Migalhas de Peso

A razoável duração do inquérito policial

O artigo discute a importância da definição legislativa de um prazo de duração do inquérito policial e de sua efetiva observância, em um cenário de debates legislativos e dificuldades práticas do sistema de justiça criminal.

12/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Em artigo denominado "O tempo do processo penal", o ministro do Superior Tribunal de Justiça Sebastião Reis Júnior faz importantes reflexões sobre as propostas legislativas e o sistema de justiça criminal, sob a perspectiva da duração do processo penal. Após demonstrar que significativa porcentagem de equívocos de julgamento das instâncias ordinárias são corrigidos pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, e que são raros os casos de extinção da punibilidade pela prescrição, o ministro faz o que chama de "uma penitência": constata a condescendência da jurisprudência do STJ com a desobediência aos prazos legais que regem o processo penal, em razão do despreparo do sistema judicial em suportar o volume exorbitante de processos que devem ser apreciados.

Enquanto o leigo, embalado por fake news, critica infundadamente os tribunais superiores e clama pela flexibilização da indiscutível aplicação da pena após o trânsito em julgado, uma relevante engrenagem do sistema de justiça criminal é esquecida no debate sobre a demora do processo penal: o inquérito policial.

Considerando-se que não é observada a previsão legal de prazo de duração do inquérito de 30 (trinta) dias, para o investigado solto, e de 10 (dez) dias no caso de investigado preso em flagrante ou preventivamente (art. 10 do CPP), é necessária a determinação de um prazo máximo para o encerramento de inquéritos que, muitas vezes, mesmo sem fundamento e sem continuidade das diligências investigatórias, remanescem indefinidamente instaurados.1

O STJ não ignora a premência de se impedir investigações que se prolongam no tempo, sem motivos para tanto. Tal fato é consignado pelo ministro Sebastião Reis Júnior, ao exemplificar julgamentos em que o STJ trancou inquéritos por excesso no prazo de duração (como no HC 482.141/SP, em que o inquérito perdurou por quase dez anos), e casos em que o tribunal fixou prazo para o seu término (como no HC 444.293/DF, no qual foi determinado prazo de trinta dias para o desfecho do inquérito, a contar da publicação do acórdão; e no RHC 91.389/SP, em que se concedeu mais noventa dias para o inquérito). No RHC 106.041/TO, inquéritos de quase seis anos foram trancados por estar "configurada a ineficiência estatal", chegando-se a discutir, em substancioso voto-vista do ministro Rogerio Schietti, critérios para se avaliar o tempo do inquérito, tais como a complexidade das investigações, das perícias, a colaboração de demais autoridades nacionais e internacionais, a evasão de pessoas chamadas a depor e a paralisação ou ausência de empenho das autoridades no esclarecimento dos fatos. De elevado rigor científico, o voto conclui, com suporte nas legislações portuguesa, italiana e chilena, que "os códigos mais modernos costumam prever um prazo máximo de duração das investigações – em torno de 2 anos – ao cabo do qual deverá o Ministério Público oferecer a denúncia ou promover o arquivamento do inquérito"2, prazo esse contado a partir de algum ato concreto que constitua determinada pessoa como investigada.

Embora o STJ fiscalize a razoável duração do inquérito policial em face das peculiaridades do caso concreto e da atuação estatal na investigação – tolerando-se que se ultrapasse, em muito, o prazo legal –, não há limitação temporal para o inquérito, que, em regra, não tem controle abstrato e isonômico. Em suma, a norma que define o prazo de duração do inquérito é vigente, mas ineficaz.

Nesse contexto, foi apresentado o PL do Senado 119, de 2017, inspirado em anteprojeto sugerido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, que, todavia, foi arquivado por inércia na tramitação. A proposta previa o prazo máximo de 720 (setecentos e vinte) dias para o decurso do inquérito, prorrogáveis por mais 30 (trinta) dias, em razão da complexidade da investigação, e verificado empenho da autoridade policial.

Consideramos que a proposta é digna de repropositura, debate e aprovação pelo Poder Legislativo.

Enquanto se coloca a prescrição como vilã do sistema criminal, sob a ótica eficientista da punição, e aparecem propostas para o aumento do prazo prescricional e de criação, legal e jurisprudencial, de novos e mais frequentes marcos interruptivos do fluxo do prazo prescricional, deve-se sublinhar que o alongamento da prescrição significa o endosso à ineficiência estatal na persecução penal. Sem prazo, ou com prazo muito dilatado ou várias vezes se reiniciando, como controlar ou se chegar aos parâmetros da razoável duração do processo, garantia fundamental do indivíduo vigente, mas não eficaz?3

Mas não é só: além de se contrapor à busca da celeridade pelo Estado-Juiz, como observou o ministro Sebastião Reis Júnior em seu artigo, a alteração do regime da prescrição acarreta aval à ineficiência do Estado-Policial, o que impacta na existência de muitos inquéritos instaurados e sem rumo, indefinidamente no tempo, que aumentam os números da elevada carga de processos, e sobrecarregam ainda mais o Ministério Público e o Judiciário.

Note-se o problema gerado pela lei 12.234, de 5 de maio de 2010, que, objetivando coibir a prescrição virtual ou em perspectiva, acabou com a prescrição em concreto para o período anterior ao início da ação penal. Ou seja, no período da investigação, entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia, não há prazo prescricional com base na pena ao final aplicada para aquele crime específico, mas tão somente pelo prazo prescricional em abstrato, o qual se baseia nos alargados prazos do art. 109 do Código Penal. Em tese, por exemplo, para um crime de furto simples, poderá haver inquérito por 8 (oito) anos (incluindo-se o tempo para denúncia e seu recebimento, tendo em vista que este interrompe o prazo prescricional – art. 117, I, do Código Penal); para um estelionato, o inquérito pode durar 12 (doze) anos; para um delito de lavagem de dinheiro, a investigação inquisitorial poderá durar 16 (dezesseis) anos; para um fato tido como tráfico de drogas, ou para um homicídio, poderá perdurar o inquérito por 20 (vinte) anos.

Sabe-se, entretanto, que as provas se esvaem com o passar do tempo. Observa-se, ademais, que as polícias judiciárias dispõem de meios para a elucidação do fato tido como criminoso em tempo muito menor do que tais prazos, haja vista a notória especialização no raciocínio ou método abdutivo do context of discovery ou contexto da investigação.4 Sabe-se, também, que um inquérito, e um eventual indiciamento, ato técnico-jurídico fundamentado do delegado de polícia que pode ocorrer no início ou no final do procedimento, geram ônus incalculáveis à pessoa, sobretudo se perdurarem por décadas.5

O Supremo Tribunal Federal determinou o arquivamento do inquérito 4.441/DF, e outros inquéritos semelhantes instaurados na instância máxima, que perdurava há mais de 15 (quinze) meses e já tinha duas prorrogações de prazo concedidas, uma delas determinando a elaboração relatório conclusivo sobre diligências, após insurgência da defesa, o que não foi cumprido. A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, segundo a decisão do ministro relator Dias Toffoli, deveria proferir manifestação conclusiva, seja pela denúncia, ou pelo arquivamento, ante as colheitas de provas realizadas, mas não o fez. Ao contrário, a PGR pretendeu a prorrogação do feito com inovação de providência que, há muito, poderia ter sido requisitada e com o deslocamento de competência. O STF, então, determinou o arquivamento, sem prejuízo da reabertura diante da notícia de novas provas, o que, todavia, nunca aconteceu.6

Por fim, a coerência sistêmica do ordenamento jurídico também demanda a previsão e a efetiva observância de prazo para o inquérito policial, pois se harmoniza com a lei 13.869, de 5 de setembro de 2019, que define os crimes de abuso de autoridade, uma vez que tipifica como criminosa a conduta de "estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado", e daquele que "inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado" (art. 31, caput, e parágrafo único da lei 13.869/19). Como se vê, a delimitação de um prazo promove segurança jurídica não só para o investigado, mas também para as autoridades policiais.

Do que se expôs, conclui-se que é benéfica e adequada para o sistema de justiça criminal, que geralmente é inicializado na esfera policial, a definição de um prazo para a conclusão do inquérito policial, não somente para os atores estatais envolvidos, mas também para o investigado, uma vez que significa uma medida de concretização da busca de celeridade (art. 5º, LXXVIII, da CF). Da mesma forma, não se pode olvidar, em sintonia com o eminente ministro Sebastião Reis Júnior, que é primordial o investimento na estruturação e gestão das polícias judiciárias brasileiras, do ponto de vista humano e material, com o aumento do número de delegados e investigadores, tal como se pode visualizar a necessidade do aumento do número de juízes e servidores, e com a disponibilização dos instrumentos e condições para que possa ser desenvolvida a essencial função investigativa, em detrimento de soluções legislativas sem base empírica de aumento de penas e de prazos prescricionais.

_________

1 Ainda que não seja o objeto direto deste texto e que sejam suscitadas discussões quanto à privatividade da União em legislar sobre matéria processual (art. 22, I, da CF), é importante mencionar o "procedimento investigatório criminal" (PIC) e as chamadas "peças de informação" como instrumentos investigatórios do Ministério Público previstos na resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público. Embora haja referência a prazo de noventa dias de duração de tais procedimentos, a própria resolução permite indefinidas prorrogações sucessivas, o que faz sem balizamento legal e sem controle do Poder Judiciário.

2 STJ, RHC 106.041/TO. Voto min. Rogerio Schietti, p. 18. Acesso em: 8 set. 2020.

3 A Constituição Portuguesa atrela a celeridade processual à presunção ou estado de inocência (art. 32º, 2: "Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa"), o que deve ser feito na busca da máxima efetividade ou eficácia social da Constituição Brasileira, sendo pacífico que esses princípios irradiam efeitos na esfera administrativa (o inciso LXXVIII do art. 5º da CF é expresso nesse sentido), tal como no inquérito policial, superando-se, assim, a de longa data criticável doutrina do "não-prazo", inclusive por cortes internacionais de direitos humanos, e demandando interposição normativa para a concretização constitucional. Segundo J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Uma dimensão importante do princípio da inocência do arguido, mas que assume valor autônomo, é a obrigatoriedade de julgamento no mais curso prazo compatível com as garantias de defesa. A demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coação sobre o arguido (nomeadamente a prisão preventiva), acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência. O direito ao processo célere é, pois, um corolário daquela. Esta garantia tem a ver não só com os prazos legais para a prática dos actos processuais mas também com a sua própria observância pelo próprio tribunal." (Constituição da República Portuguesa anotada, 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 518-9).

4 Sobre o tema, vide BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 137-152.

5 Segundo Roxin e Schünemann, "Ya que el proceso penal interviene sensiblemente en el círculo jurídico de aquella persona que posiblemente se encuentra incorrectamente como imputado y que la calidad de los medios de prueba disminuye com el curso del tiempo (especialmente, la capacidad de memoria de los testigos), existe un interés considerable en una administración de justicia penal rápida. De otro lado, a través de ello no se puede perjudicar demasiado el cuidado en las investigaciones." (ROXIN, Claus; SCHÜNEMANN, Bernd. Derecho procesal penal, 1ª ed. Buenos Aires: Didot, 2019, p. 174).

6 Disponível aqui. Acesso em: 8 set. 2020.

_________

*Artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCRIM Ano 29, n. 338, jan./2021, p. 23-25.

Octavio Augusto da Silva Orzari
Mestre e doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-delegado da Polícia Federal. Professor voluntário da Universidade de Brasília. Sócio do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Transtornos de comportamento e déficit de atenção em crianças

17/11/2024