Migalhas de Peso

Acordos de não contratação: Interfaces entre o Direito Concorrencial e o Direito do Trabalho

Um desses acordos que vem ganhando bastante destaque ultimamente, pelo menos em ordenamentos estrangeiros, é o chamado “no-poach” agreements.

19/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Há uma belíssima pintura, atualmente localizada no Tate Britain, do pintor classicista Herbert James Draper, denominada “O Lamento para Ícaro1. Em resumo, a obra mostra Ícaro, falecido após seu fracasso épico, rodeado por ninfas que lamentam sua morte.

A aludida tela, e o próprio mito de Ícaro, podem, de maneira sublime, explicar os efeitos deletérios de relações negociais cujos efeitos, ao revés de resultarem em ganhos de eficiência, acabam por trazer prejuízos ao ambiente concorrencial; logo, causando infração à ordem econômica.

Um desses acordos que vem ganhando bastante destaque ultimamente, pelo menos em ordenamentos estrangeiros, é o chamado “no-poachagreements.

Basicamente, o ato consolida-se quando duas ou mais companhias estabelecem um acordo para não competir pela contratação dos funcionários umas das outras2, seja, por exemplo, não os perseguindo quando ainda figuram no quadro de colaboradores, seja estabelecendo um lapso temporal de “quarentena”, caso o colaborador deixe uma dessas empresas, para que possa ser abordado pelas demais que fazem parte do negócio jurídico.

Importa registrar que os produtos ou serviços oferecidos pelas companhias não precisam concorrer entre si, mas, tão somente, que o acordo entre elas resulte em perdas de oportunidades profissionais, impactando, de maneira desarrazoada, nos salários ou mobilidade do trabalhador3.

Em relação a essa conduta, há alguns pontos que merecem atenção: o primeiro deles reside no fato de que, na quase totalidade de casos “no poach”, o trabalhador não sabe desse acordo entre as empresas e, consequentemente, não forneceu seu consentimento quanto à impossibilidade de ser contratado por outra companhia.

Nesse contexto, há nítida diminuição do bem estar, na medida em que caso o profissional, por qualquer razão que seja, deseje mudar de ambiente de trabalho, e suas habilidades possam ser utilizáveis em outra companhia, ainda assim, ele não poderia ingressar em outro quadro de colaboradores devido à existência de um acordo cujos termos sequer conhece ou anuiu.

Dessa forma, entende-se que há uma distorção da livre competição, haja vista que, em condições normais de concorrência, isto é, sem que seja levado a cabo condutas anticompetitivas, as empresas disputam, além de uma fatia do mercado, a mão de obra necessária para a consecução do seu objeto social. Consequentemente, as condições de contratação/manutenção do trabalhador em uma empresa se tornam, de certo modo, artificiais, pois, sem qualquer critério de racionalidade, acabam por impedir empresas de recrutar funcionários umas das outras, ainda que os salários ou as condições de trabalho sejam mais atraentes.

Sob a ótica dos empregadores, a justificativa para acordos dessa natureza é de que haveria, em tese, a proteção dos investimentos que foram feitos com treinamento e capacitação dos funcionários. O argumento econômico é no sentido de que se os empregadores sabem que seus funcionários podem sair imediatamente após um longo período de capacitação, haveria um incentivo menor em investir na capacitação da mão de obra4.

Ademais, com a fixação de salários menores aos trabalhadores, em decorrência dos acordos de não contratação, argumenta-se que o preço de produtos e serviços ofertados ao consumidor seriam menores.

Todavia, ao invés de concertar com outros empregadores, poderiam ser criados mecanismos de compensação caso o empregado deixasse o quadro de colaboradores antes de os investimentos serem recuperados. Por exemplo, poderiam ser feitos contratos de reembolso de treinamento no qual o funcionário se obrigaria a ressarcir o empregador pelos custos decorrentes dos treinamentos realizados, em uma relação inversamente proporcional nas variáveis “tempo de serviço x valor do ressarcimento”.

Dessa forma, ao revés de impedir a saída e/ou mobilidade do funcionário, mediante acordos escusos, cuja parte mais interessada (trabalhador), sequer tem conhecimento de sua existência, são realizados contratos claros e objetivos com o condão de amortizar o investimento realizado pelo empregador.

Outrossim, não há nenhuma afirmativa ou proposição que embase a alegação que, de fato, os preços para os consumidores foram reduzidos em razão da existência de acordos de não contratação5.

Assim, na grande maioria das vezes, tais acordos acabam por impedir a mobilidade dos empregados ou o ganho de salário e condições laborais mais atrativas do que proteger o investimento realizado na capacitação dos funcionários.

Isso porque, há uma redução expressiva no poder de barganha do empregado na relação com o empregador, na medida em que os incentivos externos que poderiam interferir nessa relação são mitigados ou anulados. Se há a impossibilidade de o funcionário ser contratado por outras empresas, o empregador acaba por extrair um “lucro” do empregado, mediante o achatamento do salário.

Em um mercado competitivo, há muitos empregados e empregadores, razão pela qual o fiel da balança desta relação está no ponto de equilíbrio. Na presença do acordo, na maioria das vezes, há um favorecimento desarrazoado em favor do empregador.

Acontece que, sob uma perspectiva antitruste, as empresas que realizam tais acordos são concorrentes no mercado de trabalho, ainda que, como dito, não produzam os mesmos produtos ou pratiquem os mesmos serviços6. Assim, há uma distorção nos mercados causada por uma postura concorrencialmente inapropriada.

Não à toa, o Department of Justice (DoJ) entende que os “no poach agreements” eliminam a competição da mesma forma que acordos para fixação de preços ou alocação de mercado consumidor7.

Ressalte-se que, em alguns casos, tais acordos podem ser considerados lícitos. Por exemplo, pode haver efeitos pró-competitivos caso esse acordo esteja bem definido quanto ao seu escopo, extensão e duração, no contexto, por exemplo, de contratos de colaboração entre empresas, no qual há uma justificativa plausível para a existência de tais acordos8. Apenas a título de exemplo, em uma joint venture, poderia ser considerado lícito o acordo de não contratação dos empregados envolvidos nesta associação.

Inclusive, é possível verificar a intensificação dos esforços de diversas agências de defesa da concorrência em coibir a prática. Nos Estados Unidos, foi editado um Guia de boas práticas para os profissionais de RH9 em relação aos cuidados que devem ser adotados para que não haja infração concorrencial. Pelo ordenamento estadunidense, o “no poach”, quando ausente justificativa plausível, é considerado um ilícito antitruste per se.

É neste sentido que o DoJ tem atuado fortemente no sentido de coibir tais práticas. Nos últimos anos, diversas empresas se viram em meio a imbróglios com o Departamento de Justiça em razão destes acordos de não contratação. Um dos casos emblemáticos foi o que envolveu grandes empresas de tecnologia: Apple, Google, Intel, Intuit Inc., Pixar e Adobe.

Nesse caso, foi firmado um acordo para que houvesse a cessação da prática. Acontece que, em consequência dessa investigação antitruste, no âmbito das ações privadas de reparação por danos concorrenciais, as mesmas empresas tiveram que realizar outro acordo, desta vez, com ex-funcionários que ingressaram em juízo, no valor de 415 milhões de dólares para encerrar a discussão10.

Em Portugal, recentemente, a Autoridade da Concorrência (AdC), instaurou o primeiro processo pela prática do “no poach” na Liga Portuguesa de Futebol Profissional. No contexto fático, os clubes da 1ª e 2ª divisão acordaram em não contratar jogadores que rescindiram unilateralmente o contrato de trabalho por questões relacionadas à covid-19. O órgão de defesa da concorrência lusitano, então, impôs medida cautelar visando à cessação da conduta, sob o argumento de que impedir a livre mobilidade dos jogadores cria condições que não correspondem com as do funcionamento normal do mercado, com potencial lesivo aos consumidores, aos trabalhadores e à economia11.

No Brasil, o CADE ainda não se debruçou diretamente sobre o tema, embora, no decorrer de alguns procedimentos administrativos, tenha versado colateralmente a questão. Todavia, levando em consideração que o CADE se posiciona, ano após ano, como uma das melhores agências do mundo, não é difícil cogitar que logo haverá algum trabalho aprofundado sobre o tema ou, até mesmo, alguma investigação acerca da prática.

Muito se tem debatido se tal acordo, à luz do ordenamento brasileiro, também seria condenável. Tudo leva a crer que sim. Como não há previsão do ilícito per se no Brasil, o “no poach” poderia, muito bem, se enquadrar como ilícito por objeto, cabendo à parte investigada comprovar efeitos pró-competitivos da conduta objeto de investigação antitruste.

Ainda, o acordo, então, poderia se enquadrar no aumento arbitrário de lucros, previsto no art. 36, III, lei 12.529/11, na medida em que, conforme exposto passos atrás, há um “rent” extraído do empregado pelo empregador, ou, até mesmo, ser enquadrada como conduta concertada12.

De tudo quanto exposto, acredita-se que, ressalvadas algumas exceções, a prática do “no poach” tende a ser considerada ilícita. A conduta anticompetitiva não ocorreria a jusante, no mercado consumidor, mas no mercado de trabalho na medida em que as empresas estão acordando em não competir umas com as outras em relação à mão de obra, o que acaba por falsear a livre competição.

Assim, independentemente da subsunção normativa, mesmo porque o rol de condutas dispostas no artigo 36 da lei 12.529/11 que caracterizam infração à ordem econômica é exemplificativo, importa compreender que a conduta, sob uma perspectiva antitruste, pelo menos em outros ordenamentos, tende a ser considerada ilícita.

Dessa forma, ainda que não haja posicionamento específico do CADE sobre o tema, importante ratificar a necessidade de um compliance concorrencial nas empresas, alertando acerca do potencial lesivo da prática, como forma de mitigar riscos antitruste.

Tal qual Dédalo, pai de Ícaro, o livre mercado confere amplas possibilidades aos que estão sob sua égide. Todavia, é necessário que as empresas ajam com cautela e parcimônia, principalmente diante do potencial restritivo de determinadas condutas, pois, ao voar muito perto do sol, o resultado pode ser desastroso e trazer amargos prejuízos ao negócio.

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1 Aos interessados, a pintura pode ser contemplada clicando aqui

2 Tradução Livre. No original: “A no-poach agreement involves an agreement with another company not to compete for each other’s employees, such as by not soliciting or hiring them”. In: The United States Department of Justice. NO MORE NO-POACH: THE ANTITRUST DIVISION CONTINUES TO INVESTIGATE AND PROSECUTE “NO-POACH” AND WAGE-FIXING AGREEMENTS. Disponível clicando aqui

3 Tradução Livre. No original “Such claims do not require that the products or services offered by the companies compete with each other, but only that the agreements result in a decrease in the career opportunities of high technology professionals, impacting on their salaries / wages in an unreasonable manner”. In: OECD. Competition Issues in Labour Markets – Note by Brazil. Disponível clicando aqui

4 Tradução livre. No original: “The economic argument behind that is that if employers know that [they] can train a worker and that worker can just immediately go leave, [they] might have less incentive to provide that training”. In: PUBLIC POLICY: How fair – or legal – are non-poaching agreements? Disponível clicando aqui 

5 Tradução livre. No original: “There was no claim that the no-poaching agreement affected product prices to consumers”. In: OECD. Competition Policy for Labour Markets – Note by Herbert Hovenkamp: Roundtable on Competition Issues in Labour Markets. Disponível clicando aqui.

6 Tradução livre. No original: “From an antitrust perspective, firms that compete to hire or retain employees are competitors in the employment marketplace, regardless of whether the firms make the same products or compete to provide the same services”. In: FEDERAL TRADE COMISSION: Department of Antitrust Division. Antitrust Guidance for Human Resource Professionals. Disponível clicando aqui.

7 Tradução livre. No original “Naked no-poach and wage-fixing agreements are per se unlawful because they eliminate competition in the same irredeemable way as agreements to fix product prices or allocate customers”. In: The United States Department of Justice. Op cit.

8 Tradução livre. No original “An ancillary no-poach agreements should not violate the antitrust laws if they are reasonable in scope and duration and are reasonably necessary to further the interests of the legitimate collaboration”. In: Nelson Mullins Riley & Scarborough LLP. Poacher’s Beware: the Department of Justice’s Recent Approach to No-Poaching Agreements. Disponível clicando aqui.

9 FEDERAL TRADE COMISSION: Department of Antitrust Division. Op cit.

10 Matéria disponível clicando aqui

11 Matéria disponível clicando aqui

12 ATHAYDE, Amanda. DOMINGUES, Juliana Silveira. MENDONÇA, Nayara. Acordos de não contratação: o antitruste e o direito do trabalho.

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*Matheus Carvalho Silva é graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Advogado do escritório da Fonte, Advogados.

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