Migalhas de Peso

Os desafios da celebração de acordos de colaboração premiada por CPIs

Por que a proposta constante do PL 4.137/19 carece de legitimidade e de viabilidade jurídica e processual

10/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Setores do Congresso Nacional, percebendo-se inócuos no combate à corrupção, têm buscado meios para atribuir maior efetividade às investigações realizadas no âmbito das Comissões Parlamentares de Inquérito. Nisso consiste a proposta constante do PL 4.137/19, de autoria do senador Jorge Kajuru (Cidadania/GO), ao sugerir que as CPIs sejam legitimadas para celebrar acordos de colaboração premiada com investigados, à semelhança do delegado de polícia e do Ministério Público, autorizados a tanto pelo § 6º do art. 4º da Lei de Organizações Criminosas (lei 12.850/13).

Além disso, o projeto também propõe que membros de CPIs possam ter acesso aos autos em que constam o acordo, distribuídos sigilosamente por força do caput do art. 7º da Lei de Organizações Criminosas, desde que haja autorização judicial. A intenção seria a de transformar as CPIs (hoje por certa ala do Congresso Nacional consideradas toothless) em instrumentos mais efetivos de persecução penal.

Apesar das justas pretensões, a sugestão carece de legitimidade formal e material, e deve ser considerada com cautela ante a projeção de danos consideráveis tanto ao instituto da colaboração premiada no Brasil – inclusive no que concerne aos direitos e garantias do próprio investigado –, quanto ao próprio funcionamento das CPIs.

Prejuízo à cooperação jurídica internacional

Na experiência brasileira, os acordos de colaboração premiada impulsionaram a cooperação jurídica internacional em matéria penal no âmbito da Operação Lava Jato. De fato, os muitos acordos resultaram em um rastreamento mais profícuo dos recursos desviados, preparando um terreno fértil para a cooperação jurídica internacional1.

O Brasil é Estado-parte da Convenção Interamericana contra a Corrupção (1996) e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003). Ambos os tratados multilaterais estabelecem que a assistência e a cooperação internacionais se darão por meio de autoridades centrais, designadas pelos Estado-parte, e que elas seriam, a partir daí, encarregadas de formular e receber as solicitações de assistência e cooperação. Segundo o art. 26, § 4º, do CPC/15, o Ministério da Justiça e Segurança Pública é a autoridade central na ausência de designação específica – como é o caso de alguns tratados de cooperação jurídica internacional bilaterais2.

Ainda, a autoridade policial (com poderes para indiciar) e o Ministério Público (com poderes para denunciar) podem cooperar com seus pares de outros países por meio de outros canais de cooperação jurídica internacional, a exemplo do auxílio direto3.

A proposta do PL 4.137/19 oferece às CPIs – que não possuem poderes para indiciar ou denunciar, mas apenas para investigar – o direito de celebrar acordos de colaboração premiada, contudo, acaba por limitar o poder de efetiva e completa investigação, com dinâmica e direta assistência e cooperação jurídica internacional entre órgãos próprios de investigação nacionais e de outros países.

Restariam prejudicados, por fim, alguns dos principais objetivos da colaboração premiada: (I) o resgate de ativos; (II) a reparação dos danos; e (III) a progressão da investigação.

Cumpre ressaltar, por fim, que não há case de sucesso consolidado no mundo de Comissões Parlamentares de Inquérito que tenham legitimidade para celebrar este tipo de acordo. Prosperando a proposição em apreço, o Brasil estaria inaugurando um modelo de investigação excepcional.

Ofensa ao sistema acusatório

A atribuição às CPIs de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (art. 58, § 3º, CRFB/88), embora restritos4, tem inspiração na Constituição de Portugal de 1976, em seu art. 178, parágrafo 5º. Das diversas emendas que o dispositivo constitucional em comento recebeu nas comissões da Assembleia Constituinte de 1987-88, registrou-se a intenção cristalina dos constituintes de registrar que os poderes de investigação de autoridades judiciais atribuídos às CPIs limitar-se-iam à “produção de provas”5.

Dialeticamente, portanto – e por uma interpretação teleológica – as CPIs não possuem poder para indiciar ou para denunciar porque detêm poderes de investigação típicos das autoridades judiciais, mais precisamente seus poderes instrutórios (que não implicam em poder de investigação lato sensu). Por esse motivo, não há sequer legitimidade constitucional para que as CPIs possam celebrar acordos de colaboração premiada, sob pena de ofensa ao sistema acusatório.

Se, por um lado, há cláusulas restritivas gerais às CPIs que lhes impõem limites não aplicáveis à atuação da autoridade policial ou do MP; há, por outro lado, determinados privilégios investigativos atribuídos aos inquéritos parlamentares de que não gozam aqueles atores. É o caso da possibilidade de quebra dos sigilos bancário, fiscal e de dados telefônicos (distintamente do sigilo das comunicações telefônicas, ressalte-se, protegido pelo art. 5º, XII, da CF/88) pelas CPIs.

Sendo o órgão competente tanto para investigar quanto para determinar a quebra dos sigilos bancário, fiscal e de dados telefônicos, vê-se com preocupação, quando menos, a possibilidade de este mesmo órgão negociar acordo de colaboração premiada. O investigado poderá sentir-se coagido a, desde o início, celebrar o acordo se vislumbrar pressão política para a quebra de sigilos pelo colégio da comissão.

Em relação à colaboração premiada, Alexandre Morais da Rosa sustenta que o Estado deve agir com boa-fé objetiva, não podendo “potencializar inescrupulosamente elementos probatórios, mesmo que os agentes pensem que seja por bons motivos”6.

Sigilo da colaboração premiada vs. Publicidade da CPI

Aqui, parece-nos haver nova controvérsia; desta vez, não apenas principiológica, mas também procedimental. Os atos das CPIs, como atos da Mesa da Casa que as criar, são regidos pelo princípio da publicidade. Até mesmo os depoimentos de indiciados não podem ser sigilosos na CPI, estando sujeitos, inclusive, à exposição na mídia via transmissão e gravação da sessão em que se toma o depoimento7.

Por outro prisma, o art. 7º, § 3º, da Lei de Organizações Criminosas, estabelece que o acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou queixa-crime. Segundo o referido diploma legal, o acesso aos termos e documentos contidos no acordo é restrito àqueles que dele participam.

Não bastasse essa dificuldade procedimental, o art. 3º-B da Lei de Organizações Criminosas também exige que haja um marco de confidencialidade desde o recebimento da proposta para a formalização do acordo.

Com isso, não apenas a CPI não poderia divulgar os termos, os documentos e os depoimentos constantes do acordo de colaboração premiada, como deveria manter em sigilo também as propostas decorrentes da negociação do acordo. Não se vislumbra, neste cenário hipotético, conciliação harmoniosa entre esses ditames e o princípio da publicidade dos atos da CPI, inclusive dos depoimentos dos investigados ou de testemunhas, dada a natureza política das Casas Legislativas.

Corrida institucional pela colaboração premiada

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que é constitucional a contemporaneidade de procedimento penal investigatório e de CPI, e até mesmo o compartilhamento de provas entre eles8.

A coexistência das duas investigações, ainda nos seus cursos, poderia gerar uma corrida institucional involuntária para o oferecimento do acordo de colaboração premiada, em relação ao órgão que primeiro – e em melhores condições para o investigado – o fizer, inaugurando um verdadeiro balcão de negócios com o potencial colaborador.

Nessa esteira, um outro aspecto relevante adensaria uma corrida institucional pela celebração de colaboração premiada: as CPIs possuem prazo de duração determinado, diferentemente das investigações tocadas pelo MP e pela polícia.

O Regimento Interno do Senado Federal (RISF), em seu art. 76, § 4º, limita em todo caso a duração de CPIs ao período da legislatura em que for criada, por força do princípio da unidade de legislatura. Apesar de não haver previsão semelhante no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), o STF considera o prazo de duração da comissão como sendo um dos pontos de dialética entre a CPI e os direitos individuais e, por isso, deve-se tomar a matéria por lei, e não pelo Regimento Interno9.

Nesse sentido, quanto à duração de uma CPI, aplica-se o art. 5º, § 2º, da lei 1.579/52: “a incumbência da Comissão Parlamentar de Inquérito termina com a sessão legislativa em que tiver sido outorgada, salvo deliberação da respectiva Câmara, prorrogando-a dentro da Legislatura em curso”. (grifamos). O prazo de uma legislatura, por vezes, não é o prazo razoável de procedimentos penais investigatórios, e.g. a Operação Lava Jato, que já dura mais de seis anos.

Como também já decidiu o STF, findo o prazo de funcionamento e extinta a CPI, restam prejudicadas as ações de mandado de segurança e de habeas corpus contra CPIs, independentemente da aprovação, ou não, de seu relatório final10.

Sendo negociadas e acordadas no âmbito das CPIs as colaborações premiadas, estar-se-ia, então, diante de um dilema processual que acarretaria latente insegurança jurídica: se ainda não homologados, subsistiriam os acordos mesmo após extintas as comissões em que eles foram negociados? Diante de eventual ilegalidade aparente, contra que autoridade coatora se impetrariam os writs previstos no art. 102, I, d, da CF/88? Mais: verificada aparente ilegalidade e devolvendo-se o acordo pelo juiz às partes para as adequações necessárias (nos termos do art. 4º, § 8º, da Lei de Organizações Criminosas) após a extinção da CPI, quem seria a parte legítima para renegociar o acordo?

Conclusão

Segundo Eduardo Bim11, não se pode distinguir o controle político do controle jurídico exercido pela CPI; “por meio dela [dessa distinção], não se pode negar o caráter jurídico do político, apenas realçar a maior amplitude de fundamentação do controle parlamentar”. “[...] O que existe, portanto, são pontos diferentes de uma escala contínua, e não termos absolutos e antagônicos”.

O próprio STF já asseverou ser a CPI um direito das minorias legislativas à participação ativa no processo de investigação legislativa12. Daí mesmo o quórum de 1/3 para a criação da comissão.

Não há como negar o caráter jurídico da CPI; não se pode, muito menos, dissociá-lo do seu caráter político. Por esse motivo, o min. Teori Zavascki negou acesso, pela CPMI da Petrobras, a um acordo de colaboração premiada, oportunidade em que ressaltou o não cabimento da operacionalização de tal instrumento por CPIs:

É que, no âmbito investigatório dessas Comissões, não se contempla, nem se admite, a figura da colaboração premiada, a qual mais que um meio probatório é instrumento relacionado diretamente ao próprio julgamento da ação penal e à fixação da pena, constituindo, por isso mesmo, instituto reservado à jurisdição.13 (grifamos).

A celebração de acordos de colaboração premiada por CPIs seria, por fim, perniciosa para: (I) as garantias e os direitos fundamentais consagrados pela Constituição e pelo ordenamento jurídico pátrio; (II) as garantias processuais e o devido processo legal; (III) o regular e escorreito funcionamento do instituto da colaboração premiada no Brasil; e (IV) as premissas primordiais da CPI, considerados o seu objetivo e a sua natureza.

O instituto da colaboração premiada, no Brasil, estando em fase de desenho na medida em que se avança no seu uso e na sua importância, ainda é muito sensível a desmandos que podem macular toda a persecução penal, cível ou administrativa, a depender em que âmbito se celebra o acordo.

Apesar da justa e legítima intenção, entendemos que a proposição em comento não tem lugar no ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de relevantes e irreversíveis danos não só aos institutos jurídicos envolvidos, mas aos direitos e garantias fundamentais de pessoas e ao interesse público.

_________

1 Cf. GIACOMET JÚNIOR, I. A. Desempenho da cooperação jurídica internacional nos cinco anos de “lava jato”. Conteúdo Jurídico, Brasília/DF: 24 de março de 2019. Acesso em: 7 set. de 2020.

2 Cf. Decreto n. 8.861/2016, que definiu a Procuradoria-Geral da República como autoridade central nas hipóteses de atribuição do MPU, dos MPEs e do MPDFT, para a cooperação jurídica internacional no âmbito da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP (2005).

3 “Auxílio direto é instrumento de cooperação jurídica internacional no qual o Estado Requerente da cooperação provoca e subsidia o Estado Requerido administrativamente, de modo a que o Requerido promova atuação doméstica, quer administrativa, quer judicialmente”. LOULA, Maria R. G. Auxílio direto: novo instrumento de cooperação jurídica internacional civil. Belo Horizonte: Fórum, 2010. pp. 93-94 e 100.

4 Incompetência da CPI para expedir decreto de indisponibilidade de bens de particular, que não é medida de instrução, mas de provimento cautelar de eventual sentença futura. MS 23.480, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 4-5-2000, P, DJ de 15-9-2000. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. de 2020.

5 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. Quadro histórico artigo 58 da Constituição Federal de 1988. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. de 2020.

6 ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 48; 192.

7 MS 24.832 MC, rel. min. Cezar Peluso, j. 18-3-2004, P, DJ de 18-8-2006. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. 2020.

8 HC 100.341, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 4-11-2010, P, DJE de 2-12-2010. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 de setembro de 2020.

9 HC 71.261, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 11-5-1994, Plenário, DJ de 24-6-1994. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. 2020.

10 MS 23.852 QO, rel. min. Celso de Mello, j. 28-6-2001, P, DJ de 24-8-2001. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. 2020.

11 BIM, Eduardo F. A função constitucional das Comissões Parlamentares de Inquérito: instrumentos da minoria parlamentar e informação da sociedade. Revista de Informação Legislativa, v. 42, n. 165, p. 107-121, jan./mar. 2005. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. 2020.

12 MS 26.441, rel. min. Celso de Mello, j. 25-4-2007, P, DJE de 18-12-2009. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. 2020.

13 Rcl 17.623, rel. min. Teori Zavascki, in MS 33.278, rel. min. Roberto Barroso, j. 18-11-2014, DJE 20-11-2014, p. 2. Disponível clicando aqui. Acesso em: 7 set. 2020.

Levi Rezende Lopes
Advogado e assessor legislativo na Câmara dos Deputados. Membro da Comissão de Migrações e Comércio Exterior da OAB/DF. Aluno Especial Mestrado em Processo Legislativo CEFOR/Câmara dos Deputados.

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