Migalhas de Peso

E 2020 chegou ao seu ocaso. Um ano (jurídico) de muitos desafios

É hora de reflexão e união, afinal somos todos iguais e devemos uns considerar os outros com respeito e compaixão. E que o direito seja sempre uma ferramenta social precisa de pacificação e restauração de relações.

16/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

O ano de 2020 se apresentou com grandes desafios à nação brasileira já em seu início, em março. Após a declaração do estado de pandemia pela OMS, decorrente da aparição do novo coronavírus (Covid-19), verificaram-se diversas medidas de restrição econômica e social, que foram destinadas, segundo decretos regionais e locais, à contenção da disseminação do vírus.

O presente texto não se destina a uma abordagem pontual à situação pandêmica e suas consequências específicas, mas sim a algumas reflexões de ordem social, política, jurídica e pessoal, que podem ou não ter correlação com tal estado excepcional e as dificuldades desde então enfrentadas. O intuito é, na medida do possível, falar com o coração.

Aqui no Brasil, percebi que, a partir da formalização do estado excepcional, muitas foram as visões sobre o problema, e que, em certa medida, ensejaram a adesão social a esse ou aquele posicionamento. E isso, creio, faz parte de uma estrutura democrática sólida, na qual cada um tem sua liberdade de perceber, sentir e compreender como bem entender. Nossa Carta Magna nos assegura tais predicamentos individuais.

E o que digo pode até parecer contraditório ao pensamento diverso, na medida em que há percepções segundo as quais a democracia estaria em franco perigo. Respeito bastante tal concepção, contudo, creio que a democracia está aí, firme, e aqui no Brasil as instituições continuam em pleno funcionamento, cada qual atuando em seu espaço predeterminado pela Constituição e leis. A divergência, destarte, é natural à boa democracia e mais que salutar ao pluralismo das ideias.

Certa ala de pensamento informa até mesmo sobre riscos de rompimento democrático, com possível golpe de Estado. Creio que isso não passa de uma mera percepção ou receio sem suporte prático ou mesmo jurídico. Sabemos que tais medidas não mais possuem espaço no mundo moderno. Por vezes, chego a pensar que se trata de um tipo de retórica, tendente a demonstrar algum grau de insatisfação com a política do momento.

Ocorre que tal constatação é exatamente um fruto legítimo da democracia e da liberdade de pensamento e de expressão por aqueles que assim se posicionam, e não podemos invadir essa esfera privada de compreensão das coisas, pois também não desejamos incursões indevidas em nossas reflexões internas. E respeito quem assim pensa, mas creio que a democracia vige, está aí. E se ela não é o sistema de governo mais ideal, seguramente, como disse Winston Churchill, “é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor do que ela”.

De outra sorte, percebo que a sociedade procura se adaptar à realidade que se apresentou desde março aqui no Brasil. Muitos ajustes foram necessários para que a vida privada, familiar, coletiva e funcional dos indivíduos fosse, ao menos, mantida em “nível mínimo racional de funcionamento”, a despeito de verificarmos muitas pessoas com distúrbios psicológicos, para além dos físicos. Explico: trabalho à distância, aulas online para crianças em idade escolar, novos modos de fazer negócio, preocupação mais latente com os cuidados à saúde, formas inovadoras de relacionamento entre pessoas, enfim, uma gama de coisas impulsionadoras, assim penso, da evolução.

Aqui, eis um aspecto oportuno da abordagem, que não pode ser olvidado: de acordo com os dados divulgados, muitos foram vencidos pelo “vírus maldito”. Triste situação, que inclusive demanda sensibilidade para que possamos ao menos nos solidarizar com o sofrimento alheio. Mas que desses eventos muitas lições sejam tiradas, pois não se pode esquecer que um dia se está aqui, são, outro dia não mais se está. Do pó viemos e a ele tornaremos. Somos todos iguais, nenhum melhor que o outro.

A vida é um sopro, e de nós demanda empatia, amor ao próximo, amizade, cuidado, preocupação social etc. Precisamos, enfim, de mais para evoluirmos como humanidade; desapegar de alguns conceitos seculares, atuar com maior espírito mediador e compreender que uma organização social perde sua razão de ser quando não mira primordialmente o bem-estar de sua comunidade. Esse é o bem maior a ser perseguido por qualquer organização social. Disputas de poderes e posições existem, mas vale a pergunta: chegaremos aonde? Qual é nossa meta como serem humanos com duração temporária neste plano? Todos os ferramentais postos são apenas para benefício de poucos?

A mim, especialmente, o ano de 2020 foi um ciclo de evolução pessoal. Muitos ensinamentos. Amadurecimento jurídico e verificação definitiva e irremediável de que o direito não é um fim em si mesmo. É um meio para solução e restauração de relações.

Percebo hoje, outrossim, que para sermos úteis e relevantes como pessoa basta sermos e demonstrarmos sermos úteis e relevantes, logo descompromissados com qualquer contrapartida pela prática das boas e corretas ações. Não se trata de estar preso a conceitos humanos fechados, mas sim a ensinamentos maiores que te fazem entender o quanto podemos ser felizes (direito fundamental à felicidade) e que estamos nesta vida para servir aos nossos semelhantes, buscando sempre o bem comum, conceito tão indeterminado e, por vezes, mal usado por alguns. E essa, me parece, é a lógica macro da ciência jurídica: proporcionar meios ao maior bem-estar possível às pessoas, trazer o mínimo de ordem e progresso, como inclusive expressado na bandeira de nosso país.

Do ângulo jurídico, ouso dizer que o ano foi extremamente produtivo, apesar de turbulento. E é na turbulência que se faz aeronauta mais forte, corajoso e experiente. Aqui no Brasil, em particular, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a atuar em casos simbólicos. Alguns exemplos, em minha percepção: [i] medida de atuação dos entes federativos quanto às ações político-administrativas para combate ao Covid-19, frente ao princípio da federação cooperativa; [ii] impossibilidade de reeleição de membros da mesa diretora das casas legislativas nacionais para os mesmos cargos em mandato subsequente, em observância à reoxigenação do exercício do poder, que aliás, diga-se, tem o povo por seu titular absoluto; [iii] impossibilidade de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas para fins previdenciários, independentemente da natureza do vínculo estabelecido, se hétero ou homoafetivo, com pauta na monogamia prevista na lei civil comum; [iv] reconhecimento da constitucionalidade e protagonismo da atuação de entidades do sistema S voltadas à promoção da economia nacional (Sebrae, Apex-Brasil e Abdi), em apoio franco ao poder público; [v] modo de aplicação do parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal, a partir da liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio para “André do Rap”, de forma a moldar a prática da prisão preventiva e seu dever contínuo de fiscalização sobre a manutenção de sua necessidade, uma vez que a regra é a liberdade; e [vi] fixação da ordem de apresentação das alegações finais por réus, em processos-crime, quando da existência de réus delatores, de forma a melhor modular e organizar as máximas do devido processo, contraditório e ampla defesa.

Enfim, há muito a evoluir. Precisamos de mais, de pensamentos e ações que se voltem à maximização de um meio social mais profícuo. Nossos representantes e nós mesmos podemos e devemos nos espelhar no ordenamento jurídico posto. Ele é o nosso bom Norte. Aliás, diga-se que nossa Constituição está aí faz trinta e dois anos, sólida, pronta a servir-nos como o mapa seguro para nossa caminhada, dirigida em última análise a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

Por oportuno: a mim me apetecem alguns temas ligados ao direito penal e ao direito processual penal. Gosto bastante dos preceitos e garantias fundamentais postos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 sobre as matérias jurídicas informadas. Há, por exemplo, o direito de o preso ser tratado com dignidade e, ademais, a lei penal estabelece que as penas serão dirigidas à reprovação (castigo ao infrator) e prevenção futura (desestímulo ao delito), com a meta de recuperação do preso à sociedade por meio da lei de execução penal vigente desde 1984. Basicamente, preceitos “a la Beccaria”.

A esse propósito, investiguei tema de grande valia à melhoria pontual de setor relevante da sociedade, a saber: a questão da recuperação dos presos no Brasil. O STF já se pronunciou sobre o estado de coisas inconstitucional que envolve o sistema de execução penal (prisional) brasileiro. E o Estado sofre para dar resposta constitucional e legal condizente à magnitude do problema. Temos de reconhecer que não estamos ótimos e que precisamos melhorar e, para tanto, a força da sociedade civil é sempre benvinda.

Localizei artigo escrito publicado pelo colega-advogado Geraldo Francisco Guimarães Júnior (Associação de proteção e assistência aos condenados) num já certo longínquo ano de 2005, mas que não perdeu atualidade. Nesse artigo, percebe-se uma humanidade empreendida a serviço do Estado, serviços prestados pela sociedade civil organizada dirigidos à recuperação do preso, afinal é bíblica (aos que assim creem) a possibilidade do perdão àqueles que pecam (delinquem, no caso) e verdadeiramente buscam a redenção e novas oportunidades. Para refletir, vale a leitura desse denso artigo, claro se o caro leitor me permite a recomendação.

Que nos sobrem as boas reflexões neste ano que está por se encerrar, e que possamos melhorar como sociedade, entendendo inclusive que a ordem jurídica está aí para que nos sirvamos positivamente dela, não para regozijo (indevido) próprio – como alguns fazem -, ou seja, para que nos compreendamos melhor, respeitemos as diferenças e façamos de nosso país um lugar melhor e mais próspero à atual e às futuras gerações.

Sob o manto da igualdade, alçaremos, certamente, voos muito maiores e estáveis. Que venha 2021. Felicidades a todos, ótimo fim de ano, natal de harmonia e ano novo repleto de sucesso.

Alessandro Ajouz
Advogado privado. Foi advogado de entidades do Sistema "S" (Apex-Brasil e SESCOOP-Nacional).

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