A disseminação do coronavírus, a ameaça sanitária global, o isolamento social e o inevitável fechamento de fronteiras foram elementos indutores para a aceleração da mobilidade global digital. O movimento de transcendência das distâncias geográficas, com o uso de meios digitais, fez surgir a postura de sobrevivência disruptiva nas empresas e possibilitou a permanência de diversas atividades econômicas no período crítico de pandemia, em que o Estado decretou condições mais rígidas para o isolamento social.
O isolamento social descortina antigas necessidades e traz à tona a importância da adaptabilidade como competência vital para o profissional do milênio. Em contrapartida, empresas têm implementado - do dia para a noite - processos de aculturamento para conscientizar gestores e líderes de que o foco é a produtividade por resultado, e não apenas o esforço.
Em meio ao frenesi de acontecimentos, o Estado interviu com a adoção de medidas emergenciais arrojadas, visando impedir o colapso da economia privada, pois, do contrário, experenciaríamos o maior déficit de empregabilidade do último meio século. Por essa razão, as medidas governamentais flexibilizaram direitos indisponíveis e possibilitaram a redução de salários, a suspensão de contratos e o diferimento no pagamento de tributos.
A necessidade de se manter produtivo fez com que a população mundial se reinventasse em tempo recorde. Eis que surgem as novas identidades laborais. O protagonismo do home office, jamais pensado em tamanha repercussão antes da pandemia da covid-19, acelerou o futuro do trabalho para modelos inovadores, como o formato work from anywhere, sem, contudo, contar com marcos regulatórios suficientes, o que ensejou debates jurídicos e sociais relevantes.
Nesse contexto, destacam-se alguns formatos de trabalho inovador: o virtual assignments, em que o trabalhador fixa-se em país diverso da empresa; o nomadismo digital, quando o trabalhador presta serviços de qualquer lugar do mundo por meios telemáticos; e, não menos inovador, a contratação on demand, em que a prestação de serviços desenvolve-se com início e término previamente ajustados.
As lacunas legislativas e jurisprudenciais sobre as novas identidades laborais, especialmente acerca do nômade digital, são desafiadoras para todos os sujeitos que compõem o ecossistema laboral, incluindo advogados, magistrados e órgãos de controle.
À luz do Direito do Trabalho brasileiro, importante destacar que a contratação de profissionais à distância não retira a obrigatoriedade de cumprimento das normas trabalhistas. O trabalhador nômade, ainda que não possua uma base de trabalho fixa, quando contratado por uma companhia brasileira, receberá igual tratamento àquele despendido aos trabalhadores que residem no Brasil.
Tanto o Poder Legislativo como a Justiça do Trabalho no Brasil já enfrentaram a discussão acerca da contratação e a prestação de serviços que se estabelece em mais de um ambiente jurídico.
A lei 7.064 de 1982, conhecida como Lei Mendes Junior, aborda a situação do profissional cujo contrato foi celebrado em solo brasileiro, mas executado no exterior. A referida norma garante aos empregados brasileiros, contratados no Brasil ou transferidos para prestar serviço no exterior, a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho e naquilo que não for incompatível com o disposto nessa lei, quando mais favorável do que a legislação aplicada no local em que o trabalhador está prestando serviços, em respeito ao Princípio da Norma Mais Favorável.
O Tribunal Superior do Trabalho, desde o ano de 2012, cancelou a súmula 207, que garantia a aplicação da legislação vigente no país da prestação de serviço, independentemente do local da contratação, vindo a reforçar a aplicação da lei 7.064/82. Isso porque tal regramento não guardava equilíbrio com o princípio da norma mais favorável e com a realidade das relações de trabalho na esfera global, em que a contratação do profissional pode ocorrer em local diverso da prestação de serviços.
Quanto às situações de empregados brasileiros que não tenham sido transferidos, mas contratados diretamente por empresa estrangeira, componente de conglomerado econômico brasileiro, a Justiça do Trabalho, invariavelmente, dispensa ao empregado o tratamento de “trabalhador brasileiro”.
Sob essa ótica, se o contrato de trabalho, celebrado e executado no território brasileiro, contemplar norma menos favorável por meio da aplicação de legislação estrangeira, o instrumento é passível de nulidade.
Seguindo essa tendência de valorização do trabalho à distância, locais digitalmente avançados como a Estônia, primeiro país a adotar uma legislação específica para que estrangeiros possam trabalhar a partir de seu território, possibilitou a concessão de visto temporário aos profissionais que residem naquele local, mas trabalham para outros países. O Caribe também seguiu essa iniciativa e já concede visto temporário para estrangeiros que residam à beira mar e prestam serviços para outras localidades, transpondo, assim, qualquer fronteira física.
Em apertada conclusão, a contratação por empresas brasileiras dos profissionais denominados nômades digitais deve atentar-se para o que dispõe o ordenamento jurídico trabalhista no Brasil, principalmente para o fato de que, na esfera do Direito do Trabalho, não há supressão de direitos aos empregados que laboram à distância. É certo que, as lacunas legislativas, decorrentes da prematuridade do tema, serão tratadas no curso do tempo. Mas, enquanto não saneadas, é fundamental que se tenha como norte os princípios que regem o Direito Trabalhista, notadamente a prevalência da norma mais benéfica ao trabalhador, sobretudo para mitigar riscos de passivo trabalhista.
Nessa perspectiva, a formalização de contrato de trabalho, contemplando as condições pactuadas (i.e., remuneração, descritivo de atividades, acompanhamento de produtividade), representa iniciativa relevante na rotina de gerenciamento de risco para esse tipo de contratação, tendo como base o que dispõe o Princípio da Primazia da Realidade, visto que a forma não se sobrepõe à realidade fática nas relações de trabalho, fundamento pelo qual o contrato deve refletir, de fato, os ajustes efetivamente praticados entre as partes.