Migalhas de Peso

A possibilidade de cobrança extrajudicial de dívida prescrita e a impossibilidade de o Judiciário decidir contra o princípio da "supremacia do Poder Legislativo"

Tem se verificado sobre o tema relativo à possibilidade de cobrança extrajudicial de débito prescrito, cuja resposta decisória, entende-se, está contida na lei, de forma subsuntiva e silogística, o que não vem impedindo que o Judiciário decida contra essa mesma lei.

18/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A inexistência de coerência entre decisões judicias sobre casos idênticos é um dos fatores que enseja a multiplicidade de ações ou recursos sobre o mesmo tema ou demanda. A ausência de uma decisão firme do Judiciário sobre determinado assunto pode levar casos fáceis a se tornarem casos difíceis no que diz respeito à decidibilidade.

É o que tem se verificado sobre o tema relativo à possibilidade de cobrança extrajudicial de débito prescrito, cuja resposta decisória, entende-se, está contida na lei, de forma subsuntiva e silogística, o que não vem impedindo que o Judiciário decida contra essa mesma lei, contribuindo para insegurança jurídica dos jurisdicionados.

A referida discussão não gira em torno da existência da prescrição dos créditos, mas sim da legalidade das cobranças extrajudiciais dos mesmos créditos. O debate a ser considerado se refere ao limite estabelecido, pela lei, para prescrição do crédito em si e suas consequências extrajudiciais.

O Código Civil, em seu artigo 882 prevê, expressamente, que: “Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”.

Portanto, caso alguém pague uma dívida prescrita, não poderá pedir a devolução da quantia paga, pois o direito ao crédito permanece incólume, embora esteja extinta a pretensão de exigi-lo judicialmente. Nesse sentido, o ilustríssimo jurista Silvio de Salvo Venosa1 pondera que:

A dívida prescrita pertence à mesma classe das obrigações naturais. Apenas o Código teve de mencioná-las expressamente, podendo, em certos casos, ser reconhecida de ofício pelo juiz. O pagamento de dívida prescrita é verdadeira renúncia do favor da prescrição. Não há direito de repetição. Ademais quem recebe dívida prescrita não se locupleta indevidamente, pois, conforme a distinção tradicional na doutrina, a prescrição extingue a ação, mas não o direito. Mesmo prescrita, a obrigação existe. Mesmo prescrita a dívida, de qualquer modo, persiste a obrigação moral do devedor (grifamos e sublinhamos).

Verifica-se que, mesmo após o reconhecimento da prescrição do crédito, a lei federal, mais especificamente, o artigo 882 do Código Civil, estabelece que o crédito em si não é afetado, ao permitir que o pagamento seja aperfeiçoado quando realizado espontaneamente pelo devedor, sem direito à devolução do que pagou, o que autoriza a cobrança extrajudicial do referido débito.

Sobre a diferença entre o direito subjetivo de ação e a obrigação em si, o artigo 189 do Código Civil prevê que “violado o direito, nasce para o titular da pretensão, a qual se distingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”.

Observa-se que há expressa referência da prescrição do direito à pretensão subjetiva, ou seja, ao direito de exigir a satisfação da obrigação em juízo. Esse mesmo direito de buscar a solução judicial é que se extingue, mas não a obrigação em si, que subsiste, ou seja, resta possível a cobrança do débito pela via extrajudicial. Não é outro o entendimento da doutrina, que se manifesta na voz de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald2:

[...]

Nesse desenho estrutural surge a prescrição para delimitar um lapso temporal, a fim de que sejam exercitadas as pretensões decorrentes da titularidade de determinados direitos subjetivos patrimoniais pelo seu respectivo titular.

Seguindo, de certo modo, essas pegadas, o art. 189 do Texto Codificado afirma que a prescrição tem como objeto fulminar a pretensão do titular em reparar um direito (subjetivo) seu que foi violado. Diz, in verbis, o dispositivo legal: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. Em suma-síntese: a prescrição.

[...]

Atente-se, porém, para um detalhe da mais alta relevância. A prescrição não atinge o direito subjetivo em si mesmo. Até porque o devedor poderá, querendo, honrá-lo voluntariamente. Aliás, bastaria lembrar a possibilidade de pagamento de uma dívida prescrita. O direito subjetivo, portanto, se mantém. Apenas haverá uma neutralização da pretensão reconhecida ao titular desse direito subjetivo patrimonial. Equivale a dizer: a prescrição não fulmina o direito subjetivo em si, nem, tampouco, a pretensão que o guarnece; apenas e tão só neutraliza a pretensão, sem destruí-la.

[...]

O que se fulmina é a pretensão que guarnece o direito subjetivo patrimonial. Tanto que se o devedor, voluntariamente, quiser, pode pagar de forma válida e eficaz a dívida (grifamos e sublinhamos).

Ainda em relação à possibilidade de cobrança extrajudicial de dívida prescrita, importante considerar a redação do artigo 191 do Código Civil, o qual prevê que: “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição”.

A norma que se extrai do referido artigo é clara ao prever que o devedor pode renunciar à prescrição, pagando a dívida prescrita, inclusive extrajudicialmente. Trata-se de renúncia tácita, prevista não só no Código Civil brasileiro, mas também existente em outros sistemas jurídicos, como, por exemplo, no Código Civil italiano (artigo 2.937), conforme ensina a doutrina3:

Considerada a correlação da prescrição com os direitos subjetivos patrimoniais, facilmente, se depreende a sua natureza de ordem privada (particular) e, via de consequência, a possibilidade de renúncia pelo titular. É simples e imperativo: a prescrição é perda da pretensão de exigir interesses patrimoniais e disponíveis, razão pela qual está inserida no âmbito privado, sendo possível ao titular (credor) dispor da pretensão de exigir o seu direito respectivo.

Nessa esteira, giza, in litteris, o art. 191 do Code: “a renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição”.

[...]

Vale frisar que a renúncia à prescrição pode ser expressa ou tácita. Aquela (a renúncia expressa) é a que decorre de uma manifestação de vontade externada pela parte beneficiada pela prescrição – o devedor. Seria o exemplo do réu que, no processo, peticiona, informando que pagará a dívida, embora já esteja prescrita. Esta (a renúncia tácita) se materializa quando o beneficiário da prescrição prática atos com ela incompatíveis. Didaticamente, o Código Civil da Itália (art. 2.937), nessa mesma levada, afirma que a renúncia tácita resulta de fato incompatível com a vontade de se valer da prescrição. Um exemplo bastante claro é o pagamento de uma dívida prescrita.

Outrossim, essa renúncia pode ser judicial, quando manifestada perante a autoridade judiciária, ou extrajudicial, na hipótese de ter ocorrido fora do juízo (grifamos e sublinhamos).

Ainda em relação à possibilidade de satisfação do crédito prescrito, pelo devedor, na seara extrajudicial, pondera Anderson Schreiber4 sobre a melhor interpretação do artigo 191 do Código Civil:

[...]

Ora, por definição, ninguém renuncia a algo que já se consumou. O que o legislador pretendeu provavelmente esclarecer foi que, mesmo após o decurso do prazo prescricional, o devedor pode satisfazer espontaneamente o direito do credor. Não se tem aí qualquer renúncia, mas simples efeito da prescrição, que, como declara o próprio Código Civil, não atinge o direito, mas tão-somente a pretensão (grifamos e sublinhamos).

[...]

Pode-se afirmar que a relação jurídica material, qual seja, a dívida, permanece, e que a cobrança extrajudicial é possível, enquanto o que não é permitida é satisfação forçada da dívida por meio da ação judicial, interpretação mais adequada dos artigos 189, 191 e 882, todos do Código Civil brasileiro.

No acórdão da lavra da ministra Nancy Andrighi, nos autos do REsp 1.694.322/SP, restou decidido que a prescrição do crédito não afeta a possibilidade de cobrança extrajudicial da referida obrigação, senão vejamos:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PARCELAS INADIMPLIDAS. PRESCRIÇÃO. INTERRUPÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA, REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. PRESCRIÇÃOQUE ATINGE A PRETENSÃO, E NÃO O DIREITO SUBJETIVO EM SI.

1. Ação ajuizada em 27/03/2013. Recurso especial concluso ao gabinete em 14/12/2016. Julgamento: CPC/73.

2. O propósito recursal é definir i) se, na hipótese, houve a interrupção da prescrição da pretensão da cobrança das parcelas inadimplidas, em virtude de suposto ato inequívoco que importou reconhecimento do direito pelo devedor; e ii) se, ainda que reconhecida a prescrição da pretensão de cobrança, deve-se considerar como subsistente o inadimplemento em si e como viável a declaração de quitação do bem.

3. Partindo-se das premissas fáticas estabelecidas pelo Tribunal de origem quanto à inexistência de ato inequívoco que importasse em reconhecimento do direito por parte da recorrida - premissas estas inviáveis de serem reanalisadas ou alteradas em razão do óbice da Súmula 7/STJ - não há como se admitir a ocorrência de interrupção do prazo prescricional.

4. A prescrição pode ser definida como a perda, pelo titular do direito violado, da pretensão à sua reparação. Inviável se admitir, portanto, o reconhecimento de inexistência da dívida e quitação do saldo devedor, uma vez que a prescrição não atinge o direito subjetivo em si mesmo.

5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.

(REsp 1.694.322/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 7/11/17, DJe 13/11/17)

Importante citar outro acórdão paradigma do Superior Tribunal de Justiça, que tem como relator o ministro Luiz Felipe Salomão, nos autos do AgInt no AREsp 1.587.949/SP, já que não acolheu a tese que tinha como objetivo declarar ilegal a cobrança extrajudicial de dívida prescrita:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.

PRESCRIÇÃO. PERDA DA PRETENSÃO E NÃO DO DIREITO SUBJETIVO EM SI. SÚMULA 83/STJ.

1. Hipótese em que a Corte local entendeu que a prescrição alcança tão somente a pretensão, mas não a existência do próprio direito, "...de tal sorte, que a impossibilidade do exercício do direito de ação tutela jurisdicional do direito subjetivo não implica na sua extinção".

2. A conclusão alcançada na origem guarda perfeita harmonia com o entendimento desta Corte, no sentido de que "A prescrição pode ser definida como a perda, pelo titular do direito violado, da pretensão à sua reparação. Inviável se admitir, portanto, o reconhecimento de inexistência da dívida e quitação do saldo devedor, uma vez que a prescrição não atinge o direito subjetivo em si mesmo"(REsp 1.694.322/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 7/11/17, DJe 13/11/17).

3. Estando o acórdão recorrido em consonância com a jurisprudência firmada nesta Corte Superior, o Recurso Especial não merece ser conhecido, ante a incidência da Súmula 83/STJ.

4. Agravo Interno não provido.

(AgInt no AREsp 1.587.949/SP, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª turma, julgado em 21/9/20, DJe 29/9/20).

O caso comporta uma solução simples, cuja resposta está prevista na lei, nos termos da lógica clássica: a prescrição extingue o crédito, mas não o direito em si, o que torna possível a cobrança extrajudicial de débito prescrito e, por essa razão, não há motivo para que o Judiciário, que deve dizer o que é legal.

Tergiversar a respeito dessa imposição legal seria violar o que Ronald Dworkin5 denominou princípio “da supremacia do Poder Legislativo”, ou seja, as regras nasceram para serem cumpridas no Estado Democrático de Direito e, contrariar essa máxima no caso – o crédito prescrito pode ser cobrado judicialmente - implica uma violação do pacto Democrático. Vejamos:

Porém, não é qualquer princípio que pode ser invocado para justificar a mudança; caso contrário, nenhuma regra estaria a salvo. É preciso que existam alguns princípios com a importância e outros sem importância e é preciso que existam alguns princípios mais importantes que outros. Esse critério não pode depender das preferências pessoais do juiz, selecionadas em meio a um mar de padrões extrajurídicos respeitáveis, cada um deles podendo ser, em princípio, elegível. Se fosse assim, não poderíamos afirmar a obrigatoriedade de regra alguma. Já que, nesse caso, sempre poderíamos imaginar um juiz cujas preferências, selecionadas entre os padrões extrajurídicos, fossem tais que justificassem uma mudança ou uma reinterpretação radical até mesmo da regra mais arraigada.

Na segunda maneira de considerar o problema, um juiz que se propõe a modificar uma doutrina existente deve levar em consideração alguns padrões importantes que se opõem ao abandono da doutrina estabelecida; esses padrões são, na sua maior parte, princípios. Esses padrões incluem a doutrina da “supremacia do Poder Legislativo”, um conjunto de princípios que exige que os tribunais mostrem uma deferência limitada pelos atos do Poder Legislativo. Eles incluem também a doutrina do precedente, outro conjunto de princípios que reflete a equidade e a eficiência que derivam da consistência. As doutrinas da supremacia do Poder Legislativo e do precedente inclinam em favor do status quo, cada uma delas na sua própria esfera, mas não o impõe. Os juízes, no entanto, não têm liberdade para escolher entre os princípios e as políticas que constituem essas doutrinas – também neste caso, se eles fossem livres, nenhuma regra poderia ser considerada obrigatória.

Considerando o que foi exposto, pode-se concluir que: a) as decisões judiciais estão vinculadas à lei; b) a lei diz, no presente caso, que a prescrição não afeta o direito em si, ou seja, o crédito, sendo possível sua cobrança extrajudicial; c) decidir em desacordo com a premissa maior – lei – significa violar flagrantemente o princípio da “supremacia do Poder Legislativo”; d) não há espaço para o livre convencimento judicial capaz de alterar o dever de o juiz, num caso concreto, aplicar a lei, quando caracterizada a situação de fato a ela amoldável.

_________

1 Código Civil Interpretado; coautora Cláudia Rodrigues. 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2019, p. 782.

2 Curso de direito civil: parte geral e LINDB/ Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald - 15ª ed., revista e atualizada. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 736.

3 FARIAS & ROSENVALD, op. cit. p. 738/739.

4 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 84.

5 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 60.

Ana Paula Franchini Miguel Martinelli
Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Escola Superior de Direito e advogada no escritório Brasil Salomão e Matthes.

Gabrielly Melo dos Santos
Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogada no escritório Brasil Salomão e Matthes.

Francis Ted Fernandes
Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Administração de Organizações na Faculdade de Economia e Administração da USP-FUNDACE. Advogado no escritório Brasil Salomão e Mathes.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Atualização do Código Civil e as regras de correção monetária e juros para inadimplência

19/12/2024

5 perguntas e respostas sobre as férias coletivas

19/12/2024

A política de concessão de veículos a funcionários e a tributação previdenciária

19/12/2024

Julgamento do Tema repetitivo 1.101/STJ: Responsabilidade dos bancos na indicação do termo final dos juros remuneratórios

19/12/2024