Migalhas de Peso

Prioridade do CDC na coisa julgada em tutela coletiva

A inconstitucionalidade do art. 16 da LACP.

14/12/2020

Imagem: Arte Migalhas.

O STF afetou pelo tema 1075 a análise de constitucionalidade do artigo 16 da lei 7.347/85, que limita a coisa julgada erga omnes, própria do processo civil coletivo, aos lindes da competência territorial do órgão prolator.

Os recursos extraordinários movidos pelas instituições agremiadas ao Sistema Financeiro da Habitação combatem a decisão proferida no EREsp 1.134.957/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, que na base, ‘ao analisar a regra prevista no art. 16 da lei  7.347/85, primeira parte, consignou ser indevido limitar, aprioristicamente, a eficácia de decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante”.

Na prática ao tema foi reconhecida repercussão geral pelo plenário da Excelsa Corte considerando os Recursos Extraordinários reunidos pelo 1.101.937/SP e interpostos por instituições financeiras em ação civil pública anteriormente movida pelo Instituto de Defesa do Consumidor - IDEC na tutela de consumidores objetivando a revisão de contratos celebrados sob as regras do Sistema Financeiro de Habitação – SFH.

A consolidar o entendimento que há ‘limites territoriais’ nas sentenças proferidas em ações civis públicas incoerente restará a dinâmica do processo civil coletivo e infrutíferas as conquistas já consagradas ao sem-número de vulneráveis no Brasil. Contudo, cabem duas importantes preliminares a serem esgrimidas.

Pela primeira, verifica-se que o tema 1075 versa sobre ‘relação de consumo de natureza bancária’ e, via de consequência, é vinculativa a firme decisão da ADIn 2.591 (conhecida como “ADIN dos bancos”) que dispôs – no v. acórdão final do plenário em embargos de declaração – a plena constitucionalidade e aplicabilidade do CDC a todas as relações bancárias com consumidores. Pelo julgado, ao direito do consumidor foi confirmado o status de direito fundamental e a decisão da mencionada da ADIn1 se aplica tanto para ações envolvendo vulnerável individualmente considerado como também nas questões de âmbito coletivo.2

Já a segunda preliminar deriva da teoria do direito, ponto epistemológico novamente revelador da prioridade do CDC em face da lei de Ação Civil Pública. A Lei Protetiva mantém a seguinte a dicção do art. 90: “Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do CPC e da lei 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições”. O que equivale dizer que as normas processuais do CDC, em casos de consumo como as do tema 1075, são lex specialis e de aplicação obrigatória e prioritária em relação às normas do CPC e da Lei de Ação Civil Pública.

Cabe assinalar em decorrência da hipótese acima, que o conteúdo do art. 16 da LACP foi alterado pela lei 9.494 que é de 1997, portanto, legislação posterior ao CDC. Entretanto, dois conhecidos modelos para harmonização de conflitos antinômicos, em destaque na teoria do direito, apontam para aplicação das normas processuais do CDC.

Pela teoria clássica, o critério da especialidade prevalece porque o microssistema é manifestação de ‘justiça distributiva’3 e, como corolário, a lei nova geral não revoga nem modifica a lei especial, conforme disciplinado no art. 2º, § 2º da LINDB, aliás renovada em 2018. Pela teoria do diálogo das fontes, qualifica-se a opção de aplicação pelo CDC,  a considerar não apenas o diálogo de coerência (valores fundamentais), mas também o diálogo de complementariedade (leis gerais e especiais conjugando-se na interpretação de conceitos indeterminados) e o diálogo de adaptação do sistema (na realizabilidade do efeito útil das leis novas e protetivas), conforme previsão clara do disposto na cláusula geral do art. 7º do CDC.4

Superadas as preliminares, no mérito, a discussão desafia, com absoluta segurança, a declaração de inconstitucionalidade do art. 16 da LACP tal como disposto, considerando os limites subjetivos e objetivos da coisa julgada em tutela coletiva, assim como princípio da proporcionalidade.

Na transição da tutela tradicional (individual) para a tutela de novos direitos (coletiva)5 são perceptíveis grupos de pessoas, classes, categorias, comunidades, como modo de ‘compartilhar’ situações jurídicas compreendidas de natureza transindividual, isso porque remetem a pessoa à comparticipação de direitos, deveres e garantias.

Cinge-se no plano material-constitucional a compreensão de que na promoção desses ‘novos direitos’ estão compreendidos ‘novos sujeitos’ de direito. Vale insistir: são sujeitos ‘reais’ de direito, identificados e diferenciados na legalidade constitucional que, por sua vez, é exigente de múltiplos e infindáveis ‘deveres fundamentais de proteção’.6

A pauta dos limites subjetivos da coisa julgada do microssistema processual coletivo não é caracterizada restrição infundada de ‘indivíduos’, mas pela abrangência qualificada de ‘pessoas’. Está-se diante dos vulneráveis com elevada distinção e reconhecimento na Constituição Federal (consumidores, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, mulheres, idosos, futuras gerações), a quem a processualidade constitucional deve servir.

Os limites territoriais impostos pela lei 9.494/97 são altamente excludentes, restringindo acesso à ‘ordem jurídica justa’7 principalmente daquelas pessoas que sucumbem às mazelas sociais, quer pelas falhas de mercado, desigualdades em núcleos familiares, barreiras sociais, desequilíbrios ambientais, ausência de políticas públicas sanitárias, desastres provocados por grandes empreendimentos etc. É claro o óbice frente à contextualização promovida pelo inciso XXXV do art. 5º e art. 129, caput da Constituição Federal.

Igualmente a requalificação de direitos a partir da centralidade da pessoa na ordem pública constitucional é ponto especial no microssistema processual coletivo. Neste desiderato, os limites objetivos da coisa julgada nas ações civis públicas referem-se a posições jurídicas conquistadas, inicialmente como direitos humanos, para posteriormente restarem positivadas na Constituição Federal como direitos fundamentais e em inúmeras leis dirigistas como direitos básicos em normas narrativas, todas responsáveis pela promoção da pessoa.

Portanto, a prevenção e precaução a lesões ou ameaças de lesão, a responsabilização por danos, a invalidade de disposições legais ou negociais, decorre da ‘comunhão’, na mesma causa petendi, de direitos de elevada afirmação valorativa e que no dia-a-dia se dão em inúmeras relações jurídicas plurissubjetivas (relações jurídicas de consumo; relações jurídicas intergeracionais; relações jurídicas de inserção por políticas públicas; relações jurídicas de proteção a bens jusfundamentais).

Há, por derradeiro, nítida lesão ao princípio da proporcionalidade albergado da Constituição Federal, quer pela óbvia ‘proteção insuficiente’ dos direitos fundamentais, classificada como proibição por defeito (Untermaßverbot) e revelada quando da adoção de medidas insatisfatórias pelas entidades e instituições vinculadas aos deveres fundamentais de proteção8, quer pela clara ‘reversibilidade’ de direitos fundamentais impediente de medidas processuais coletivas para emancipação da pessoa e desenvolvimento comunitário, o que está diametralmente ligado, por razões óbvias, aos direitos fundamentais de natureza coletiva decorrendo como consectário a cláusula de proibição do retrocesso (Rückscrittsverbot).9

Hipotequemos esperança no E. STF que saberá à luz dos inúmeros precedentes de proteção aos vulneráveis, em especial a ADIn 2591, decidir com absoluto aos preceitos de igualdade, confiança e segurança jurídica.10

______________

1 Embargos de declaração. ...5. Embargos de declaração providos para reduzir o teor da ementa referente ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.591, que passa a ter o seguinte conteúdo, dela excluídos enunciados em relação aos quais não há consenso: Art. 3.º, § 2.º, do CDC. Código de Defesa do Consumidor. Art. 5.º, XXXII, da CF/88. Art. 170, V, da CF/88. Instituições financeiras. Sujeição delas ao Código de Defesa do Consumidor. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. Ação direta julgada improcedente (STF, ADIn 2591/DF, Tribunal Pleno, j. 14.12.2006, rel. Min. Eros Grau, DJ 13.04.2007).

2 MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito, in Revista de Direito do Consumidor. v. 43 São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 111 e seg.

3 BOBBIO, Norberto. Des critères pour résoudre les antinomies. In PERELMAN, Chaim (coord.). Les antinomies en droit. Bruxelas: Bruylant, 1965, p. 255. Também do mesmo festejado autor Teoria do ordenamento jurídico. São Paulo/Brasília: Pollis/Universidade de Brasília, 1990. p. 92.

4 BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Claudia Lima. A teoria do diálogo das fontes e seu impacto no Brasil: uma homenagem a Erik Jayme, in MARQUES, Claudia Lima (Coord). Direito Privado e Desenvolvimento Econômico, Estudos da Associação Luso-Alemã de Juristas (DLJV) e da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito do Consumidor, São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 172

5 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo coletivo e Constituição: a aplicação direta do CPC 2015 ao microssistema dos processos coletivos. In: Revista Iberoamericana de Derecho Procesal. v. 9. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 371-415.

6 SILVA, Jorge Pereira. Deveres do Estado de protecção de direitos fundamentais: fundamentação e estrutura das relações jusfundamentais triangulares. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015.

7 Watanabe, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: Participação e processo. Grinover, Ada Pellegrini; Dinamarco, Cândido Rangel e Watanabe, Kazuo (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

8 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Almedina, 2003, p. 273

9 FREITAS, Luiz Fernando Calil. Direitos fundamentais: limites e restrições. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

10 PULIDO, Carlos Bernal. O direito dos direitos: escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais. Trad. Thomas da Rosa de Bustamente. São Paulo: Marcial Pons, 2013, : Marcial Pons, 2013, : Marcial Pons, 2013, p. 141.

Fernando Rodrigues Martins
Promotor de Justiça. Mestre e doutor em direito das relações sociais pela PUC-SP. Professor, adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia. Ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

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