Migalhas de Peso

2 anos de plano cicloviário no estado de São Paulo. Temos o que comemorar?

A lei dizia que seu objetivo era disciplinar "a implementação de infraestrutura para o trânsito de veículos de propulsão humana nas estradas estaduais e nos terrenos marginais às linhas férreas".

4/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 10.095 foi publicada pelo presidente da Assembleia Legislativa do ESP no Diário Oficial do Estado (DOE) no dia 26 de novembro de 1998 e veio estabelecer o “Plano Cicloviário do Estado de São Paulo e dá outras providências”.

Esclareço que referida lei foi publicada no órgão oficial pelo presidente da Assembleia Legislativa, porque o Governador na época o sr. Mário Covas não o fez1 (artigo 28, parágrafo 8º da Constituição do ESP).

Referida lei dizia que seu objetivo era disciplinar “a implementação de infraestrutura para o trânsito de veículos de propulsão humana nas estradas estaduais e nos terrenos marginais às linhas férreas” (art. 1º).

Estabeleceu a lei entre seus principais objetivos: “I - introduzir critérios de planejamento para implantação de ciclovias ou ciclofaixas em rodovias e nos terrenos marginais às linhas férreas; II - compatibilizar e promover a circulação intermunicipal; III - facilitar a circulação nos espaços habitáveis e áreas adjacentes ou circundantes; IV - conscientizar a população sobre o uso conjunto e a circulação por trechos de estradas de tráfego compartilhado; V - promover a integração dos transportes terrestres; VI - introduzir medidas de segurança de circulação; VII - reduzir a poluição ambiental e minimizar seus efeitos negativos” (art. 2º).

Dizia o artigo 18 desta lei, que “O Poder Executivo expedirá decreto regulamentador no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contados da data da publicação desta lei”, ou seja, devolveu àquele que não quis publicá-la a prerrogativa de a regulamentar.

Mario Covas faleceu2 e não a regulamentou, assumiram seus sucessores, 20 anos se passaram e esta lei ficou adormecida nos escaninhos do Palácio dos Bandeirantes.

Muita coisa aconteceu neste período, principalmente a morte da ciclista Marcia Prado, em dezembro de 2009, quando, em plena avenida Paulista, foi atropelada por um coletivo.

Desde então, na data de seu acidente, como protesto pelo abandono do Plano Cicloviário, os ciclistas passaram a descer pra Santos fazendo o mesmo trajeto que Marcia fez naquele dia, na que ficou conhecida como Rota Marcia Prado (RMP), que sai da avenida Paulista, passa pelo bairro do Grajaú, pela balsa na ilha do Bororé, SBC, Via imigrantes, estrada da manutenção, Cubatão e chega a cidade de Santos.

Enquanto isso o Plano Cicloviário inspiração da lei 10.095/98 continuava adormecido nas gavetas do governo na avenida Morumbi, 4.500.

Mas a gota d’água aconteceu no comecinho de dezembro de 2017 quando milhares de ciclistas foram barrados pela polícia paulista, naquele que se tornou conhecido como um dos mais vergonhosos e sangrentos episódios praticados contra os ciclistas que se tem notícia.

A base de jatos d'água, cacetetes e bombas de gás lacrimogênio, homens, mulheres, crianças, idosos e até cadeirantes ciclistas ficaram horas e horas encurralados, depois foram agredidos covardemente no quilometro 40 da rodovia Anchieta e expulsos de volta a São Paulo.

Um movimento de revolta e protesto se formou e os deputados paulistas foram de novo acionados, quando a ALESP deu sua resposta aprovando logo no início de 2018 a lei que criou oficialmente a Rota cicloturistica Marcia Prado.

E no dia 30 de maio de 2018 em um evento repleto de centenas de ciclistas o Governador em exercício Marcio França, além de promulgar a Lei que criou a RMP, também assinou um documento criando o Ciclocomite Paulista, órgão de composição paritária (ciclistas, sociedade civil e governo) com a incumbência de “contribuir com a integração entre ações ambientais voltadas aos veículos não motorizados e para a construção de uma política estadual para transporte ativo” (Resolução SMA 64, de 30/5/18).

O então Ciclocomite Paulista atuou de forma dinâmica e harmônica em 2018, realizando dezenas de reuniões entre ciclistas e os entes públicos, fazendo vistorias, preparando planos e projetos, culminando com a realização do Pedal Anchieta 2018, em 02 de dezembro daquele ano, no que ficou conhecido como o maior evento ciclístico do Brasil e o segundo maior do mundo, pois 40 mil ciclistas se reuniram nesta data e de forma ordeira e coordenada desceram pedalando até Santos, num clima de muita festa.

No dia 02 de dezembro, ou seja, há 2 (três) anos atrás, no final do Pedal Anchieta – dentro do Museu Pelé, em Santos, ao lado de várias autoridades, bem como da Comissão de Mobilidade Ciclística da OABSP – autora da proposta, o governador (em exercício) Marcio França assinou o decreto 63.881, acolhendo proposta de redação dos advogados da Comissão de Mobilidade Ciclística da OAB/SP e do Ciclocomite Paulista, regulamentando finalmente a lei 10.095, de 1998 e, exatos 20 (vinte) anos, depois o Estado de São Paulo passou a ter finalmente o seu Plano Cicloviário.

No dia 30 de maio de 2018 – quase 10 anos depois da morte da ciclista na avenida Paulista, também foi sancionada a lei que regulamentou a Rota Marcia Prado para a descida até Santos de Bicicleta.

Mas, hoje, 04 de dezembro de 2020, passados 20 anos da promulgação da lei e 2 (dois) anos depois de sua regulamentação pelo decreto supra citado, o Plano Cicloviário do ESP continua adormecendo profundamente nas gavetas palacianas da avenida Morumbi, 4.500, pois o atual governo não moveu um musculo sequer para torná-lo eficaz.

A projeto da obra da RMP elaborado pela ECOVIAS e aprovado pelo Ciclocomite está parado na ARTESP – Agência Reguladora de Transporte no ESP.

Infelizmente, desde dezembro de 2018, data que o decreto 63.881 entrou em vigor, nenhum único centímetro de ciclovia foi construído nas rodovias e estradas paulistas; o artigo 58 do Código de Transito Brasileiro (lei federal 9.307/96), que garante o direito do ciclista pedalar de forma segura pelos acostamentos - onde não houver ciclovias, não é respeitado; os ciclistas não podem descer para a baixada santista pela RMP; não foram regulamentadas as rotas cicloturisticas que poderia gerar receitas e empregos a milhares de pessoas nas zonas rurais3 e o pedal Anchieta em 2019 foi entregue a uma ONG, em 2020 não irá acontecer, por conta da covid-19.

O Estado de São Paulo tem o triste recorde negativo de ter menos ciclovias e rotas cicloturisticas do que Santa Catarina, por exemplo, (Clique aqui).

O cicloturismo é altamente rentável e socialmente engajado, pois estimula pequenos proprietários a transformarem suas propriedades em pousadas, estimula o comercio e a economia, fixa o homem no campo e traz retorno fiscal.

Cicloturismo, uma modalidade de turismo muito utilizada na Europa, em franco crescimento nos EUA, com a organização de roteiros e desafios ciclísticos onde existe a hospedagem e visita a parques de forma controlada e planejada”.

No ESP temos mais de duas dezenas de rotas cicloturisticas em funcionamento, mas todas elas não têm apoio oficial e existem porque ciclistas, prefeitos dos municípios, comerciantes e apaixonados se dedicaram a criar as mesmas.

O cicloturismo na Europa, conhecido pela EUROVELO, abrange 15 rotas que passam por 42 países, com 70 mil kms de extensão. Isso mesmo: 70 mil km, para percorrer tudo isso você precisa pedalar quase uma vida inteira.

A experiencia mostra que um ciclista gasta em medida R$ 150 reais por dia, quando sai para fazer cicloturismo e 30% disso retorna aos cofres públicos em tributos. O pedal Anchieta 2018 – aquele com 40 mil ciclistas descendo para Santos em 2/12/18 gerou uma receita acumulada de 4 milhões de reais, em um único dia de evento.

Em contrapartida a tudo isso, no Estado de SP somos os campeões em atropelamentos e mortes de ciclistas.

Enquanto o governo paulista boicota o plano cicloviario a bicicleta vem cada dia tomando espaço em nossa sociedade4. Muito embora seja administrada pelo mesmo partido que o do senhor governador, a cidade de São Paulo tem hoje um excelente plano Cicloviário.

Em épocas de pandemia o comercio de magrelas cresceu assustadoramente (que bom – vejam: Clique aqui).

Mas o que é mais grave: no finalzinho de 2019 às vésperas do natal os Secretários do Transporte e Logística e o da Infraestrutura e Meio Ambiente do atual Governo assinaram uma Portaria conjunta, que: (I) limitou as atuações do Ciclocomite, tornando seus membros meros convidados; (II) quase que triplicou o número de representantes do Governo – o que foi um tiro no pé, pois isso inviabilizou o funcionamento do Ciclocomite, haja vista que a maioria dos órgãos públicos não indicou ainda seus representantes, atrofiando o órgão; (III) tornou o Ciclocomite um órgão meramente consultivo; (IV) reduziu a representação dos ciclistas e da OAB/SP, bem como (V) não tem uma agenda de reuniões e propostas, está praticamente parado.

Enfim, hoje, 04 de dezembro de 2020, 22 anos depois de sancionada a lei e 2 anos depois da mesma ser regulamentada: temos o que comemorar?

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1 ARTIGO 28 - Aprovado o projeto de lei, na forma regimental, será ele enviado ao Governador que, aquiescendo, o sancionará e promulgará. - Artigo 66, “caput” da Constituição Federal.

(...)

§ 8º - Se, na hipótese do §7º, a lei não for promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Governador, o Presidente da Assembleia Legislativa promulgará e, se este não o fizer, em igual prazo, caberá ao Primeiro Vice-Presidente fazê-lo. - Artigo 66, § 7º da Constituição Federal

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*Aparecido Inacio Ferrari Medeiros é advogado em São Paulo. Conselheiro da AATSP - Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo. Sócio titular do escritório Aparecido Inácio e Pereira Advogados Associados.

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