O mundo assistiu, entre surpreso e estarrecido, o surgimento de um novo vírus e de uma pandemia de proporções globais. Aquilo que, até então, era visto apenas nos filmes apocalípticos de Hollywood, passou a ser não apenas meramente possível, em um futuro remoto, mas presente e real.
Diante desse inimigo invisível, diversas medidas foram tomadas pelos Estados e autoridades mundiais, em especial a quarentena com o isolamento social, o fechamento de comércios e a paralisação de inúmeras atividades, até mesmo públicas e governamentais.
Isso acabou por impactar duramente a vida das pessoas, provocando, em muitos casos, um colapso social. Diante dessa inesperada situação de emergência, o Direito precisou reagir, e logo inúmeros países passaram a editar atos normativos visando dar uma resposta rápida, a fim de evitar o caos absoluto, dando-se destaque, neste aspecto, à Alemanha que, pioneiramente, tomou diversas e rápidas medidas legislativas visando estabilizar as relações sociais.
O Brasil, seguindo essas legislações, também buscou criar normas emergenciais. Foram editados decretos e medidas provisórias visando tratar de diversos temas, com o propósito de conter o avanço das chamas deste incêndio causado pela pandemia.
No campo do direito privado, destacou-se o PL 1.179/20, que tinha como propósito regular diversas relações jurídicas de direito privado durante o período da pandemia.
Mas aquilo que parecia ser uma solução precisa e à tempo, acabou se enfraquecendo no meio de inúmeras disputas políticas, que ocasionaram uma eternização dos debates e da análise do projeto, o qual levou quase 03 meses, a contar da data da sua apresentação, para se converter em lei, a lei 14.010/20, conhecida por RJET (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado), e ainda assim com diversos, e indevidos, vetos presidenciais, que só foram derrubados mais de 02 meses depois da publicação do texto, de modo que só tivemos uma lei plenamente vigente quase 06 (seis) meses após o início da decretação do estado de calamidade decorrente da pandemia. Começamos tarde e começamos mal.
Ainda assim, tínhamos a chance de terminar bem. E não conseguimos. Isso porque, mesmo em pleno estado epidêmico, e com as notícias da segunda onda do Coronavírus na Europa, a lei 14.010/20, criada para reger as relações jurídicas de direito privado durante a pandemia, perdeu a sua vigência. Ao menos em 90% dos seus dispositivos.
E isso porque, à exceção do art. 14 do RJET, que ao tratar de matérias envolvendo o regime concorrencial estabeleceu a sua vigência “até 30 de outubro de 2020 ou enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020”, os demais dispositivos da lei 14.010/20 tiveram o término de sua vigência em 30 de outubro de 2020.
Portanto, e como observado, mesmo ainda perdurando o estado epidêmico, não temos mais uma lei temporária e própria de regência para regular as relações jurídicas de direito privado durante este ainda calamitoso período. Talvez tivessem crido, nossos legisladores, que colocando um marco para o fim de vigência da lei emergencial, poderíamos acabar também, e ope legis, com a pandemia. Ledo engano.
Diante disso, uma pergunta ressoa em nossos ouvidos: o que fazer, então? No caso brasileiro, dependeremos da atuação equilibrada e ponderada dos operadores do Direito. Advogados, membros do Ministério Público e magistrados terão que se utilizar das leis existentes, que regulam as relações jurídicas em situações de normalidade, para solucionar os conflitos que ainda continuarão a surgir após o término de vigência do RJET, mas ainda debaixo da crise epidêmica.
É o caso, por exemplo, das relações obrigacionais e contratuais. Em que pese revogados os artigos 6º e 7º da lei 14.010/20, que dispõem, respectivamente, sobre o caso fortuito e a força maior como excludentes de responsabilidade, e sobre a teoria da imprevisão, durante a pandemia, será plenamente possível aplicar as regras existentes no ordenamento para as situações de normalidade, aos casos ainda decorrentes da situação de crise.
Então, nas hipótese em que se verifique, mesmo com o fim da vigência do RJET, que a pandemia ainda existente se caracterize como um evento fortuito ou de força maior, que impossibilite o cumprimento de certas obrigações, ou se caracterize como um evento extraordinário e imprevisível que acarrete desequilíbrio sobre um contrato anteriormente celebrado, será preciso aplicar as normas de regência existentes em nosso ordenamento, haja vista que não poderá o magistrado, sob o argumento da inexistência de uma lei especial, deixar de julgar. Trata-se, à toda evidência, do velho conhecido non liquet.
Ainda sobre a aplicabilidade desses institutos durante a pandemia, e mesmo após o fim da vigência da lei de emergência, uma observação precisa ser feita. Para as relações travadas já sob o estado epidêmico, a caracterização de um evento como fortuito ou de força maior e, especialmente, a revisão de um contrato pela imprevisibilidade, devem ser examinados com cautela e, em regra, não poderão justificar a exclusão de responsabilidade pelo não cumprimento da obrigação ou a revisão do contrato, caso o fundamento seja a própria pandemia.
A justificativa é o fato de que, como previsto no art. 393, parágrafo único, do CC, o caso fortuito ou de força maior se verifica no fato necessário cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. Trata-se, nada mais nada menos, do que os requisitos da necessariedade e da inevitabilidade, de modo que o fortuito ou a força maior se caracterizam por aquele evento que, por si mesmo e necessariamente, leva à impossibilidade de cumprir a obrigação, não tendo o devedor meios de impedir a sua ocorrência ou a produção dos seus efeitos.
Ora, é possível perceber, da análise do dispositivo legal, que dos referidos requisitos está ínsita uma carga de imprevisibilidade. Se o devedor, mesmo ciente do fato que impedirá o cumprimento da sua obrigação, a contrai, assume os riscos do inadimplemento, e não poderá, assim, invocar as causas exonerativas de responsabilidade previstas no art. 393, parágrafo único, do Código Civil.
O mesmo se diga da aplicação da teoria da imprevisão. O Código Civil, em seus artigos 317 e 478, trata das hipóteses em que é possível a revisão contratual, e até mesmo a sua resolução, quando da ocorrência de fatos imprevisíveis. Exige-se, pois, para que se tenha a intervenção judicial sobre os contratos, a imprevisibilidade. Então, se durante a crise epidêmica, com todas as dificuldades existentes, que levam a uma instabilidade das relações, as partes ainda assim optem por travar um vínculo, o fazem cientes e conscientes dos riscos, não podendo, posteriormente, se socorrer de argumentos revisionistas para modificar ou pôr fim ao contrato, exceto se, excepcionalmente, se verificar a ocorrência de um fato verdadeiramente extraordinário que ultrapasse, até mesmo, a previsibilidade dos efeitos já hoje conhecidos e esperados da pandemia.
Portanto, e o que se pode perceber, é que mesmo após o fim da vigência do RJET, nem tudo está perdido. Há, por certo, situações que merecem uma maior reflexão e ponderação, como na hipótese da suspensão e do impedimento do transcurso dos prazos prescricionais e decadenciais, pois há inúmeros casos de pessoas (até mesmo advogados, nos rincões do nosso país continental) que não têm pleno acesso aos meios virtuais para a adequada e plena tutela das suas pretensões e direitos junto ao Poder Judiciário, hoje praticamente só acessado eletronicamente. Em situações como essas, o fim da vigência do art. 3º da lei 14.010/20 pode causar graves e irreversíveis prejuízos a esses titulares.
Nada obstante, em situações outras, e de um modo geral, o ordenamento jurídico é capaz de dar soluções aos problemas que vierem a se apresentar, bem tutelando os interesses afetados.
De tudo o que foi dito, o que podemos perceber é que, embora tenhamos visto inúmeras previsões apocalípticas, prenunciando o fim do mundo, ou até mesmo novos tempos, a humanidade mostrou, mais uma vez, a sua capacidade de superação e de se reinventar. Vivemos, ainda, e isso é verdade, tempos estranhos, que muitos chamam de “novo normal”.
No entanto, ainda acredito que esse novo normal é transitório. As instituições, mesmo diante da grave crise, se mostraram sólidas e capazes de, mesmo em um ambiente hostil e de desentendimentos políticos, enfrentar os problemas que eclodiram.
Mas isso é fruto não das capacidades políticas e institucionais, e sim humanas. Os erros são comuns a todas as pessoas, particularmente diante do tudo o que ocorreu. E é a partir deles que conseguimos construir novos e diferentes caminhos, pois, como na feliz expressão de Plutarco, o ser humano não pode deixar de cometer erros. É com eles que os homens de bom senso aprendem a sabedoria para o futuro.
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*Thiago Ferreira Cardoso Neves é advogado, parecerista e consultor jurídico. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ. Doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Vice-Presidente administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil - ABDCIVIL. Visiting Researcher no Max Planck Institute for Comparative Private Law - Hamburgo/ALE.