O surgimento do novo coronavírus em dezembro de 2019 alterou por completo a dinâmica da vida social em nível global. A covid-19 provocou abalos nos mercados globais e paralisou atividades econômicas, políticas, jurídicas e sociais por todo o mundo. Todos os países buscaram mecanismos para se adaptar à crise provocada pela doença. O Brasil, país de dimensões continentais com mais de 200 milhões de habitantes, destacou-se no cenário internacional pela sua atuação ágil e eficiente em algumas áreas.
No âmbito do Poder Legislativo, destacaram-se as medidas adotadas para viabilizar o trabalho no período de distanciamento social. É importante que os legisladores e toda a equipe que atua junto ao Poder Legislativo possam se proteger da pandemia. Nada obstante, é em momentos de crise que o país mais precisa de um Congresso atuante, que adapte o ordenamento jurídico ao contexto que se desenrola.
Nesse contexto, o Senado Federal brasileiro foi vanguardista e serviu de exemplo a outros países ao se tornar o primeiro Parlamento do mundo a realizar reuniões deliberativas por videoconferência. Em 20 de março de 2020, a Casa se reuniu remotamente pela primeira vez nos seus 196 anos de história e aprovou a declaração de estado de calamidade pública contra a covid-19.
O trabalho técnico para a implementação do sistema remoto no Senado, comandado por Luiz Fernando Bandeira de Mello, levou sete dias corridos e atraiu atenção internacional. Com custo de 220 mil reais, criou-se um programa que permite a votação segura, ágil e transparente à distância, bem como a discussão das matérias em pauta por meio digital.
O sistema de deliberação remota (SDR) permite que o parlamentar registre seu posicionamento pelo celular, após autenticação de sua identidade por diferentes fatores, o que garante a segurança do processo – mas também impede que sejam realizadas votações secretas. O software é particularmente importante por evitar problemas de organização como os encontrados em alguns países que realizaram votações durante a pandemia se valendo de manifestação escrita (por mensagem) em aplicativos de chamada de vídeo, como MS Teams e Zoom, ou mesmo por SMS.
Depois de seis meses de deliberação exclusivamente remota, retomou-se parcialmente as votações presenciais para a aprovação de indicados a cargos que exigem votação secreta. Ao que tudo indica, esse foi um primeiro passo no retorno à normalidade, mas os avanços realizados no período pandêmico devem permanecer doravante na realidade senatória.
Evidentemente, um plenário completamente virtual fragiliza os congressistas e impede que o processo legislativo transcorra dentro da normalidade. O modelo que atualmente vige, no entanto, é importante aliado para que a atividade legiferante sobreviva às intercorrências da vida em sociedade.
A primeira vez que se notou a necessidade de uma solução como essa foi durante a greve dos caminhoneiros, em 2018. Com a falta de combustível disponível para os consumidores, inclusive querosene em aeroportos, os parlamentares brasileiros ficaram impossibilitados de se dirigir ao Distrito Federal, que abriga as sedes dos Três Poderes da República.
O modelo é útil, também, em situações mais drásticas, como a decorrente da explosão ocorrida na capital do Líbano em agosto deste ano. O parlamento libanês fica muito próximo ao porto de Beirute, onde ocorreu o desastre, e foi danificado. Percebeu-se, então, a importância da tecnologia desenvolvida no Brasil, que foi compartilhada com o Poder Legislativo do Líbano após a tragédia.
Constata-se, entretanto, a necessidade de devida regulamentação do SDR. A falta de previsão legal para deliberação remota foi, inclusive, um dos motivos pelos quais algumas nações se abstiveram de adotar o modelo de voto virtual, como nos casos da Alemanha, Áustria, Canadá e Israel.1
Na realidade brasileira, o Regimento Interno do Senado Federal (RISF) permite que “em caso de guerra, de comoção intestina, de calamidade pública ou de ocorrência que impossibilite o seu funcionamento na sede, o Senado poderá reunir-se, eventualmente, em qualquer outro local”, o que possibilita interpretação de que as reuniões podem ser virtuais.
Nesse sentido, diante de problema semelhante, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, em Portugal, contratou parecer do constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, cujas considerações podem ser aplicadas à realidade brasileira. Concluiu que a lei é omissa e que compete à Mesa do Parlamento proceder à integração das lacunas do regimento interno. Dessa forma, diante de incompletude regimental, é legítima a interpretação segundo a qual, em situações extraordinárias, a Casa legislativa pode se valer das novas tecnologias para reunião e para votação.
Há dispositivos seguintes no RISF, no entanto, que parecem restringir essa compreensão:
Art. 8° O Senador deve apresentar-se no edifício do Senado a` hora regimental, para tomar parte nas sessões do Plenário, bem como a` hora de reunião da comissão de que seja membro
Art. 106. As comissões reunir-se-ão nas dependências do edifício do Senado Federal.
Art. 155. A sessão terá início de segunda a quinta-feira, às quatorze horas, e, às sextas-feiras, às nove horas, pelo relógio do plenário, presentes no recinto pelo menos um vigésimo da composição do Senado
Ora, mesmo que o edifício do Senado Federal seja transposto momentaneamente para outro imóvel, a literalidade do Regimento parece impedir a realização de sessões remotas. É diante de conflitos como esse que se revelam importantes reformas legais e regimentais que regulem esse tipo de deliberação que, como se viu, é alternativa essencial para situações excepcionais.
Um dos pontos que mais merece a atenção dos congressistas é o que diz respeito às emendas à Constituição. Uma Carta Constitucional rígida, como é a brasileira, exige que se siga um procedimento solene para sua alteração, a fim de que haja a reflexão necessária a uma mudança tão importante.
Ao mesmo tempo, o constituinte originário optou por incluir na Carta Magna temas alheios à organização do Estado em sentido estrito. Um exemplo é o ajuste oriundo da chamada PEC do Orçamento de Guerra (emenda constitucional 106), que ajustou o regime fiscal, financeiro e de contratações durante a calamidade pública decorrente da covid-19 e permitiu uma resposta eficaz do Estado à situação emergente.
Não por isso é uma decisão banal alterar a Constituição, tanto que a Carta prevê votação dupla, com espaço entre elas, nas duas Casas que compõem o Congresso Nacional, a fim de que os parlamentares possam discutir a real necessidade e os impactos do ajuste constitucional. Recorde-se, ainda, que não se pode aprovar PECs em tempos de Intervenção Federal e de Estado de Defesa ou de Sítio, para que não se façam mudanças impensadas e sem a devida reflexão.
Evidentemente, as circunstâncias que eventualmente poderão exigir a deliberação remota no futuro fogem à normalidade que garante aos congressistas a tranquilidade de espírito e que impede neles o predomínio da imprudência e da impulsividade em suas ações. Uma PEC votada remotamente, portanto, distancia-se do propósito constitucional de calma e meditação para realização de emendas, daí a importância de regulamentação do modelo.
Melhor seria que, passada a situação calamitosa em que estamos imersos, o Congresso Nacional convocasse uma comissão de juristas, a fim de elaborar normas que rejam os casos de guerra, de comoção intestina, de calamidade pública ou de outra ocorrência que exija a participação remota dos parlamentares.
Com devidos estudo e reflexão, será possível estruturar um modelo capaz de garantir a atuação legislativa em momentos de crise, sem olvidar que o processo legislativo exige prudência e moderação, a fim de que não se fragilize o ordenamento jurídico brasileiro. A experiência recente mostra que estamos no caminho certo para esse feito.
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1 Oireachtas Library & Research Service, 2020, L&RS Note: How parliaments are working during the covid-19 pandemic
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