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Peculato e “Funcionário Fantasma”: Uma linha tênue entre o crime e o não-crime

Afinal de contas, o funcionário público que deixa de prestar o serviço para o qual foi contratado comete o crime de peculato? E quem nomeia?

5/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Em uma primeira análise a resposta é negativa, consoante explica a jurisprudência inaugurada com o julgamento da ação penal 475, do Superior Tribunal de Justiça e de relatoria da min. Eliana Calmon.

Mas essa é uma resposta muito rasa frente a complexidade da matéria. Sabe-se, por conhecimento notório e de causa, que em situações como a que aqui se encara são, via de regra, cometidas por dois agentes: um chamado de nomeante e outro de nomeado (funcionário fantasma).

Os fatos postos emergem em um universo onde esse segundo, mesmo após a sua nomeação, não exerce a devida contraprestação de serviços para os quais foi nomeado e, se acabamos a narrativa fática por aqui, a atipicidade da conduta é a medida que se impõe, ainda que se diga que o agente nomeante agiu em favor do nomeado em detrimento do ente público lesado.

Esse é o entendimento externado pelo julgado acima mencionado.

Entretanto, consultando a jurisprudência relacionada ao tema, percebe-se que há uma linha tênue entre à atipicidade ou não dessa situação.

Melhor dizendo, é imperioso o estudo dos casos colocados perante as cortes superiores para dizer qual fato caracteriza e qual não caracteriza o crime.

O conhecimento obtido dessa forma é necessário tanto pelo seu viés prático como pelo “filtro” que acaba gerando pois, sabe-se que o direito somente se ocupa de acontecimentos históricos relevantes (BELTRÁN, 2007, p. 30) e só se aplica o direito ao fato que é juridicamente importante, onde se prevê uma consequência jurídica.

Por isso, a direito material serve como um “filtro” para o que será debatido no processo, norteando o critério de relevância para inclusão ou não de determinadas provas ao caderno processual.

Nas palavras de Gustavo Badaró:

Os fatos que importam para o processo penal são ações ou omissões concretas, delimitadas abstratamente por tipos penais. A dicotomia entre questões de fato em antagonismo com as questões de direito é por demais simplista, para não se dizer equivocada. Toda questão jurídica envolve matéria fática e matéria de direito. O que existe são, portanto, questões predominantemente de fato e questões predominantemente de direito.

Assim, quando se fizer menção à decisão “sobre os fatos” ou ao “juízo de fato”, tratar-se-á do resultado da atividade probatória que permitirá o conhecimento de fatos passados, em sua delimitação jurídico-penal. O acertamento dos fatos, de um lado e a individualização da norma com vistas a se determinar a qualificação jurídica dos fatos, de outro, são atividades preparatórias para aplicação do direito e conexas entre si, não sendo concebível a existência de uma sem a outra. (2019, p. 69-70)

Considerando que a jurisprudência também é uma fonte formal estatal do direito (DINIZ, 2017) faz-se o destaque dos seguintes julgados para elucidar e estudar a matéria:

(Apn 475/MT, rel. ministra Eliana Calmon, corte especial, julgado em 16/5/07, DJ 6/8/07, p. 444)

(REsp 1.723.969/PR, rel. ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª turma, julgado em 16/5/19, DJe 27/5/19)

(HC 466.378/SE, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª turma, julgado em 22/10/19, DJe 4/11/19)

(AgRg no AREsp 1.244.170/RN, rel. ministro Ribeiro Dantas, 5ª turma, julgado em 2/8/18, DJe 22/8/18)

(Inq 3.006, relator(a): Dias Toffoli, 1ª turma, julgado em 24/6/14, Acórdão Eletrônico DJe-183 divulg 19/9/14 public 22/9/14)

(Inq 3.776, relator(a): Rosa Weber, 1ª turma, julgado em 7/10/14, acórdão eletrônico DJe-216 divulg 3/11/14 public 4/11/14)

(Inq 3.701, relator(a): Alexandre de Moraes, 1ª turma, julgado em 11/2/20, acórdão eletrônico DJe-156 divulg 22/6/20 public 23/6/20)

É imperioso frisar que cada julgamento mencionado passa pela perspectiva de um julgador específico bem como foram selecionados acórdãos onde à atipicidade foi reconhecida e não reconhecida.

O julgamento inaugural (APN 475/MT) se relacionada ao fato de um Desembargador do Estado do Mato Grosso nomear dois de seus filhos para exercer atividades em seu gabinete, porém, ao que consta da decisão, esses não compareciam, conforme:

Está provado nos autos que os 2 (dois) últimos denunciados receberam regularmente os salários do cargo em comissão, para os quais foram nomeados, sem terem comparecido ao serviço.”

Porém, a conclusão da exma. ministra foi a de que:

Entretanto, não vejo como enquadrar a conduta descrita no tipo do art. 312 do Código Penal, o qual exige, em qualquer das modalidades (peculato furto, peculato apropriação ou peculato desvio), a apropriação, desvio ou furto, em benefício próprio ou alheio, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel. O funcionário público que se apropria dos salários que lhe são endereçados de forma lícita e não cumpre o dever de contraprestar os serviços para os quais foi contratado comete grave, ou melhor gravíssima, falta funcional e administrativa, podendo configurar-se em ato de improbidade administrativa, mas não há tipicidade penal, muito menos sob a roupagem do peculato.

Com essas considerações, rejeito a denúncia por falta de tipicidade de conduta, nos termos do art. 43, inciso I, do Código Penal.

Como sobredito, se a narrativa fática se encerra nesse ponto, a mera contraprestação, apesar de conduta grave aos olhos do direito administrativo, não configura nenhum ilícito penal.

O segundo caso (REsp 1.723.969/PR) vai além dessa circunstância e, ao que se entende, justamente por isso manteve-se a condenação do agente nomeante, isso porque:

[...] configurada conduta prevista no art. 312 do Código Penal, porque comprovado o repasse das verbas remuneratórias do terceiro "fantasma" ao recorrente, bem como a sua utilização a proveito próprio [...]

Assim, com a nomeação do funcionário fantasma e retenção dos valores pecuniários pagos em razão do cargo, comprovou-se que o objeto material do crime era a própria remuneração do servidor.

A situação fática se mostra nitidamente diversa da primeira. Nesse caso, o agente nomeante tomou para si justamente a remuneração devida ao “funcionário fantasma”, o que supera o caso em que o funcionário é o destinatário final dos valores.

Em um terceiro momento (HC 466.378/SE) a patente atipicidade da conduta levou à excepcional situação de trancamento da ação penal, pois:

Assim, como a hipótese em apreço diz respeito à narrativa de recebimento, pelo chamado funcionário fantasma, nomeado para cargo em comissão por prefeito, de valores pecuniários consistentes na sua própria remuneração, é caso, sim, de concessão da ordem [...]

Não existindo qualquer narrativa acerca de repasses ao nomeante, o trancamento da ação foi a medida adotada pelo Min. Sebastião Reis Júnior.

O quarto acórdão mencionado (AgRg no AREsp 1.244.170/RN) é o mais rico em informações acerca da tipicidade ou não da conduta do agente público nomeado. Dele se extrai uma aprofundada análise feita pelo Min. Ribeiro Dantas sobre uma única situação:

No caso dos autos, segundo o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, a agravada "obteve atestados falsos de frequência, percebendo a remuneração do cargo de Agente Legislativo sem a devida prestação de serviços [...]"

E, brilhantemente, fazendo a distinção dessa situação para com outras ponderou:

Ora, naquela hipótese, Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Amapá e um Membro do Ministério Público atuante junto àquela Corte desviaram recursos públicos, entre os quais verbas de ajuda de custo, despesas médicas e outras, de funcionários "fantasmas". Na espécie em julgamento, em vez disso, trata-se de servidora pública que, segundo consta, embora apresentasse ausências sem justificativa, continuava a perceber seus vencimentos. [...]

O mesmo se pode dizer do Supremo Tribunal Federal. No Inq 1.926, da relatoria da Ministra Ellen Gracie, julgado em 9/10/2008, o STF recebeu a denúncia pela suposta prática de peculato por Deputado Federal que havia promovido a nomeação como secretária parlamentar de pessoa que, mesmo no exercício do referido cargo público, prestava serviços de natureza particular em benefício do denunciado. [...]

E no Inq 2.449, também do STF, tendo como relator o Ministro Ayres Britto, julgado em 2/10/10, cuidava-se da nomeação, induzida pelos denunciados, de diversas pessoas para cargos comissionados, sem a realização de qualquer trabalho, somente com o intuito de auferir vantagens eleitorais. [...]

A partir dos elementos obtidos desse julgamento há uma conclusão máxima a ser retirada: o amoldamento fático ao crime previsto no art. 312, do CP, dependerá da comprovação de vantagem obtida pelo agente nomeante quando a situação versar sobre acontecimentos dessa natureza. É esse o fato que torna juridicamente relevante a situação posta em debate.

Isso é o que se constata no Inq. 3.006, de relatoria do min. Dias Toffoli:

Não se cuida, na espécie, de hipótese de utilização do servidor público para a realização de serviços privados ao denunciado, mas situação totalmente diversa daquelas narradas nas hipóteses antes indicadas, nas quais o objeto material da conduta eram os valores pecuniários desviados pelos denunciados (dinheiro correspondente à remuneração de pessoa como assessor ou auxiliar).

E também no Inq. 3.776, de relatoria da min. Rosa Weber:

Situação diversa ocorre quando o dinheiro público é desviado para o pagamento de empregado que, apenas formalmente, está vinculado à Administração Pública, mas que, na verdade, desempenha e executa serviços para outro servidor público no interesse particular deste último.

O objeto material do peculato, nessas situações, é o valor desviado para o pagamento do salário.

Nessas hipóteses, tem-se um pseudo funcionário público, que na verdade é um empregado privado de um outro funcionário, o qual está formalmente na condição de funcionário apenas como meio para o desvio do dinheiro público utilizado no pagamento de seus salários.

Na mesma direção aponta o Inq. 3.701, de relatoria do min. Alexandre de Moraes:

[...] prestavam para o acusado, antes mesmo de sua nomeação, serviços de natureza privada completamente dissociados da função para a qual foram nomeadas, os quais não são custeados ou sequer custeáveis pelos cofres públicos [...]

Em suma, conclui-se que, atentando ao que consta das circunstâncias descritas no corpo dos acórdãos estudados, um particular elemento deve ser verificado e comprovado quando o que se busca é a caracterização do ilícito de peculato envolvendo situações em que o funcionário público não realiza a função para a qual foi nomeado: uma vantagem extraída disso pelo agente nomeante.

Esse proveito, conforme bem delineado nas palavras do Min. Ribeiro Dantas, pode ser de natureza variada (patrimonial, eleitoral, pessoal etc.) mas deve restar caracterizado para que surja então o ilícito de peculato, não bastando a mera apropriação desses valores pelo funcionário público que, claro, se trata de conduta tremendamente reprovável, apesar de não ser punida a título de crime.

Portanto, o objeto de investigação deve ser a existência ou não dessa vantagem revertida em favor do nomeante sendo que a sua ausência leva à atipicidade da conduta de ambos os agentes.

_________

BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019b

BELTRÁN, Jordi Ferrer. La valoración racional de la prueba, Madrid: Marcial Pons, 2007.

DINIZ, Maria Helena. Fontes do direito. Enciclopédia jurídica da PUC/SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível clicando aqui

Apn 475/MT, rel. ministra Eliana Calmon, corte especial, julgado em 16/5/07, DJ 6/8/07, p. 444. Disponível clicando aqui

REsp 1.723.969/PR, rel. ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª turma, julgado em 16/5/19, DJe 27/5/19. Disponível clicando aqui

HC 466.378/SE, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª turma, julgado em 22/10/2019, DJe 04/11/2019. Disponível clicando aqui

AgRg no AREsp 1.244.170/RN, rel. ministro Ribeiro Dantas, 5ª turma, julgado em 02/08/2018, DJe 22/08/2018. Disponível clicando aqui

Inq 3.006, relator(a): Dias Toffoli, 1ª turma, julgado em 24/6/14, acórdão eletrônico DJe-183 DIVULG 19/9/14 PUBLIC 22/9/14. Disponível clicando aqui

Inq 3.776, relator(a): Rosa Weber, 1ª turma, julgado em 7/10/14, acórdão eletrônico DJe-216 DIVULG 3/11/14 PUBLIC 4/11/14. Disponível clicando aqui

Inq 3.701, relator(a): Alexandre de Moraes, 1ª turma, julgado em 11/2/20, acórdão eletrônico DJe-156 DIVULG 22/6/20 PUBLIC 23/6/20. Disponível clicando aqui

Paulo Moisés da Silva Gallo
Advogado, graduado pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Pós-graduado pela PUC/RS em Direito Penal e Criminologia.

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