Migalhas de Peso

Um refrigério para a tutela inibitória: Análise do REsp 1.833.567/RS

Este ensaio reflete o direito à tutela específica e o direito à tutela inibitória a partir de um recente julgado do Superior Tribunal de Justiça.

23/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A controvérsia diz respeito à possibilidade de, diante de reconhecida violação a direitos autorais, afastar-se a tutela inibitória, determinando-se que os prejuízos decorrentes do ato ilícito sejam resolvidos em perdas e danos.”

A epígrafe deste trabalho corresponde a um trecho extraído do voto exarado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino no Recurso Especial 1.833.567/RS (3ª turma), em que o relator delimita o cerne da controvérsia então posta à sua análise: direito à tutela específica do direito autoral, quando o tribunal de origem havia entendido que a violação a esse direito poderia ser resolvida em perdas e danos (= tutela pelo equivalente pecuniário). Em voto irrepreensível, o relator deu provimento ao recurso para conceder a tutela específica cabível à espécie: tutela para inibir a continuação do ilícito. A decisão foi unânime. O caso enseja algumas reflexões.

A tutela específica pode ser compreendida como a entrega da exata situação jurídica de vantagem extraível da lei ou de convenção firmada entre as partes (resultado in natura). Antes da tutela específica ser alçada à condição de regra, da ordem jurídica consagrar o direito à tutela específica, estava institucionalizado entre nós o “princípio civil da reparação consequente à inexecução da obrigação”;1 2 por força dele, toda obrigação inadimplida se convertia em perdas e danos.

O conceito de tutela específica não se reduz ao de tutela preventiva; inclusive, a ordem jurídica oferece diferentes exemplos de tutelas específicas de índole repressiva (v.g., demolição, direito de resposta, reflorestamento, despoluição etc.). A depender do caso, o direito à tutela específica pode se concretizar por meio da tutela preventiva; há uma intersecção entre essas tutelas. Porque este trabalho segue o fio condutor do REsp 1.833.567/RS, a análise está restrita à mencionada intersecção.

No âmbito da tutela individual, a primazia da tutela específica se tornou uma realidade indistinta entre nós desde 1994,3 quando o direito processual/procedimental passou a ser apto a dar concretude às respostas “prometidas” pelo direito material; desde então, a tutela pelo equivalente monetário virou exceção. As mudanças no procedimento foram precedidas de alterações no direito material e no direito constitucional, conducentes à ruptura do que pode ser chamado de paradigma do dano. Essa evolução foi detalhada em outros trabalhos.4 Por ora, para fins de dimensionar a importância do tema, destacamos alguns dos principais marcos normativos do caminho trilhado no Brasil.

Superada a “doutrina brasileira do habeas corpus”, a criação do MS em 1934 propiciou o desenvolvimento da tutela preventiva às situações jurídicas ameaçadas – ou lesadas – pelo Poder Público,5 favorecendo a obtenção da tutela específica nas relações jurídicas tuteláveis por esse remédio.

O CPC/39, que também disciplinou o mandado de segurança, cuidou da ação cominatória, cujo regramento autorizava o magistrado a fixar multa já ao tempo da citação (retenha-se o ponto), no importe solicitado na petição inicial ou no valor convencionado entre as partes, a fim de compelir o réu a fazer ou deixar de fazer alguma coisa –6 lamentavelmente, o regramento processual dessa tutela seria degradado com o advento do CPC/73.7

À tutela do direito de vizinhança ou mesmo para impedir obras (em sentido amplo) em transgressão a preceitos de Direito Público – situações jurídicas em alguma medida tuteladas pelo CPC/39 em meio às cominatórias (cf. art. 302) –, o CPC/73 procedimentalizou a nunciação de obra nova (arts. 934/940). No mesmo contexto, tanto no CPC/39 quanto no CPC/73 foram disciplinadas as ações possessórias, destaque ao interdito proibitório, porque vocacionado a impedir a prática de uma moléstia à posse.8

No âmbito da tutela coletiva, a reforma de 1977 encartou o § 4º no art. 5º da Lei de Ação Popular (lei 4.717/65), possibilitando a concessão de liminares à defesa do patrimônio público. Adicionalmente, com o advento da Lei de Ação Civil Pública (lei 7.347/85) e do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90), foi viabilizada a obtenção de tutela específica em ações coletivas, mudança que veio acompanhada de autorização às tutelas provisórias e em caráter liminar (arts. 1º, IV, 11, 12, lei 7.347/85).9

A reboque da tutela coletiva, somente com o primeiro grande movimento de reformas setoriais do CPC/73 – sobretudo em 1994, com a alteração do art. 461 – o legislador sinalizaria à valorização da tutela específica em obrigações individuais, ocasião em que também teve o cuidado em generalizar a tutela antecipada satisfativa (art. 273). Ao lado do recrudescimento dos poderes judiciais executórios à concretização do resultado in natura, houve o cuidado em ampliar o cabimento da tutela provisória para além de seu emprego circunscrito aos poucos procedimentos especiais em que estava institucionalizada.10

Ao permitir que as eficácias mandamental e/ou executiva da sentença fossem antecipadas, a generalização da tutela antecipada satisfativa viabilizou o adiantamento dos efeitos práticos de possível decisão final de mérito no bojo do procedimento comum – rito largamente utilizado na praxe forense –, assim como naqueles procedimentos especiais em que ela não tinha berço natural (não estava institucionalizada).11 Por ensejar intervenções jurisdicionais imediatas na realidade (plano fenomênico), a generalização da tutela antecipada satisfativa foi indispensável para assegurar a tutela preventiva e, conforme o caso, dar concretude à tutela específica.   

Em maior ou menor medida, cada uma das modificações apontadas concorreu para que o jurisdicionado pudesse obter tutelas preventivas e/ou específicas, minorando os efeitos nefastos da ação do tempo e, pois, tornando realidade a promessa contida no art. 5º, XXXV, CF/88 – promessa que, em abstrato, representou a quebra do paradigma anterior, no qual o acesso à jurisdição era precipuamente orientado à repressão de condutas (art. 153, § 4º, CF/69)12. É o momento de volver ao exame do acórdão e da tutela inibitória.

A tutela inibitória é uma espécie de tutela preventiva cujo fundamento procedimental está no art. 497, parágrafo único, CPC;13 é uma modalidade de tutela com caráter tríplice, prestando-se a inibir a prática, continuação ou repetição de ato contrário ao direito (= ilícito). Em seu voto no REsp 1.833.567/RS, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino trouxe, de maneira clara, algumas das digitais da tutela inibitória, quais sejam: (I) a satisfatividade; (II) a preventividade; e (III) a referibilidade.

No caso concreto, com fundamento no art. 105 da lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais - LDA), o recorrente utilizou de forma escorreita a tutela preventiva no sentido de inibir a (contemporânea, concreta, real e séria) continuação de ato ilícito contrário ao seu direito autoral. Com isso, possível afirmar que a tutela inibitória satisfez (realizou)14 o "direito à inibição".

Como defendido em outro trabalho, a tutela inibitória possui certa referibilidade (aspecto relacional), no sentido de fazer referência (alusão) a um direito a ser preservado diante de ameaça de ato ilícito15 – a título de ilustração, o "direito à inibição" de ilícito contrário a direito autoral; tanto é verdade que o acórdão do STJ faz expressa menção à "inibição" da – contínua – violação ao direito autoral.

Algumas passagens do voto condutor explicitam a funcionalidade da tutela inibitória:  

"Portanto, como regra, a tutela inibitória deve ser concedida nos casos de ameaça de violação de direitos autorais a fim de que seu titular possa fazer valer seu direito de excluir terceiros da exploração não autorizada de obras protegidas".

"A tutela inibitória, como tutela preventiva, se volta para o futuro, tendo por finalidade impedir, nesse caso, a continuação do ilícito".

"Já a pretensão condenatória de pagamento de indenização pela violação do direito autoral é voltada ao passado, cobrindo todo o período em que houve utilização não autorizada das obras autorais em questão".

Diante da moldura fática do caso, a tutela inibitória não afastava a tutela ressarcitória; como o ilícito já estava em prática há algum tempo, além de fazer cessá-lo (prevenção), também existe o dever de indenizar pelos prejuízos já causados (tutela repressiva pelo equivalente monetário). Contudo, negando o direito à tutela específica do direito autoral e, pois, o direito à tutela preventiva (inibitória), o tribunal de origem estimou apenas a resolução por perdas e danos.

O conteúdo do voto desenhado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino retratou a correta funcionalidade da tutela inibitória vocacionada a debelar ato ilícito contrário a um direito da personalidade (v.g., direito autoral). Mais que isso. O acórdão está perfeitamente alinhado ao direito à tutela específica que, no caso concreto, reclamava a prestação de tutela preventiva para impedir a continuidade do ilícito. Em vista do histórico do caso, um refrigério à tutela inibitória.

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1 NUNES, Castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do poder público. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1951, p. 37.

2 Ibidem, p. 55.

3 PASSOS, J. J. Calmon de. Inovações no código de processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 52.

4 Aprofundamos o tema nos seguintes trabalhos: PEREIRA, Mateus Costa; PIMENTEL, Alexandre Freire; LUNA, Rafael Alves de. Da – suposta – provisoriedade da tutela cautelar à “tutela provisória de urgência” no novo Código de Processo Civil brasileiro: entre avanços e retrocessos. Revista de Processo Comparado. São Paulo, RT, v. 3, 2016, p. 15-40, jan.-jun. 2016; e PEREIRA, Mateus Costa; GOUVEIA, Lúcio Grassi de; PAULA FILHO, Alexandre de. Tutela voltada ao ilícito, prescindibilidade do dano e limites da cognição judicial: estudo de caso envolvendo a transgressão reiterada da legislação de trânsito (ACP nº 5009543-84.2015.4.04.7204/SC) visando a inibir futuros equívocos. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, n. 110, p. 17-36, abr.-jun. 2020.

5 Eventualmente, do particular que fizesse as vezes da Administração.

6 Quando não havia prévia convenção entre as partes, o autor tinha margem para indicar o valor que entendesse cabível em sua petição inicial.

7 GRINOVER, Ada Pellegrini. A Tutela Preventiva das Liberdades: habeas-corpus e mandado de segurança. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 76, p. 163-178, 1981. Disponível em: <_https3a_ _bit.ly2f_2tfzzab="">. Acesso em: 23 nov. 2018. Nesse trabalho, Ada Pellegrini Grinover menciona a disciplina da ação cominatória no CPC/39 (o qual falava que o magistrado emanaria uma ordem de fazer ou de abstenção ao réu após o conhecimento sumário e provisório), cuja função preventiva fora degradada pelo CPC/73 ao vincular a decisão sobre a obrigação por ocasião da sentença.

8 PEREIRA, Mateus Costa; GOUVEIA, Lúcio Grassi de; PAULA FILHO, Alexandre de. Tutela voltada ao ilícito, prescindibilidade do dano e limites da cognição judicial: estudo de caso envolvendo a transgressão reiterada da legislação de trânsito (ACP nº 5009543-84.2015.4.04.7204/SC) visando a inibir futuros equívocos. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, n. 110, p. 17-36, abr.-jun. 2020.

9 A atipicidade da tutela coletiva seria alçada ao patamar constitucional pelo art. 129, III e o preceito sobre a tutela específica ainda seria reforçado com o advento do Código de Defesa do Consumidor (art. 84, § 5º), consolidando a tutela coletiva em vista da “simples” ameaça ou prática de atos contrários ao direito (= ilícitos).

10 PEREIRA, Mateus Costa; GOUVEIA, Lúcio Grassi de; PAULA FILHO, Alexandre de. Tutela voltada ao ilícito, prescindibilidade do dano e limites da cognição judicial: estudo de caso envolvendo a transgressão reiterada da legislação de trânsito (ACP nº 5009543-84.2015.4.04.7204/SC) visando a inibir futuros equívocos. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, n. 110, p. 17-36, abr.-jun. 2020.

11 “Ora, as eficácias declaratória, constitutiva e condenatória atuam no plano lógico; as eficácias mandamental e executiva, no plano fenomênico.” COSTA, Eduardo J. da Fonseca. “A repercussão da Lei n. 11.232/2005 na execução da tutela antecipada.” In: Temas atuais de execução civil: estudos em homenagem ao Professor Donaldo Armelin. Mirna Cianci e Rita Quartieri (coords.). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 169-198.

12 “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”.

13 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. São Paulo: RT, 1998. Verificar também: MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - Art. 497, parágrafo único, CPC/2015.

14 SILVA, Bruno Campos. Algumas breves reflexões acerca da tutela inibitória. Empório do Direito. Disponível em: <_https3a_ _bit.ly2f_35f5nnx="">. Acesso em 15/11/20. Ainda, para aprofundar a respeito do traço "satisfatividade": SILVA, Bruno Campos. Sistematização da tutela inibitória e o Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2021. Coleção Prof. Edson Prata (no prelo) - fruto da dissertação de mestrado defendida junto à PUC-SP em 7/8/18.

15 SILVA, Bruno Campos. Algumas breves reflexões acerca da tutela inibitória. Empório do Direito. Disponível em: <_https3a_ _bit.ly2f_35f5nnx="">. Acesso em 15/11/20. Ainda, para aprofundar a respeito do traço "referibilidade": SILVA, Bruno Campos. Sistematização da tutela inibitória e o Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2021. Coleção Prof. Edson Prata (no prelo) - fruto da dissertação de mestrado defendida junto à PUC/SP em 7/8/18.

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*Bruno Campos Silva é advogado. Consultor das áreas cível e ambiental do escritório Moisés Freire Advocacia. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil. Professor de Direito Processual Civil e Direito dos Contratos da Unipac-Uberaba.




*Mateus Costa Pereira é doutor em Direito Processual. Professor de Direito Processual e de Arbitragem. Diretor de Assuntos Institucionais da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado e consultor jurídico, sócio do escritório da Fonte, Advogados.

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