Migalhas de Peso

História da governança corporativa

O pilar do movimento fundamenta-se na necessidade de se promover o gerenciamento racional das decisões em uma companhia, por meio da transparência e responsabilidade corporativa.

23/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A história da governança corporativa demonstra que o seu desenvolvimento leva em conta as especificidades locais, grau de concentração de capital e os objetivos de proteção - stakeholders e investidores - influenciando a tomada de decisões internas e visando a atração de investimentos, por vezes escassos e concorridos.

O conceito de governança corporativa, definido por Alexandre Di Miceli da Silveira (apud Ochman, 2013) abrange o conjunto de ferramentas de que uma companhia pode lançar mão com o fim de gerenciar as decisões no âmbito da atividade empresarial, de modo que o processo decisório crie terreno fértil para maximização do valor do negócio - avaliação dada a longo prazo - oportunizando retorno satisfatório à totalidade dos acionistas.

É dizer, o pilar do movimento fundamenta-se na necessidade de se promover o gerenciamento racional das decisões em uma companhia, por meio da transparência e responsabilidade corporativa, majoritariamente, estabelecendo um bom relacionamento entre os acionistas e estruturando a sociedade de forma a atribuir maior liquidez aos ativos e, assim, atrair investimentos a partir de manobras capazes de diminuir os riscos inerentes à atividade empresarial empreendida.

Historicamente, a preocupação com a organização empresarial e, mais especificamente, com os centros de tomada de decisão em uma companhia, ganhou força com a globalização das relações comerciais que, como uma das consequências indiretas, oportunizou o intercâmbio entre ordenamentos jurídicos distintos e o embate entre sistemas econômicos regidos por suas próprias especificidades. Nesse sentido, as companhias viram-se obrigadas a profissionalizar sua gestão, como forma de gerenciamento prévio de riscos e contenção de danos acarretados por eventuais decisões irrefletidas e que não levassem em conta (i) a competitividade, fruto do acirramento das relações comerciais; e (ii) a necessidade proeminente de garantir diferenciais de mercado capazes de atrair investimentos [escassos e, por vezes, hesitantes, diga-se] flutuantes entre as diversas oportunidades negociais.

Da preocupação com a organização empresarial derivou o que se convencionou chamar de governança corporativa. Nas palavras de Nilson Lautenschleger Júnior1 (Júnior, 2005), os aspectos econômicos e mercadológicos relacionados à hibridização entre normas jurídicas e sistemas econômicos refletem, diretamente, na administração das companhias e em sua organização interna, determinando uma reavaliação da responsabilidade dos proprietários com os interesses da empresa, demais empregados e stakeholders. O que se tem, portanto, é que o cenário externo conduziu à concentração das energias ao âmbito interno das companhias, sua forma de gestão e tomada de decisões no sentido de otimizar ganhos, diminuir riscos e garantir a proteção dos agentes de mercado e função social da empresa. Tais aspectos, analisados na prática empresarial, se consubstanciam no conceito de governança corporativa.

Indo além, não se pode perder de vista que a preocupação com a forma com que gerenciadas as decisões dentro de uma companhia dizem, igualmente, com a proteção dos acionistas minoritários, em contraponto à concentração acionária. Frise-se que também essa preocupação com a proteção dos acionistas minoritários busca, ao fim e ao cabo, garantir que sejam atraídos investidores.

Atribui-se aos Estados Unidos e ao Reino Unido o berço para o surgimento do movimento, na década de 1990, quando se buscou estruturar um método unificado de regras gerais que norteassem a gestão empresarial sob o manto da proteção dos interesses da companhia e de seus acionistas.

Os esforços dogmáticos nesse sentido deram origem, no Reino Unido, a um dos documentos mais emblemáticos acerca do tema, o Relatório Cadbury, em 1992. Após estudos encabeçados por uma Comissão constituída pela Bolsa de Londres, o Banco da Inglaterra e demais colaboradores advindos de diversos setores profissionais e do mercado, o referido relatório trouxe à balha dados técnicos que deram ensejo ao “Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa”, que viria a inspirar outras decodificações cuja essência fosse essencialmente a mesma: normatização de regras unificadas de governança corporativa.2

Importante mencionar, quanto ao ponto, que, conforme bem elucidado por Renato Ochman (Ochman, 2013), em seu estudo sobre atos societários relevantes, a primeira premissa, entre onze, considerada na preparação do estudo acima destacado levou em consideração aspectos de exigência econômica basilares ao desenvolvimento da Grã-Bretanha, partindo da premissa de que o desenvolvimento das empresas - que, por sua vez, acarretaria o crescimento da economia do país - apenas seria efetivo e sólido se fomentado em bases de regras claras, com a devida prestação de contas3:

A primeira das onze premissas para que o relatório acontecesse foi:

A economia do país depende da força e eficiência de suas empresas. É a eficácia com que os conselhos cumprem suas responsabilidades que determinam a posição competitiva da Grã-Bretanha. Eles precisam estar livres para impulsionar as empresas para frente, mas praticar essa liberdade dentro de regras claras de prestação de contas. Está é a essência de qualquer sistema de boa governança corporativa.

Veja-se, a forma de gestão interna das empresas tem reflexo direto na competitividade da economia do país, tendo em vista a interdependência entre o desenvolvimento econômico e a eficiência das empresas atuantes. Tal eficiência somente pode ser verificada e garantida em terreno em que a gestão empresarial adote regras claras, que garantam a liquidez de seus ativos e atraiam investimentos necessários.

Poucos anos depois, a experiência brasileira deu origem às primeiras discussões acerca do assunto, projetos iniciais de uma eventual sistematização e formas para a sua implementação no sistema de gestão das empresas brasileiras, levando em conta suas especificidades.

A autoria dos primeiros trabalhos é atribuída à Bengt Hallvist e João Bosco Lodi, cujos esboços teóricos deram ensanchas a um projeto que, antes de discutir as regras especialmente destacadas acerca da governança corporativa, previu a criação de uma organização que se empenhasse em entender a importância dos Conselhos de Administração e forma diante da qual a atuação se daria nas empresas.

Bem desenvolvidas as discussões quanto ao tema, há que se destacar que o Conselho de Administração assume posição de destaque, tendo como principal função o controle do desempenho de uma empresa, orientando seus negócios e decisões.

O amadurecimento das discussões deu origem, em primeiro plano, ao Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC, em 1999. O Instituto foi responsável pela elaboração do Código de Melhores Práticas que, muito embora não possua caráter cogente, tem sido seguido pela maioria das empresas, considerando-se o aspecto do diferencial econômico como atrativo para investimentos. Cumpre ressaltar, contudo, que, como destaca Fábio Ulhoa Coelho4 (Coelho, 2019), ainda que de importância inegável, o primeiro Código de Melhores Práticas não enfrentava, de modo efetivo, temas relevantes ao movimento de governança corporativa.

Na esteira dos mesmos esforços teóricos que incorporassem as práticas comerciais de modo a normatizá-las e unifica-las em regras gerais que norteassem a atividade empresarial, destaca-se a criação, pela Bovespa, do Novo Mercado, em 2000.

O Novo Mercado explora os níveis de governança corporativa, determinando índices diferenciados que atuam como forma de classificação de confiabilidade para investimentos. No momento em que uma Companhia adere às regras do Novo Mercado, consequentemente compromete-se a adotar práticas de governança corporativa.

Tais práticas figuram um sistema de retroalimentação mediante o qual a empresa coleta informações internas, analisa seus diversos aspectos e promovem a sua divulgação de forma democrática e tempestiva.

Em estudo realizado pela B3 em 2008, elucida-se que a entrada de uma companhia no Novo Mercado significa que ela se compromete a cumprir regras ainda mais rígidas que as dispostas pela legislação brasileira. Tais regras devem compreender práticas de efetiva governança corporativa, no sentido de atuar em maiores níveis de transparência, divulgação de informações voluntariamente e proteção dos acionistas minoritários, conforme destacado pela Standard & Poors.

Sobre a importância do Novo Mercado e a rigidez das regras de comportamento e gestão de empresas, Renato Ochman (Ochman, 2013) aponta importantes esclarecimentos fornecidos pela própria B3, que elucida o prestígio atribuído às regras de transparência e sua motivação:

Lançado em 2000 — um momento delicado tanto para o mercado brasileiro, como para o de outros países emergentes, que ainda se ressentiam das sucessivas crises cambiais dos anos 1990 —, o Novo Mercado estabeleceu desde sua criação um padrão de governança tão diferenciado, que muitos duvidaram que a iniciativa decolasse. Seus idealizadores partiram do princípio de que uma queda na percepção de risco por parte dos investidores influenciaria positivamente a valorização e a liquidez das ações. Imaginaram que esse cenário mais seguro ocorreria se direitos e garantias adicionais fossem concedidos aos acionistas e fosse diminuída a assimetria de informações entre controladores/administradores das empresas e participantes do mercado. E, de fato, a partir da primeira listagem, em 2002, o Novo Mercado rapidamente tornou-se o padrão de transparência e governança exigido pelos investidores para as novas aberturas de capital. A ponto de ser hoje uma realidade sem volta.

A preocupação com a disseminação ampla e transparente de informações é inegável. Um aspecto interessante, contudo, é que tal dispersão de informações tem o condão, igualmente, de garantir o equilíbrio entre os acionistas, como será mais bem explicitado posteriormente.

Frise-se, desde logo, que não apenas investidores são atraídos pelas boas - e efetivas - práticas de governança corporativa, como o acesso a crédito bancário é facilitado. Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho (Coelho, 2019), em companhias em que bem separados os interesses da empresa e dos sócios, em um cenário em que amplamente desenvolvidas as práticas de governança, são protegidos os postulados da atividade econômica, o que abre portas para a concessão de crédito bancário.

Os apontamentos históricos desenvolvidos no sentido de aclarar o conceito de governança corporativa possuem importância também levando-se em consideração os aspectos peculiares da atividade empresarial no Brasil, a fim de que se possa elucidar, com maior precisão, a importância da adoção das práticas de governança corporativa por empresas brasileiras, sobretudo como forma de garantir a perenidade da companhia e fortalecimento de seu propósito.

No Brasil, a governança corporativa direciona-se sobremaneira no sentido de proteção dos acionistas minoritários. Levando-se em consideração essa premissa básica, percebe-se a relevância de adoção de padrões diferenciados de confiabilidade e como se ajustam às sociedades familiares, culminando nas alternativas para efetivação das regras em si consideradas, com destaque para adoção da arbitragem societária como forma de prevenir conflitos societários e, ainda, expandir a confiabilidade da companhia, nos termos das previsões legais e do Novo Mercado.

Esse assunto, contudo, fica para a próxima semana.

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1 Nilson Lautenschleger Júnior – Os desafios propostos pela governança corporativa ao Direito Empresarial brasileiro – Malheiros Editora LTDA. – 2005 – São Paulo;

2 Ochman, Renato - Atos Societários Relevantes: a companhia e os investidores / Renato Ochman; com colaboração de Tomás B. Real Amadeo. - 1. ed. - São Paulo: Impressão Régia, 2013.

3 Ochman, Renato - Atos Societários Relevantes: a companhia e os investidores / Renato Ochman; com colaboração de Tomás B. Real Amadeo. - 1. ed. - São Paulo: Impressão Régia, 2013.

4 Coelho, Fábio Ulhoa. – Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa / Fábio Ulhoa Coelho. - 22. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019

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*Nathália Amorim Pinheiro é advogada do escritório Amaury Nunes & Advogados Associados. Pós-graduanda pelo LLM em Direito Empresarial do IBMEC.

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