Migalhas de Peso

O Banco Central do Brasil com os pés em duas canoas – II (Isto não vai dar certo)

Até quando nossa autoridade monetária terá condições de manter os juros básicos da economia em 2% a.a.?

24/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Neste segundo artigo cabe continuar a discussão sobre a pretendida reforma da legislação concernente ao BCB, não sem antes observar um artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo de 19/11/20, de autoria de Roberto Macedo e que serve de introito para o tema de hoje, dado que, inicialmente, cuidarei da política monetária. Anota esse comentarista que se o governo federal não tomar medidas para reduzir em expressão significativa o déficit fiscal (muito aumentado neste ano como se sabe), deve-se ter em conta preocupações com o financiamento da dívida pública, do que podem resultar pressões sobre o câmbio e as próprias expectativas de inflação, com a possibilidade do seu agravamento.

No mesmo sentido lê-se matéria no “O Estado de São Paulo1 um alerta correspondente a uma luz amarela que já está acesa, no sentido da presença de um risco de inflação para 2021, tendo em conta – não se sabe por quanto tempo ainda – os efeitos econômicos da evolução da pandemia, o manejo das contas públicas e a sustentação da retomada econômica. 

Ora, as medidas que deverão ser tomadas pelo BCB no sentido do controle da inflação serão claramente cerceadas se ele tiver de se ocupar ao mesmo tempo com o nível do emprego pela via da busca da estabilidade de preços, conforme abordado no artigo anterior. E a pergunta que se coloca é, precisamente, até quando nossa autoridade monetária terá condições de manter os juros básicos da economia em 2% a.a.?

Segundo a matéria acima citada, o aumento recente da inflação foi causado pelo maior volume de compras feitas pelas famílias, para sua adaptação a um novo modelo de vida; pelo auxílio emergencial; e pela forte valorização do dólar. Percebe-se que o controle dessa variáveis, a par de outras aqui não citadas, operando em um regime complexo de interferências recíprocas, já é em si um encargo que envolve diversas competências, ao qual não deve ser agregado outro – o da estabilidade dos preços – que indiretamente já é contemplado pela estabilidade da moeda.

Como se percebe, não é hora de tirar a bola de campo, mudando as competências do CMN e do BCB.

1. Quinta pérola – As metas da política monetária – Art. 2º do PL 19/10

As metas de política monetária serão estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, competindo privativamente ao Banco Central do Brasil conduzir a política monetária necessária para cumprimento das metas estabelecidas”.

Está presente nesse artigo uma profunda e grave confusão conceitual. Não podem serem erigidas metas para a política monetária, mas sim para a inflação, conforme tem sido feito até agora pelo BCB. Vou procurar me fazer entender.

A política monetária pode ser vista como o conjunto de ferramentas que um mecânico tem ao seu dispor para consertar um carro. Da maneira como quer o projeto em apreço nós teríamos o mecânico recebendo instruções do seu superior que lhe diria que não poderia fazer muita força com um alicate ou com uma chave de fenda no reparo do veículo. Ele teria que fazer o seu trabalho, digamos, usando um determinado limite de força aplicada naquelas ferramentas e não menos nem mais. É mais provável que o carro continuasse com defeito, pois a pressão necessária estaria fora da meta estabelecida.

No meu livro sobre os bancos centrais, já citado no artigo anterior, eu me reporto a ensinamento de Donald L. Kohn2 a respeito da intensidade do exercício da política monetária, que se coloca como uma questão de medida. Ao lado de uma intervenção voltada para corrigir determinada rota, torna-se necessário também discernir sobre o aspecto quantitativo, ou seja, qual o limite e a duração da intervenção que deva ser tomada. Portanto, trata-se de uma dinâmica até mesmo diária resolver que ferramentas serão utilizadas para o controle da inflação, por quanto tempo e em que intensidade. Como se sabe o movimento dos mercados é altamente mutável, o que se verifica com velocidade cada vez maior, sem contar que as fronteiras financeiras estão cada vez mais tênues.

Como disse, em termos de metas, elas têm sido estabelecidas em função de um objetivo do nível inflacionário que se pretende alcançar dentro de determinado período de tempo, para tanto, entre nós, a cargo do COPOM – Comitê de Política Monetária, do BCB.

Portanto, verifica-se que o tratamento dado pelo projeto ao tema da política monetária resulta de pavoroso desconhecimento do assunto.

2. Quinta pérola ruim em meio a outras boas – Arts. 3º e 4º do projeto – A escolha dos administradores do BCB

Art. 3º A Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil terá nove membros, sendo um deles o seu Presidente, todos nomeados pelo Presidente da República entre brasileiros idôneos, de ilibada reputação e notória capacidade em assuntos econômico-financeiros ou comprovados conhecimentos que os qualifiquem para a função.

Art. 4º O Presidente e os Diretores do Banco Central do Brasil serão indicados pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação de seus nomes pelo Senado Federal.

§ 1º O mandato do Presidente do Banco Central do Brasil terá duração de quatro anos, com início no dia 1º de janeiro do terceiro ano de mandato do Presidente da República.

§ 2º Os mandatos dos Diretores do Banco Central do Brasil terão duração de quatro anos, observando-se a seguinte escala:

I – dois Diretores terão mandatos com início no dia 1º de março do primeiro ano de mandato do Presidente da República;

II – dois Diretores terão mandatos com início no dia 1º de janeiro do segundo ano de mandato do Presidente da República;

III – dois Diretores terão mandatos com início no dia 1º de janeiro do terceiro ano de mandato do Presidente da República; e

IV – dois Diretores terão mandatos com início no dia 1º de janeiro do quarto ano de mandato do Presidente da República.

§ 3º O Presidente e os Diretores do Banco Central do Brasil poderão ser reconduzidos uma vez, por decisão do Presidente da República, observando-se o disposto no caput na hipótese de novas indicações para mandatos não consecutivos.

§ 4º O prazo de gestão do Presidente e de cada um dos Diretores do Banco Central do Brasil se estenderá até a investidura do sucessor no cargo.

Tratei longamente desse tema na minha obra, já citada, especialmente no capítulo III, pp. 79 a 130. No direito comparado é unânime a noção de que a autonomia dos bancos centrais passa, por sua vez, pela sua autonomia em relação aos poderes constitucionais, o que se refere até mesmo – e especialmente – diante do Poder Executivo do qual faz parte. Diante de uma missão de tanta responsabilidade - a estabilidade de moeda -, é absolutamente necessário que os administradores dos bancos centrais não possam ser pressionados no exercício de suas funções por pessoas ou órgãos de quaisquer espécies. Evidentemente essa autonomia se coloca em um plano de limites constitucionais e legais, já tendo sido combativa a noção de que as autoridades monetárias seriam órgãos representativos de um quarto poder relativamente aos ordenamentos jurídicos vigentes. Pode se dizer que os administradores dos bancos centrais devem poder muito, mas não tudo. Já disse Napoleão Bonaparte que desejava que o banco estivesse sob o controle do Governo, mas não muito3, sendo essa uma expressão de autonomia desejada e colocada de forma direta e muito simples.

O projeto adotou, felizmente, essa linha de estabelecimento da autonomia do BCB, conforme o modelo tradicional nas democracias. Assim sendo, para o presidente e os diretores desse órgão são determinados mandatos fixos não coincidentes parcialmente entre si e em relação ao Presidente da República.

A necessária capacidade profissional para o exercício dos cargos na presidência e na diretoria do BCB também se encontram delineados de forma adequada no projeto. No entanto, uma sombra se projeta, não na forma, mas no conteúdo, como seja a da aprovação dos seus nomes pelo Senado Federal, depois da indicação feita pelo Presidente da República. E como temos falado de mecânica de automóveis, é aqui que a coisa pode pegar, já que a história das manifestações daquele Poder no sentido da aprovação de nomes não tem sido das mais louváveis.

Esse é o mesmo modelo de outros países, cujo exemplo maior pode ser, mais uma vez, o dos Estados Unidos da América, onde o Senado Federal é chamado a homologar nomes em algumas oportunidades. Mas lá e cá existe uma clara inadequação do sistema, uma vez que o viés político existe e frequentemente ele é claramente presente. Por exemplo, os presidentes da república americana desejam uma Suprema Corte moldada aos interesses do seu partido político. Presidente democrata, tribunal democrata; Presidente republicano, tribunal republicano, conforme acabamos precisamente de ver na escolha do último juiz daquela corte. E, no sistema bipartidarista que ali existe sabe-se muito bem o que se esperar de um juiz republicano ou democrata, pois eles se revelam coerentes ao pensamento político de um ou do outro lado.

E no Brasil, ora o Brasil!

Aqui existe uma pretendida divisão entre direita, esquerda e centro, sem se saber com alguma certeza o que significam esses núcleos de identidade política. O centro estaria no centro, o que significaria uma posição equidistante do pensamento dos dois outros lados, do qual se poderia esperar uma ação equilibrada e racional no trato da coisa pública. Quimera, pura quimera! Nosso centro não é o meio, nosso centro é o Centrão, com toda a carga de significados negativos que é conhecida desde a creche onde estão os nossos filhos, até os mais altos escalões das finanças, das empresas e da academia. Alguém já disse que um representante do centrão pode ser identificado por estar sempre entre os primeiros nos cumprimentos ao vencedor e, é claro, acrescento, entre os primeiros também a abandonarem o perdedor.

O lema do Centrão, colocado em destaque em sua bandeira, é “Pecunia, quae sera tamem” ou “Pecúnia sempre, ainda que tarde”.  Essa pecúnia pode ser direta, na forma de propina em espécie; como verbas do orçamento para serem gastas ao bel prazer do favorecido; por meio de cargos no serviço público, especialmente para os parentes do votante (que caracteriza descarado nepotismo, cunhadismo, sogrismo, e por aí vai). E como o Estado detém quase duzentas agências reguladoras, cheias de cargos a preencher, há comida para o apetite de muita gente.

Bem a propósitos, nestes últimos dias, sem muito alarde, dezenas de cargos foram preenchidos nessas agências, com aprovação do Senado, sem que a sociedade civil tenha sido adequadamente informada sobre o assunto, tendo sido muito provavelmente colocados no ápice da pirâmide de vencimentos do serviço público pessoas cuja idoneidade e preparo técnico para as vagas preenchidas não tenham, certamente, sido devidamente avaliadas.

E, apesar de aparente cuidado no projeto de reforma do BCB esteja presente, há brechas que podem ser dolosamente aproveitadas. Uma delas, ainda que os mandatos dos administradores do BCB venham a se caracterizar como não coincidentes com os do presidente da República – o que dele tiraria o incentivo para indicar alguém segundo a sua preferência monetária (digamos assim), não nos esqueçamos que o mais alto cargo da nossa república pode ser bisado em uma reeleição, do que decorre que, ainda que não reeleito, determinado presidente pode fazer o seu sucessor segundo a sua cabeça. Será que isso já não aconteceu entre nós em nossa história recente?

A fábula do gato que caçava os ratos desprevenidos vem bem a pelo. Em um simpósio de sobrevivência da comunidade uma das prováveis futuras vítimas do felino deu uma boa ideia: basta botar um sininho no pescoço do gato que não mais poderá nos pegar de surpresa. Mas, disse um dos seus amigos, quem fará isso, e como? Ora, nós precisaríamos botar um guiso no Senado para nos alertar quando de suas votações, de forma a se fazer uma pressão cívica que redundasse em boas homologações. Mas, no regime constitucional e político vigente, eu vejo dificuldades extremas, não bastando o eventual receio de uma longínqua não reeleição do votante irresponsável em futuro distante. Afinal de contas todo eleitor, como eu mesmo, nem sequer sabe se votou e se o fez em quem, por exemplo para deputado estadual ou senador.

Pensando alto poder-se-ia cogitar de uma instância homologatória superior (que poderia ser o Judiciário), o que dependeria de uma reforma constitucional. Mas, dado o mesmo vício que nosso STF padece, em termos, tal como a Suprema Corte dos Estados Unidos, seria uma solução eventualmente inócua a qual, eu diria, apenas aumentaria os custos de transação.

Em conclusão desta parte, a homologação dos nomes dos diretores do BCB pelo Senado não é garantia de se dar posse a pessoas verdadeiramente competentes para o exercício de suas funções. Ainda bem que, na história desse órgão os diversos governos têm tido, na prática, certo pudor em indicar pessoas incompetentes e/ou amigos de confiança, encontrando-se ali funcionários de carreira de elevado saber relativamente ao sistema financeiro, sendo amplamente reconhecido que o seu quadro de pessoal desponta pela excelente qualidade como um dos mais elevados do nosso sistema. Todos aprovados em concurso público extremamente difícil na avaliação correspondente.

Uma única recondução em mandato sucessivo se revela como escolha adequada para o fim da renovação do quadro de administradores do BCB, o que é também um modelo no direito comparado.

3. A Exoneração dos administradores do BCB – art. 5º

Art. 5º O Presidente e os Diretores do Banco Central do Brasil serão exonerados pelo Presidente da República:

I – a pedido;

II – no caso de acometimento de enfermidade que incapacite o titular para o exercício do cargo;

III – quando sofrerem condenação, mediante decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, pela prática de ato de improbidade administrativa ou de crime cuja pena acarrete, ainda que temporariamente, a proibição de acesso a cargos públicos;

IV – quando apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central do Brasil.

§ 1º Na hipótese de que trata o inciso IV, compete ao Conselho Monetário Nacional submeter ao Presidente da República a proposta de exoneração, cujo aperfeiçoamento ficará condicionado à prévia aprovação por maioria absoluta do Senado Federal.

§ 2º Ocorrendo vacância do cargo de Presidente ou de Diretor do Banco Central do Brasil, um substituto será indicado e nomeado para completar o mandato, observados os procedimentos estabelecidos no art. 3º, devendo a posse ocorrer no prazo de quinze dias, contado da aprovação do nome pelo Senado Federal.

§ 3º Na hipótese do § 2º, o cargo de Presidente do Banco Central do Brasil será exercido interinamente pelo Diretor com mais tempo no exercício do cargo e, dentre os Diretores com o mesmo tempo de exercício, pelo mais idoso, até a nomeação de novo Presidente.

Neste tópico não há grandes novidades, devendo ser observado certo risco no tocante à exoneração de um administrador baseada em comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do BCB.

Não esclarece o projeto se uma denúncia de determinado administrador do BCB quanto aos pontos presentes no projeto será de conhecimento público ou se ficará somente no ambiente interno. No primeiro caso haverá, certamente, um reflexo imediato no mercado financeiro, com a perda da confiança na pessoa daquele, alcançando a eficiência daquela autoridade monetária. Assim sendo, a melhor medida seria o afastamento temporário do administrador até a sua demissão, se correr. Além disso, o tipo legal proposto é aberto e propício a uma avaliação de certa forma subjetiva. Não se pode, ainda, se esquecer de que a atuação do BCB é de meio e não de resultado. Mesmo assim, seria de bom alvitre que o administrador apontado como incapaz fosse afastado temporariamente do seu cargo, quando de uma acusação, podendo voltar a exercê-lo se fosse julgado inocente.

4. A natureza jurídica do BCB e o seu sistema de informática – art. 6º

O Banco Central do Brasil é autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira, pela investidura a termo de seus dirigentes e pela estabilidade durante seus mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei Complementar ou de leis específicas destinadas à sua implementação.

§ 1º O Banco Central do Brasil corresponderá a órgão setorial nos sistemas da Administração Pública Federal, inclusive nos Sistemas de Planejamento e de Orçamento Federal, de Administração Financeira Federal, de Contabilidade Federal, de Pessoal Civil da Administração Pública Federal, de Controle Interno do Poder Executivo Federal, de Organização e Inovação Institucional do Governo Federal, de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação, de Gestão de Documentos de Arquivo e de Serviços Gerais.

A autonomia buscada do BCB está presente na forma como o projeto cuidou do seu lugar na estrutura administrativa do Governo, especialmente quando é clara a sua desvinculação e não subordinação hierárquica a outros órgãos.

A previsão de sistema de informatização próprio deveria ser diretamente estabelecida, não sujeita a qualquer comprovação de ser necessário ao exercício das funções do BCB. Isto porque se trata de uma absoluta necessidade para o fim do cuidado com a execução eficiente de suas tarefas, observada a necessidade de se alcançar um grau máximo de sigilo e de defesa contra ataques de hackers.

Conclusão

O projeto aqui analisado, como se vê, têm defeitos muito sérios e não pode ser absolutamente aprovado como está e, muito menos, com muitas que sem muita dúvida poderão ser acrescentadas ao seu tronco. Afinal de contas, essa é a nossa infeliz história legislativa.

_________

1 “Inflação, nova luz amarela”, de 20.11.2021.

2 “The stability of financial markets: Central Bank Responsability”, in “Current legal issues affecting Central Banks”, vol. 2, --. 159 a 166.

3 “Je veux que la Banque (...) soit dans les mans du Gouvernement, mais qu’elle ny sois pas trop”, in “Le nouveau status de la Banque de France, une étape vers l’union economique et monetaire”, Recueil Dalloz, Sirey, 89, março/94.

_________

*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Leia mais

Migalhas de Peso

O Banco Central do Brasil com os pés em duas canoas – I (Isso não vai dar certo)

18/11/2020

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

O SCR - Sistema de Informações de Crédito e a negativação: Diferenciações fundamentais e repercussões no âmbito judicial

20/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024