenas para as autoridades sanitárias para fins de controle epidemiológico9, mas também para a auditoria fiscal do trabalho.

Nesse ponto, vale lembrar que os documentos médicos contêm dados sensíveis dos empregados, sendo importante a expressa declaração sobre a finalidade e pertinência dessa disponibilização10.

A qualificação de covid-19 como "doença ocupacional", com a correspondente emissão de CAT, preocupa primeiro porque diverge frontalmente da previsão legal que há muito tempo estabelece como doença ocupacional aquela que é desenvolvida em virtude das atividades ou do ambiente laboral, sendo o nexo causal elemento essencial a sua caracterização. Ademais, tal precedente poderá gerar efeitos jurídicos vinculados à estabilidade e indenização por danos decorrentes de uma doença que têm dimensão pandêmica e pode ter sido contraída em locais diversos do ambiente laboral.

Nesse contexto, muito embora deva a empresa cumprir o dever de adotar as medidas coletivas e individuais para garantir saúde e segurança do ambiente de trabalho11, é certo que o artigo 20 da lei 8.213/91 qualifica como doença profissional e doenças do trabalho patologias que tenham vinculação direta com o ambiente ou com as atividades desenvolvidas pelo empregado12. Logo, a covid-19, assim como qualquer outra doença, só pode ser classificada como ocupacional, se restarem preenchidos os requisitos constantes na legislação previdenciária.

Além disso, a alínea "d" do §1º do artigo 20 da lei 8.213/9113 exclui expressamente as doenças endêmicas14 do rol das doenças do trabalho, desde que não haja comprovação de que a exposição ocorreu no ambiente laboral.

Assim, dúvidas não há de que o simples fato de o trabalhador sair para o trabalho aumenta a sua exposição ao vírus. Todavia, se este mesmo trabalhador realiza outras atividades diárias essenciais15, é difícil presumir o nexo causal direto com o trabalho, especialmente se os seus colegas de trabalho não foram acometidos pelo vírus. Logo, se configuraria uma quebra da cadeia do nexo causal.

Ora, se a própria lei previdenciária exclui as hipóteses de endemia, não há como presumir que a pandemia causada pela covid-19 possui origem ocupacional, considerando, inclusive, o reconhecimento de transmissão comunitária da patologia16.

Dessa forma, em que pese o louvável objetivo do Ministério Público do Trabalho de proteger a saúde dos trabalhadores, não poderia, smj, por meio de edição de nota técnica, usurpar competência legislativa privativa da União Federal17 e alterar entendimento consolidado em lei para presumir a covid-19 como doença ocupacional. O instrumento, além de não ser adequado para criar obrigações, é emitido por órgão que não tem poder e nem competência para legislar18.

Assim, a definição, exposição e o desenvolvimento da doença pandêmica deverá ser objeto de análise pontual da atividade e do ambiente laboral, não sendo possível presumir o nexo de causalidade pelo simples fato de o trabalhador estar laborando presencialmente.

Vale destacar que, em resposta a esse posicionamento do MPT que gerou insegurança no seio jurídico, o Ministério da Economia, por meio da nota técnica SEI 56376/202019, expedida em 11.12.2020, ratificou a validade dos artigos 19 a 23 da lei 8.213/91, inclusive com menção expressa às doenças endêmicas. E mais: na análise apresentada há expresso esclarecimento de que a covid-19 não se enquadra na definição de doença profissional, podendo ser caracterizada como doença do trabalho, desde que comprovado o nexo causal entre a doença e o ambiente de trabalho, devendo esta análise ser feita pelos peritos médicos federais20. A possibilidade de presunção do enquadramento como doença do trabalho somente é admitida, quando presente risco ocupacional na atividade realizada pelo trabalhador, em ambiente como os médico-hospitalares21

É importante consignar que a nossa legislação não permite a presunção de contaminação quando o empregador é diligente, adota e faz cumprir regras de controle de acesso, saúde, higiene, inclusive com higienização do ambiente, tomando todas as medidas de proteção de saúde e segurança do trabalhador. Interpretação contrária violaria os próprios dispositivos legais acima citados, bem como o próprio princípio da legalidade exposto no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal. Logo, a abertura de CAT sem critério, pelo simples fato objetivo de o empregado testar positivo para covid-19 contraria o conceito legal de doença ocupacional, bem como viola as normas jurídicas que regulamentam a matéria e trazem ônus indevido ao empregador.  

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1 O mencionado grupo de trabalho (GT COVID-19) foi instituído através da portaria PGT 470.2020, onde foram elaboradas diversas notas técnicas e recomendações ao longo deste período de pandemia.
2
 Neste sentido, vemos que a nota técnica não diferencia locais onde há potencial exposição ao vírus, como, por exemplo, hospitais, laboratórios e funerárias, dos demais ambientes de trabalho.
3
 Vide itens 1,3,4, 5 e 6 da norma técnica 20/20.
4
 Muito embora a testagem dependa da autorização do próprio empregado, em recente decisão proferida em sede de Correição Parcial ajuizada perante o C. Tribunal Superior do Trabalho (CorPar-1000797-36.2020.5.00.0000, Ministro Relator: Aloysio Silva Correa da Veiga, Órgão Especial, Julgada em  15/09/2020) por uma conhecida empresa do ramo frigorífico em virtude de problemas de infecções decorrentes da covid-19 em ambientes fechados climatizados, foi mantida a liminar deferida pelo E. Regional em Mandado de Segurança, determinando obrigações semelhantes às constantes na nota técnica. É possível notar através desta decisão a preocupação do judiciário trabalhista no sentido da empresa não apenas adotar as medidas de reforço de higiene, saúde e segurança como também elaborar planos de controle do ambiente de trabalho.
5
 Pontua-se que o item 9.1.5 da norma regulamentadora 9 considera como riscos ambientais os "agentes físicos, químicos e biológicos existentes no ambiente de trabalho que, de acordo com sua natureza, intensidade e tempo de exposição, podem causar danos à saúde do trabalhador."
6
 Importante salientar que, de fato, cumpre ao empregador o zelo e a observância das normas de ergonomia e saúde (inclusive mental) do trabalhador, mas não poderá deliberar sobre o acesso de terceiros na residência do profissional, pois o domicílio é inviolável, nos termos do artigo 5º, inciso XI da Constituição Federal.
7
 Vide itens 2,7, 7.1 e 8 da nota técnica.
8
 A norma técnica foi alterada em 11.12.2020 para consignar mais esta recomendação.
9
 Nos termos do inciso VIII do artigo 7º da Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018).
10 Devendo ser observado o artigo 11 da Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/2018).
11 Nos termos do §1º do art. 19 da lei 8.213/91.
12
 Em virtude do exercício do trabalho pode ser considerada como doença profissional e em virtude de condições especiais onde o trabalho é desenvolvido pode ser considerada como doença do trabalho.
13
 Vejamos o que pontua o citado parágrafo: "§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:
(...) d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".
14
 A jurisprudência já teve oportunidade de se manifestar sobre a inexistência de nexo causal em diversas patologias endêmicas, cabendo exemplificar a malária (TRT 14ª Região, Processo; RO 0010388-41.2014.5.14.0006; Primeira Turma; Relª Desª Elana Cardoso Lopes Leiva de Faria; DJERO 11/12/2014; Pág. 280) e doença de chagas (TRT 3ª Região, Processo: RO 119200-33.2009.5.03.0145; Nona Turma; Rel. Juiz Conv. Milton V. Thibau de Almeida; DJEMG 13/01/2012; Pág. 20"
15 Ir ao mercado, à farmácia, ao banco, etc.
16 Nos termos da portaria 454/2020.
17 Nos termos do artigo 22 da Constituição Federal.
18 Consigna-se que as competências do Ministério Público estão expostas expressamente no artigo 129 da Constituição Federal.
19 A nota técnica pode ser acessada aqui.

20 Nos termos do artigo 337 do Decreto 3048/99.
21 Neste sentido, pontuou a citada norma técnica do Ministério da Economia: "14. Ante o exposto, resta evidenciado que à luz das disposições da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, a depender do contexto fático, a covid-19 pode ser reconhecida como doença ocupacional, aplicando-se na espécie o disposto no § 2º do mesmo artigo 20, quando a doença resultar das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relacionar diretamente; podendo se constituir ainda num acidente de trabalho por doença equiparada, na hipótese em que a doença seja proveniente de contaminação acidental do empregado pelo vírus SARS-CoV-2 no exercício de sua atividade (artigo 21, inciso III, Lei nº 8.213, de 1991); em qualquer dessas hipóteses, entretanto, será a Perícia Médica Federal que deverá caracterizar tecnicamente a identificação do nexo causal entre o trabalho e o agravo, não militando em favor do empregado, a princípio, presunção legal de que a contaminação constitua-se em doença ocupacional.".

 

Priscila Fichtner
Advogada e parecerista. Doutora em Direito Civil. Mestre em Direito do Trabalho. Sócia de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados. Responsável pelo consultivo e contencioso estratégico trabalhistas.

Roberta Dantas Ribeiro
Advogada da área trabalhista no núcleo de causas especiais e consultoria do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados. Mestranda em Ciências Jurídicas, especialidade em direito laboral, na Universidade de Lisboa. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes - RJ.

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