Migalhas de Peso

A titularidade interfederativa das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões para prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico de interesse comum

Novo Marco Legal do Saneamento Básico subtrai dos municípios a titularidade para a prestação dos serviços nas hipóteses de regionalização.

27/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 11.445/07, com a redação que lhe foi conferida pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico (que daqui por diante será referido como NMLSB ou lei 14.026/20), define como serviços públicos de saneamento básico de interesse comum, os serviços prestados em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões instituídas por lei complementar estadual, em que se verifique o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre 2 (dois) ou mais municípios, denotando a necessidade de organizá-los, planejá-los, executá-los e operá-los de forma conjunta e integrada pelo Estado e pelos munícipios que compartilham, no todo ou em parte, as referidas instalações operacionais (vide art. 3º, XIV).

A lei 14.026/20 estabeleceu ainda que o Estado exerce a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico em conjunto com os municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual (vide art. 8º, II da nova redação da lei 11.445/07).

Fernão Justen de Oliveira1 entende que esta prestação regionalizada mira três objetivos: (1) ganho de escala; (2) universalização e (3) viabilidade técnico-econômica dos serviços.

Para Diogo Mac Cord2, o art. 8º do NMLSB regulamenta o “Art. 25 da Constituição, em linha ao acórdão STF resultante da ADIn 1.842/13, criando o instrumento das ‘Prestações Regionalizadas’, onde os municípios enquadrados como ‘interesse comum’ (fundamentalmente, regiões metropolitanas) têm adesão compulsória, e aqueles de ‘interesse local’ aderem de maneira facultativa”.

Pois bem, no mencionado julgamento da ADIn 1.842/RJ (Ação direta de inconstitucionalidade contra lei complementar 87/97, lei 2.869/97 e decreto 24.631/98, todos do Estado do Rio de Janeiro, que instituíram a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e a Microrregião dos Lagos e transferiram a titularidade do poder concedente para prestação de serviços públicos de interesse metropolitano ao Estado do Rio de Janeiro), o STF declarou em 2013 que “quando o ciclo do saneamento básico se der no território de um mesmo município, o titular será o município. Quando isso não for possível, o titular será o colegiado representativo da região metropolitana ou microrregião na qual os municípios estiverem inseridos3”.

Tendo a ADIn 1.842/RJ como pano de fundo para interpretar o NMLSB, Juliano Heinen4 entende que “pela interpretação sistemática da lei 14.026/20, há duas perspectivas quanto à adesão dos municípios e à titularidade: a) A adesão será compulsória, quando a prestação regional se der por meio de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Mas desde que — e aqui é o ponto nodal — os municípios compartilhem efetivamente instalações operacionais (operating facilities); b) Nos demais casos, a adesão será facultativa, ou seja, não será obrigatória a aderência nos blocos criados pela ANA ou pelo Estado, ou caso não exista o compartilhamento. Basta existir, aqui, prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico.”

Dentro de tal cenário, o mencionado autor conclui que não há um juízo de oportunidade e conveniência por parte dos Municípios para aderir ou não às regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões criadas por lei complementar estadual, haja vista que, criada quaisquer uma dessas unidades interfederativas, automaticamente a titularidade da prestação do serviço público de saneamento deixa de pertencer aos municípios e migra à nova estrutura criada.

Neste particular, apenas discordamos de Juliano Heinen quando ele traz como requisito para esta adesão compulsória dos municípios às unidades interfederativas (quais sejam, as regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões criadas por lei complementar estadual) a necessidade de que eles “compartilhem efetivamente instalações operacionais”.

Esta questão do compartilhamento efetivo de instalações operacionais dá azo a um amesquinhamento dos valores de cooperação interfederativa trazidos pela lei 14.026/20, haja vista que permite (mesmo de forma involuntária ou indevida) que eventualmente um município alegue que outros Municípios utilizam as suas instalações operacionais e que não há um compartilhamento mútuo e recíproco.

A interpretação do ciclo do saneamento (que envolve a captação, tratamento e distribuição da água e a coleta, transporte, tratamento e disposição do esgoto), por envolver um inegável acesso a um direito fundamental resguardado pela CF/88, deve ser a mais ampla possível, haja vista que a implementação da cooperação interfederativa prevista no NMLSB é a melhor ferramenta para garantir o ganho de escala, a universalização e a viabilidade técnico-econômica dos serviços de saneamento básico.

Ressalte-se neste aspecto as lições de Bernardo Strobel5 no sentido de que “os municípios não têm liberdade para não cumprir as diretrizes federais, pois elas se orientam à produção de um resultado que vai além do interesse local. Em termos diretos, o interesse local não serve de justificativa para que a administração municipal embarace o cumprimento de objetivos nacionais. O espírito da regra do art. 21, XX, da Constituição, é assegurar que, pela atuação da União, o desenvolvimento urbano seja implementado em todo território nacional”.

Muito embora o comentário do referido autor esteja inserido no contexto da competência da ANA prevista na lei 14.026/20 para editar normas de referência, aproveita-se a sua essência para ressaltar a importância de sobrepor os valores nacionais e regionais contidos no NMLSB sobre eventuais interesses meramente provincianos.

Diante do objetivo (e do imenso desafio) de universalizar o acesso ao saneamento básico, o NMLSB deixa patente que o compartilhamento de recursos e a comunhão de vontades de todos os atores do setor é fundamental para coordenar os esforços necessários para atingir os fins da norma.

De tal sorte, nos termos da lei 14.026/20, o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário que caracteriza como serviços públicos de saneamento básico de interesse comum os serviços de saneamento básico prestados em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões instituídas por lei complementar estadual deve ser caracterizado à luz de cada caso concreto da forma mais abrangente possível.

Pois bem, posto isso, quais as consequências imediatas da implementação das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões para prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico de interesse comum quando da edição das leis complementares estaduais?

Bom, com a instituição da unidade interfederativa por lei complementar os serviços de saneamento básico passam a ser organizados, planejados, executados e operados de forma conjunta e integrada pelo Estado e pelos respectivos municípios integrantes da região metropolitana, da aglomeração urbana e da microrregião, o que redunda, na impossibilidade de os Municípios inseridos na unidade interfederativa agirem de forma individual e, por exemplo, instaurarem processos de licitação para a concessão de serviços de saneamento.

Uma vez estabelecida a titularidade interfederativa das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões para prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico de interesse comum por meio da edição da respectiva lei complementar estadual, qualquer medida isolada praticada seja por parte do Estado, seja por parte dos Municípios integrantes, será flagrantemente ilegal por se tratar de uma indevida usurpação de competência.

A titularidade interfederativa das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões impõe, portanto, cooperação, integração e consensualismo para a para prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico de interesse comum.

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1 OLIVEIRA, Fernão Justen de, Gestão associada e prestação regionalizada na nova Lei Nacional de Saneamento Básico, Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini nº 162, agosto de 2020, disponível clicando aqui, acesso em 22/11/20.

2 MAC CORD, Diogo, O novo marco do saneamento básico, JOTA, 16/7/20, disponível clicando aqui, acesso em 22/11/20.

3 MASCARENHAS, Rodrigo Tostes de, A Ana e a Federação por Água Abaixo: notas sobre o novo marco legal do saneamento, Direito do Estado, 31/8/20, disponível em clicando aqui, acesso em 22/11/20.

4 HEINEN, Juliano, E agora, quem vai prestar o serviço de saneamento básico no Brasil?, Conjur, 29/09/2020, disponível em clicando aqui, acesso em 22/11/20.

5 GUIMARÃES, Bernardo Strobel, Regulação do Saneamento Básico no novo marco: do local ao nacionalmente homogêneo, Coluna Saneamento: Novo Marco Legal, site da Editora Fórum, disponível em clicando aqui, acesso em 22/11/20.

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*Aldem Johnston Barbosa Araújo é advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

 
 
 
 
 



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