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A ratio decidendi do RHC 163.334/SC e a criminalização do inadimplemento do ICMS declarado

O que se denota da ratio decidendi, é que a posição do pretório excelso inviabiliza qualquer tentativa de responsabilidade penal objetiva ou de mera prisão por dívida civil.

4/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Como já é cediço para aqueles que acompanham os julgamentos das demandas criminais no Supremo Tribunal Federal, no dia 18.12.2019, foi julgada a ação que buscava colocar uma pá de cal sobre a discussão envolvendo a tipicidade do inadimplemento de ICMS declarado.

Nesse sentido, os tribunais de todo o país passaram a aplicar a tese fixada no HC 163.334/SC, que assentou que "o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da lei 8.137/1990".

Assim, em virtude da alteração da jurisprudência, houve um agravamento dos riscos da atividade empresarial, operada pela criminalização de atitude praticada, muitas das vezes, em momentos isolados e de dificuldade econômica.

Contudo, fato é que, no dia 13.11.2020, sobreveio o acórdão que julgou o HC 163.334/SC, onde se pode colher a ratio decidendi do aludido precedente, que denota, depois da leitura de todo o seu conteúdo (210 páginas), um alento aos jurisdicionados, posto que fora afastada a responsabilidade penal objetiva em virtude de mera inadimplência, como faziam, e ainda fazem, alguns setores do Poder Judiciário em diversas oportunidades.

No ponto, após amplamente discutida, sagrou-se vencedora a tese que afirmava que seria possível a criminalização do inadimplemento do ICMS declarado quando, e somente quando, houvessem indícios, objetivamente demonstrados na instrução processual, de que o agente responsável pelo pagamento dos tributos deixou de adimpli-los com vistas a auferir renda com tal prática, seja apropriando-se das quantias, seja vendendo abaixo do preço de mercado, seja utilizando-se de "laranjas" ou outros meios de elidir a sua responsabilidade.

Desse modo, muito diferente da responsabilização objetiva que têm promovido setores do Ministério Público e do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal entendeu (acertadamente, em nossa ótica) que somente é possível a criminalização do inadimplemento quando demonstrada a responsabilidade subjetiva do agente, apurada por demonstrações concretas, aferidas em instrução processual, que demonstrem o dolo do agente.

Ou seja, continua afastada a criminalização do mero inadimplemento, devendo o parquet demonstrar, em cada caso concreto, por meio de prova, que o inadimplemento é decorrente de atitude dolosa do responsável material pelo recolhimento dos valores, não sendo possível a mera indicação de inadimplência e a figuração do agente como administrador formal da empresa.

Nesse sentido, o próprio relator do voto vencedor, ministro Luis Roberto Barroso1, foi taxativo em aduzir que é "preciso, portanto, que se constate que a inadimplência do devedor é reiterada, sistemática, contumaz, verdadeiro modelo negocial do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades".

Assim, sintetizou o julgador a forma como deveria ser apurada a demonstração do dolo do agente delituoso:

O dolo de apropriação deve ser apurado na instrução criminal, a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de "laranjas" no quadro societário, o encerramento irregular das suas atividades, o valor dos débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado etc. Tais circunstâncias são meramente exemplificativas e devem ser cotejadas com as provas existentes no caso concreto para fins de aferição do elemento subjetivo do tipo.

(páginas 33/34)

Seguindo o voto, e a própria linha de raciocínio do voto condutor, o ministro Luiz Fux, após tecer as mais duras críticas ao tipo penal em julgamento, afirmou que tal onus probandi recai sobre a acusação, que possui o ônus de indicar os elementos caracterizadores do delito na própria denúncia, já que deixou claro em seu voto que "incumbe ao Ministério Público, ao narrar a conduta, demonstrar que não se cuidou de um inadimplemento momentâneo do acusado, mas de ação premeditada, dolosamente voltada à lesão do erário, em proveito próprio ou da empresa"2.

E seguindo no mesmo teor, os ministros Luiz Edson Fachin e Dias Toffoli deixaram claro que "o simples inadimplemento fiscal não denotaria desvalor suficiente a ponto de legitimar sanção penal" (FACHIN p. 122/123), de modo que somente aqueles que buscam se enriquecer com a inadimplência que merecem a reprimenda da lei penal, sendo que tal demonstração "deverá ser aferida a partir de circunstâncias factuais objetivas do caso concreto, como, por exemplo, a contumácia delitiva, ou seja, devedores que fazem do inadimplemento seu modus operandi" (TOFFOLI, 169).

Dessa forma, o que se denota da ratio decidendi, é que a posição do Pretório Excelso inviabiliza qualquer tentativa de responsabilidade penal objetiva ou de mera prisão por dívida civil, nada alterando o julgado em questão as disposições que versam sobre o ônus da prova da acusação, que deve comprovar, em cada caso concreto, em elementos objetivos e claros, o agir doloso do agente, sob pena de absolvição; elementos estes, frise-se, que já devem vir descritos na denúncia, inclusive, sob pena de inépcia.

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Às vezes, a empresa está em estado de solvabilidade e não há dolo. Por outro lado, pode haver erro do contador, como ocorre conosco, pessoa física, e não há dolo. É preciso comprovar o dolo para que haja essa criminalização, que é a última ratio do Direito.
(FUX, 174)

Consectariamente, incumbe ao Ministério Público, ao narrar a conduta, demonstrar que não se cuidou de um inadimplemento momentâneo do acusado, mas de ação premeditada, dolosamente voltada à lesão do erário, em proveito próprio ou da empresa.
(FUX, 189)

(...).

Por isso, cabe ao Ministério Público, ao narrar a conduta, demonstrar que não se cuidou de um inadimplemento eventual do acusado, mas de ação premeditada dolosamente, voltada à lesão do erário em proveito próprio ou da empresa. Insuficiente, para a caracterização do dolo, alusão exclusivamente à escrituração e não recolhimento do ICMS, uma vez que a inobservância da técnica arrecadatória, por si só, não revela ânimo de prejudicar o Fisco.
(FUX, 204)

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1 O mero inadimplemento tributário configura apenas ilícito administrativo, passível de inscrição na dívida ativa e de cobrança via execução fiscal. Contudo, não é crime. Para que o não recolhimento de tributo caracterize crime se exige algo a mais, uma reprovabilidade especial que justifique o tratamento mais gravoso.
Postas essas premissas, retomo a questão principal: o contribuinte que, escriturando e declarando o ICMS devido, deixa de recolhê-lo, comete o delito do art. 2º, II, da lei 8.137/1990? Embora o tema seja controverso, convenci-me de que, desde que preenchidos outros pressupostos, a resposta é positiva. Essa conclusão se sustenta em três fundamentos.
(páginas 14/15).

(...).

É preciso, portanto, que se constate que a inadimplência do devedor é reiterada, sistemática, contumaz, verdadeiro modelo negocial do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades. Trata-se de elemento de valoração global do fato, a ser apurado pelo juiz em cada processo concreto. Além da própria conduta atual de inadimplência reiterada, também deve-se levar em consideração o histórico de regularidade de recolhimentos tributários do agente, apesar de episódios de não recolhimentos específicos, justificados por fatores determinados.

(...).

O dolo de apropriação deve ser apurado na instrução criminal, a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas” no quadro societário, o encerramento irregular das suas atividades, o valor dos débitos inscritos em dívida ativa superior ao capital social integralizado etc. Tais circunstâncias são meramente exemplificativas e devem ser cotejadas com as provas existentes no caso concreto para fins de aferição do elemento subjetivo do tipo. (páginas 33/34)

2 Ao final, estou sugerindo interpretação conforme, para dizer: para caracterização do delito do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, a denúncia deve narrar circunstanciadamente a efetiva cobrança ou desconto do tributo do preço final ao consumidor ou a redução do preço para finalidade ilícita , excluída - isso que acho importante - do âmbito de incidência do tipo penal a criminalização da mera inadimplência isolada do contribuinte. Nessa inadimplência isolada do contribuinte, o Ministro Luís Roberto Barroso, Relator do feito, enumerou, aqui, casos que se encaixariam, digamos assim, nessas excludentes.
(páginas 117/118)

(...).

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*José E. da C. Fontenelle Neto é mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, mestre em Direito da União Europeia pela Universidade do Minho - UMINHO/PT, especialista pós-graduado em Direito Penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal ICPC/UNINTER. Graduado em Direito pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. 

 
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