Migalhas de Peso

A tragédia no caso Mariana Ferrer "em atos"

É preciso fazer uma catarse dos atos e fatos. Que aqueles acontecimentos indecorosos e vilipendiosos da audiência sejam apurados e que se ultimem as consequências próprias legais.

19/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Foi tudo trágico (uma forma de drama que se caracteriza pela sua seriedade e dignidade). Trágica a audiência (e aí mais uma observação: O filósofo Aristóteles teorizou que a tragédia resulta numa catarse da audiência (vejam que coincidência!) e isto explicaria o motivo dos humanos apreciarem a assistir ao sofrimento dramatizado)1. Trágico o que se foi dito sobre o que não se foi falado na sentença.

Ato 1 – A audiência

Ali viu-se cenas que não deveriam ser repetidas, mais que isso que deveriam – e devem – ser reprimidas, apuradas e, se confirmadas, responsabilizados os atos omissos (outros comissivos) e permissivos de um acontecimento expugnável. Audiência é um ato processual e, como tal, deve ser zelado por todos os atores que dele participam: Juiz, advogado (seja público ou particular) e Ministério Público (essencialmente e por definição um fiscal da lei). Não se pode, em hipótese alguma, permitir que uma vítima (processualmente falando) seja ultrajada, desrespeitada e, novamente, ser vitimada sob a batuta do Estado (coagir parte no curso do processo é crime contra a administração da justiça: leia-se o art. 344 do Código Penal). A rigor, cometeu-se um crime durante a apuração de outro crime. Lamentável (e criminoso).

A situação requer e merece todas as atenções que estão sendo dadas. As autoridades persecutórias, garantindo-se o direito a defesa, devem perquirir o que e como de fato ocorreu. Ao final, se for o caso, puna-se.

Ato 2 – A sentença

Não é menos trágico fazer-se um espetáculo sobre um ato juridicamente correto e ainda dizer aquilo que, nem de longe, foi dito pela decisão: não há crime culposo e nem aquele julgado assim o definiu. Um erro, talvez, de quem interpretou a decisão e quis, a pretexto de criticar legitimamente um ato anterior (a audiência), utilizar-se de um subterfúgio de linguagem do tipo malam partem para fazer incutir no senso comum um erro grotesco da decisão que, diga-se, não existiu.

Mas, como dito, os humanos apreciam assistir sofrimento (que nem se quer cogitar ter sido, naquele caso, dramatizado), e há uma verdadeira excitação em ver o outro ser escrachado publicamente. A história nos dá tantos exemplos.

Voltemos a decisão: a sentença não criou um crime de “estupro culposo”. Disse, a decisão, que a acusação foi de estupro de vulnerável (art. 217-A, § 1º do Código Penal) e que, para este crime, é imprescindível que se esteja comprovado o elemento da vulnerabilidade da vítima (nos termos legais: quem não tem discernimento para a prática do ato ou não tem condições de oferecer resistência). Se não há esta constatação, a conduta só poderia ser punível na modalidade culposa (é o que se chama de erro de tipo essencial) e, no direito Penal Brasileiro, não existe a figura típica de estupro culposo. Portanto, quer se goste ou não, crime não há. E isso não é juízo de censura e nem ético e, sim, de direito.

É preciso fazer uma catarse dos atos e fatos. Que aqueles acontecimentos indecorosos e vilipendiosos da audiência sejam apurados e que se ultimem as consequências próprias legais. A vítima precisa ser respeitada. Que, também, se leia e compreenda o que foi dito na sentença, irretocável sob o ponto de vista da construção jurídica. O juiz também precisa ser respeitado.

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*Catharina Araújo Lisbôa é especialista em Ciências Criminais. Professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito. Advogada criminalista do escritório Ana Paula Gordilho Pessoa e Advogados Associados.

*Pablo Domingues Ferreira de Castro é doutorando pelo IDP(DF). Mestre e especialista. Professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais. Advogado criminalista do escritório Ana Paula Gordilho Pessoa e Advogados Associados.

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