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A prescrição no crime de injúria racial

De fato, a injúria racial não se confunde com o racismo. É verdade que podem gerar confusões de toda ordem e com certa facilidade, mas são diferentes entre si.

10/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 26/11, o Plenário do Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento do Habeas Corpus 154.248 que discute a incidência ou não da hipótese constitucional da imprescritibilidade para o crime de injúria racial (ou injúria discriminatória)1. O julgamento foi suspenso, na última quarta-feira (02/12), em virtude do pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Votaram, até agora, o ministro Edson Fachin, relator do HC, e o ministro Nunes Marques2.

Fachin votou pelo indeferimento do pedido, denegando a ordem. De acordo com ele, a injúria racial é uma espécie de racismo3 e, portanto, imprescritível4. Nunes Marques, por sua vez, divergindo de Fachin, votou pela concessão da ordem, no sentido de permitir a incidência da prescrição à injúria racial. Embora tenha reconhecido a gravidade e a reprovação da conduta criminosa, entendeu não ser possível a aplicação da hipótese de imprescritibilidade, pois a injúria racial e o racismo protegem bens jurídicos distintos. No primeiro, o bem jurídico é a honra subjetiva; no segundo, a dignidade da pessoa humana.

De fato, a injúria racial não se confunde com o racismo. É verdade que podem gerar confusões de toda ordem e com certa facilidade, mas são diferentes entre si. Enquanto o primeiro consiste na ofensa praticada com elementos discriminatórios “referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”, como no lamentável episódio em julgamento, em que a impetrante do HC teria ofendido uma frentista de um posto de gasolina, chamando-a de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida”, o segundo consiste numa ação discriminatória em razão de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, como é caso, por exemplo, de impedir o acesso de alguém a um estabelecimento comercial em razão de sua religião.

Ao passo que a injúria racial ofende a honra subjetiva e a dignidade da pessoa ofendida, prescrevendo, em abstrato, em oito (8) anos a partir da data do fato, o crime de racismo ofende a dignidade da pessoa humana, em sentido amplo. Apenas este é inafiançável, imprescritível e de ação pública incondicionada5.  

Não se desconhece que a doutrina e a jurisprudência ainda divergem quanto a equivalência entre ambos. Um lado entende que os crimes se confundem, enquanto o outro entende que são condutas diversas. Para quem pensa por esse lado, embora se reconheça que são distintos entre si, ambos têm como finalidade precípua a igualdade constitucional, e, assim, o legislador procurou coibir toda a forma de discriminação, preconceito e intolerância, que acompanha a civilização através dos tempos6. Porém, um é imprescritível, o outro não.

Vale dizer, ainda, que em decorrência do princípio da reserva legal (art. 1º, Código Penal; art. 5º, XXXIX, Constituição da República), insculpido na máxima “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, não parece razoável que o Judiciário modifique, por meios próprios, uma situação que o Legislativo pretendeu expressamente distinguir, ou seja, a injúria racial do racismo, sob pena de afrontar o princípio da separação e da harmonia entre os poderes (art. 2º, Constituição da República).

Portanto, tudo indica que é papel do Legislativo tratar da incidência ou não da imprescritibilidade ao crime de injúria racial, em razão dos princípios constitucionais da reserva legal e da separação e harmonia entre os poderes, esperando-se, no nosso sentir, cautela da Suprema Corte para não dar intepretação jurídica que subverta a intenção original do legislador, nem que sirva para o uso indevido e abusivo da proteção legal.

________

1 Art. 140, parágrafo 3º, do Código Penal: “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Pena:  reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”

2 Disponível clicando aqui. Acesso em: 3 dez. 2020.

3 Art. 20, da Lei 7.716/89: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena:  reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”.

4 Art. 5º, XLII, da Constituição da República: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

5 Disponível clicando aqui. Acesso em: 3 dez. 2020.

6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 561.

Felipe Chiavone Bueno
Advogado Criminalista. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Processual Penal. Mestrando em Direito Penal na PUC/SP. Comissão Especial de Direito Penal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/SP.

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