Um dos fundamentos pelos quais devem-se pautar o pesquisador e o operador do Direito consiste na averiguação de como o Direito, efetivamente, é aplicado, ou seja, a pesquisa de como os operadores jurídicos agem na realidade.
É muito comum, infelizmente, que se confunda o Direito em tese, abstratamente considerado, com aquele concretamente existente e aplicado. É como se o navegador confundisse o mapa com o território.
Conhecer o Direito efetivamente aplicado é fundamental para uma crítica jurídica, sob pena da análise recair sobre uma parcela da realidade cuja existência é, na prática, desconsiderada, recaindo a investigação em meio vão quando cinge-se ao abstratamente posto. Como bem aponta Miguel Reale1, a "indiferença para com os problemas particulares que compõem a trama viva da experiência social" resulta em "abstrações infecundas".
A expressão linguística não se confunde com os entes reais. Do mesmo modo que a rosa, com outro nome, teria igual perfume2, alguém ter um direito pode, na prática, significar para a pessoa a ausência do mesmo.
Nem todo aquele que se diz, por exemplo, democrático, concretamente o é. Karl Loewenstein3 inclusive bem aponta o fato de que vários regimes autocráticos viram-se constrangidos a, pelo menos, intitularem-se democracias e a tentar soar regidos por uma Constituição4 - a exceção a isso foi o regime nazista que, ainda que tenha propagandeado um alegado caráter democrático, sequer tentou parecer estar submetido a uma Constituição5.
Não que o Direito circunscreva-se àquilo que se pratica – nesse sentido, oponho-me ao realismo jurídico-, mas o desenvolvimento do mesmo depende da análise do que ocorre, efetivamente, na prática, sob pena da crítica investir contra o alvo errado ou que, desconsiderando o elemento fáctico, proponha soluções piores do que aquelas já levadas a efeito na realidade diante da concretude dos fatos.
Afinal, quem critica e postula a substituição de uma determinada prática deve, ao mesmo tempo, propor outra melhor, sob pena de constituir-se, na melhor das hipóteses, em apenas uma denúncia (que, por sua vez, tem valor, mas não serve para a substituição do que já se faz).
Além disso, o grau de dissonância entre o Direito positivado e aquele de facto é indício do déficit de implementação de um Estado de Direito.
Às vezes, é verdade, sequer o Direito positivo pode ser conhecido. Por isso, o advento das Leis das XII Tábuas constituiu-se em um avanço, pois até então sequer se sabia sobre quais bases dava-se a aplicação do incipiente Direito Romano. Saber qual a lei aplicável não garante um julgamento justo, mas é o princípio de uma boa administração da justiça.
No recente século XX, conta-nos Hannah Arendt6 que por meio de circular de dezembro de 1932 inaugura-se um período de atos legislativos secretos na Alemanha, ou seja, "a norma tipicamente totalitária que utiliza leis que não são levadas à atenção do público" e, como o regime de Hitler faria depois, "advertindo a seus destinatários que "estas diretivas não devem ser publicadas".
Assim, qualquer questionamento ao agir estatal tornava-se impossível, pois sequer eram conhecidas as normas que direcionavam a conduta dos agentes públicos.
Todavia, em outros casos, existe um Direito posto e conhecido, mas a realidade subjacente não é, de facto, normatizada.
Sobre tal fenômeno, bem aponta Ferdinand Lassalle ao discorrer sobre os fatores reais de poder que se constituem nos sustentáculos da ordem jurídica efetivamente aplicada. Segundo Lassalle.7
Os fatores reais de poder que vigoram no seio de cada sociedade constituem essa força activa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em questão, fazendo com que não possam ser, substancialmente, mais do que tal como são.
Com base nas circunstâncias da realidade da Prússia de meados do século XIX, Lassalle8 aponta que de nada adianta uma negativa parlamentar a respeito da permissão orçamentária para que um rei aumente o efetivo militar quando o mesmo pode, impunemente, simplesmente cobrar os tributos relativos a tal despesa, sem que seja possível a coibição de tal prática pelo Poder Judiciário e quando o uso da força contra o particular pode ser exercido sem a respectiva possibilidade de responsabilização. Esse exemplo de atuação dos fatores reais de poder é fornecido pelo autor em um cotejo entre a realidade inglesa, na qual os fatores reais de poder impedem esse tipo de arbitrariedade, e aquela da Prússia, onde sequer existia a possibilidade de intervenção judicial sobre decretos reais e onde o abuso do poder de coerção estatal não tinha qualquer perspectiva de coibição e repressão.
Do exposto por Lassalle é possível inferir que para alguém ser cidadão, ao invés de súdito ou servo, revela-se imprescindível não apenas que um documento diga que o é, mas que haja meios de, concretamente, fazer valer na realidade os respectivos direitos inerentes a tal condição. Assim, quando não há instrumentos concretos de se fazer valer os direitos, o que há, na verdade, é um Estado de não-Direito, ainda que o diametralmente oposto seja anunciado na legislação.
Nessa linha, Alexandr Soljenítsyn[9], sobrevivente dos Gulags, oferece o exemplo soviético e sobre o mesmo discorre nos seguintes e eloquentes termos:
Muitos Princípios Fundamentais, Decretos e Leis – tanto contraditórios como complementares – foram promulgados e impressos; mas o país não é regido por nada disso, não é de acordo com esses regulamentos que se fazem as detenções, se promovem os julgamentos e se decretam deportações. Somente naqueles poucos casos (uns 15%?) em que o objeto de investigação e os procedimentos judiciais não atingem os interesses do governo, a ideologia reinante, os interesses pessoais, nem interferem na tranquilidade de algum oficial – nesses raros casos, os agentes do judiciário podem usufruir de sua prerrogativa: julgar os processos considerando apenas o mérito e os ditames da consciência, sem ter de telefonar a parte alguma ou receber instruções de alguém. Para todos os outros casos – a esmagadora maioria deles: civis ou criminais, não faz diferença -, telefonam de um cômodo escritório a outro, sem correrias, sem alteração na voz, e amistosamente aconselham, emendam, direcionam e ditam o modo de se chegar à decisão judicial no processo de algum implicado de pouca relevância, que nem sequer chega a compreender os planos dos que estão acima dele. E o pequeno e crédulo leitor de jornais entra na sala do tribunal com a razão pulsando no peito, argumentos sensatos preparados e, nervoso, expõe todos eles diante das máscaras adormecidas dos juízes, sem desconfiar que sua sentença já está escrita, e não há instâncias apelativas, prazos ou meios para que se recorra daquela decisão corrupta e funesta, que faz arder no peito a injustiça.
Pois há uma parede. E seus tijolos estão ligados por uma argamassa de mentiras.
Chamamos este capítulo de "A lei hoje". Mas teria sido mais correto chamá-lo de "Não há lei".
Aquela mesma dissimulação pérfida, aquela mesma bruma de injustiça pairam em nosso ar, muito mais escura e pesada que a fumaça das chaminés das cidades.
A segunda metade do século é dominada por um Estado enorme cingido por aros de aço. E aros não faltam, mas lei não há.
Logo, faz-se necessário em um Estado de Direito – e para isso a pesquisa jurídica deve atentar-se – não apenas a proclamação de direitos e deveres, mas também a respectiva disposição dos meios para que se façam efetivos na prática.
Disso emerge, ainda, a necessidade do estudo das instituições que operam o Direito cotidianamente, de modo que se afira, na realidade concreta, o modo pelo qual os direitos e deveres (não) são efetivados.
Nessa linha, a pesquisa empírica possui um grande potencial para, conjuntamente com outras vias, permitir o desenvolvimento teórico e prático do Direito, de modo a permitir contribuições reais, concretas, ao aprimoramento das instituições e em benefício da sociedade.
Quem critica as instituições processuais, deve buscar conhecer a fundo a rotina cartorária, os modos pelo quais são organizados os julgamentos, a ritualística pretoriana, etc.
A posição dos atores da cena processual em audiência e tudo aquilo que pertence ao ritual judiciário revela o quanto, de facto, segue-se – ou não – o sistema acusatório.10 Por isso, a mera assunção normativa do princípio acusatório não torna o processo, efetiva e integralmente, acusatório, pois para isso ocorrer a facticidade precisa incorporar referida norma. Compare-se o processo penal estadunidense e o brasileiro e ver-se-á que o sistema acusatório possui uma dinâmica profundamente distinta.
De igual modo, não adianta bradar-se pela duração razoável dos processos sem atentar-se para o problema do tempo morto dos feitos em escaninhos cartorários – que foi, felizmente, atenuado após o advento do processo eletrônico.
Aquele que se dedica ao estudo do Direito Criminal, deve perquirir a dinâmica de um conflito, suas razões, as formas de violência, balística, rotina policial e outros temas afins. Não se pode discutir sobre legítima defesa quando pouco se sabe sobre a dinâmica de um combate armado e nem sobre abuso de autoridade quando não se tenta compreender o modus operandi policial.
Até mesmo porque o operador do Direito não é um decifrador de leis, alguém cuja tarefa estaria reduzida a explorar a semântica e a sintaxe dos textos jurídicos, mas sim aquele que se desincumbe da tarefa jurídica, explorando os aspectos normativos, axiológicos e factuais, harmonizando na realidade tais elementos para fins de apresentar uma solução para um conflito de interesses existente ou potencial. A inteligência da normatividade somente está completa quando compreendidos e integrados em uma unidade coesa os aspectos fácticos e valorativos envolvidos.
Assim, o caminho entre o ambiente acadêmico e os fóruns, delegacias, cadeias, etc. deve ser uma via de mão dupla, de aprendizado mútuo, de modo a, simultaneamente, oportunizar-se o desenvolvimento teórico calcado na realidade e permitir-se uma prática tecnicamente mais qualificada.
Por fim, anoto que compreender essa interação entre a concretude da realidade e a abstração das normas permite, ainda, compreender como se pode chegar a uma situação na qual o Direito posto pode resultar em algo repudiado pela população.
Quando o povo não tem os meios necessários para influir na formação e/ou na aplicação do Direito, abre-se um hiato entre o reputado justo pela sociedade e aquilo que é feito pelo Estado. O entendimento dessa dissonância é crucial para a análise de como se chega e se permanece nessa situação deplorável e, para tanto, é necessário entender como operam os fatores reais de poder e como a democracia está além de um mero rótulo.
1 REALE, Miguel. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992 (reedição em fac-símile de 2010), p. 79.
2 SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Ato II, cena II.
3 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 2018, p. 214.
4 A democracia, idealmente, é o governo do povo e para o povo, assumindo, assim, uma dimensão formal (acesso ao processo democrático e, por consequência, a participação na formação do poder constituído) e uma substancial (o exercício do poder político é levado a efeito em prol do povo). De um lado, é necessário que o povo possa participar do governo, direta ou indiretamente, de outro, revela-se imprescindível que tenha meios de obstar que os governantes desviem-se do interesse público.
Um Estado no qual esteja presente apenas uma das duas dimensões não é, de facto, uma democracia, ao menos não plenamente. Ambos aspectos são constitutivos do fenômeno democrático e sem um deles o que se tem é um ambiente apenas parcialmente democrático. Com entendimento diverso, Norberto Bobbio (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Volume 1. 13ª ed. Tradução de Carmen Varriale e outros. Brasília: UNB, 2016, p. 329) entende que uma democracia formal não é uma democracia por aqueles que a entendem substancialmente e vice-versa, de modo que haveria dois conceitos distintos de democracia e nenhum deles estaria errado.
5 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 2018, p. 214 e 221.
De certo modo, o advento do nazismo infirmou a previsão histórica feita por Ferdinand Lassalle de que, uma vez escancarado o viés autoritário de um regime e visto a olhos nus que a sustentação se daria pela força – e não pelo Direito -, tal espécie de governo sucumbiria sem maior dificuldade. Lembra-se, aqui, ter Lassalle (Ob. cit., p. 126-142) proposto que o parlamento da Prússia deixasse de deliberar até que o Rei voltasse atrás e se submetesse ao orçamento eventualmente aprovado pelo Poder Legislativo.
O século XX revelou que escancarar o caráter ditatorial um governo não é suficiente para, por si só, derrubá-lo.
6 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 145.
7 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Tradução de Inês Espada Vieira. Lisboa: Escolar, 2013, p. 76.
8 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Tradução de Inês Espada Vieira. Lisboa: Escolar, 2013, p. 118-125.
9 SOLJENÍTSYN, Alexander. Arquipélago Gulag. Tradução de Lucas Simone e outros. São Paulo: Carambaia, 2019, p. 653 e 654.
10 Sobre o tema: GARAPON, Antoine. Bem Julgar: Ensaio sobre o Ritual Judiciário. Lisboa, Instituto Piaget, 1997. No Brasil: LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 74 ss.