“No caso dos autos, inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro.” - ministro Alexandre de Moraes (ARE 1.146.801/SP)
Todos aqueles que trabalham com o Direito do Seguro e o Direito de Transportes sabem que atualmente um dos assuntos mais polêmicos é o tema 210 de repercussão geral do Supremo Tribunal.
Nascido em um litígio envolvendo transporte aéreo internacional de passageiros e extravio de bagagens (RE 636.331/RJ), a decisão de repercussão geral, reconhecendo a prevalência da legislação internacional apenas sobre o Código de Defesa do Consumidor, diz que se aplica em favor do transportador aéreo a limitação de responsabilidade prevista na Convenção de Montreal.
A pergunta que se faz é: aplica-se também aos casos envolvendo cargas?
Existem duas opiniões: uma diz que sim, outra entende que não.
Abraço a segunda; e desde que a decisão foi publicada defendo que o princípio da reparação civil integral não pode ser desprestigiado em dano de carga.
Independentemente do pagamento ou não do chamado frete ad valorem – que não passa de chantagem comercial do transportador –, o valor de cada mercadoria é identificado previamente ou facilmente identificável a qualquer momento.
Não há, portanto, razão alguma para o transportador não reembolsar quem de direito. A limitação de responsabilidade choca-se com o princípio-regra do art. 944 do Código Civil e com a garantia fundamental da reparação civil integral de que trata o rol exemplificativo do art. 5º da Constituição Federal.
Não faltam argumentos para combater a limitação de responsabilidade no transporte de carga e afirmar que o tema 210 não o atinge.
Mas há um especial: a própria figura do segurador sub-rogado.
Normalmente, quem demanda contra o transportador aéreo não é o dono da carga, a vítima original, mas o segurador sub-rogado. O segurador paga a indenização de seguro ao dono da carga e exerce o direito-dever de ressarcimento contra o transportador, autor do dano, do ato ilícito contratual.
A aplicação indistinta do tema 210 e da limitação de responsabilidade nada mais gerará do que indevida premiação ao causador do dano, grave prejuízo ao segurador e ao colégio de segurados que representa.
No caso específico do litígio judicial protagonizado por segurador sub-rogado, o tema 210 colidirá com algo maior, que é a súmula 188, também do Supremo Tribunal Federal.
Aos argumentos expostos imediatamente acima, soma-se a teoria da modulação dos Precedentes, de tal forma que se pode afirmar que: a) um Precedente só pode ser aplicado em um caso concreto foi simetricamente igual ao do que o gerou; b) se a ação tiver sido distribuída antes da prolação do Precedente, não há que se falar na sua aplicação, eis que a parte demandante exercitou seu direito com base em contexto diverso, não podendo ser prejudicada por seu surgimento.
Por tudo isso me sinto muito seguro em afirmar que o tema 210 não se aplica ao transporte de carga. Não é oponível ao segurador sub-rogado. A própria norma da limitação de responsabilidade é, com o perdão do trocadilho, muito limitada em sua aplicação; e nem todo caso concreto se submete ao seu gosto.
A proteção do credor insatisfeito, da vítima do dano ou do segurador sub-rogado se reveste de invulgar interesse público e de elevada função social. Tem muito a ver com a atual leitura do Direito, intimamente ligada a sua visão econômica e sua constante busca por justiça.
Ao que parece, conforme texto de voto do ministro Alexandre de Moraes reproduzido no preâmbulo deste ensaio, o Supremo Tribunal Federal começa a se atentar para isso.
A ministra Cármen Lúcia, no RE 1.252.909/SP, também ressaltou a dissemelhança das situações, em distinguishing realmente exemplar:
“Inviável a aplicação do tema 210 da repercussão geral, pois ausente identidade entre a matéria trazida na espécie e a tratada no recurso extraordinário 636.331, relator o ministro Gilmar Mendes. Na espécie vertente discute-se direito de regresso decorrente de contrato de seguro em transporte aéreo de cargas entre companhia aérea e seguradora, não de limitação da responsabilidade de transportadoras aéreas de passageiros por extravio de bagagens em voos internacionais.”
É exatamente como entende ainda a 2ª turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Ag. Reg. no RE com Agravo 1.240.608/RJ, acórdão de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski:
“I - A discussão em torno de eventual direito de regresso para reparação de danos decorrentes de extravio de mercadoria em transporte aéreo internacional pago pela seguradora, não se submete ao tema 210 da Repercussão Geral.”
Ressaltando que essa é realmente a jurisprudência do Supremo, a ministra Rosa Weber, no RE 1.196.955/SP, reforçou os termos do acórdão que a precedia, e condenava a transportadora ao ressarcimento integral, asseverando que a limitação de responsabilidade de forma alguma poderia afetar a seguradora sub-rogada:
O entendimento adotado no acórdão recorrido não diverge da jurisprudência firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de inaplicabilidade do leading case objeto do tema 210 à hipótese em que discutido mero direito de regresso decorrente de contrato de seguro em transporte aéreo de cargas entre companhia aérea e seguradora, razão pela qual não se divisa a alegada ofensa aos dispositivos constitucionais suscitados.
O ministro Luiz Fux, na relatoria do acórdão do AG.REG. no AI 822.191, seguido pelos outros Ministros, também distingue muito bem um caso de outro, afirmando claramente que a limitação de responsabilidade firmada no precedente não se aplica à seguradora:
Por outro lado, destaco a existência de distinção entre o caso sub examine, que versa sobre danos decorrentes de falha na prestação de serviço de transporte aéreo de cargas e o consequente direito de regresso decorrente de contrato de seguro, e o leading case objeto do tema 210 da repercussão geral (RE 636.331, rel. min. Gilmar Mendes), em que controvertida a limitação da responsabilidade de transportadoras aéreas de passageiros por extravio de bagagens em voos internacionais, não se aplicando à espécie, por conseguinte, a tese firmada no referido precedente.
Logo, é simplesmente impossível se basear no entendimento prevalente do STF para afastar a integralidade da indenização. Ele justifica precisamente o contrário, por mais que o CDC não prevaleça sobre a Convenção de Montreal.
Não se advoga mais a tese de que o CDC vinga sobre os esforços normativos desta última, e sim que não se aplica a limitação de responsabilidade em favor do transportador quando o autor do pleito de ressarcimento for o segurador sub-rogado.
Para lá da questão moral, já que o causador do dano não pode ser beneficiado por sua inidoneidade operacional, a limitação de responsabilidade não tem cabimento quando a causa do pleito indenizatório for o pagamento da indenização em vigência do contrato de seguro.
Proteger o negócio de seguro é assegurar sua saúde econômico-financeira; é, diretamente, respeitar os legítimos interesses do mútuo, o colégio de segurados e, indiretamente, reconhecendo sua invulgar função social, tutelar os da sociedade em geral.
No plano contratual, todo devedor de obrigação de resultado responde objetivamente pelo inadimplemento de sua obrigação. A reparação civil há de ser sempre ampla e integral, conforme se pode extrair dos incisos V e X do artigo 5º da Constituição Federal, com seu rol exemplificativo de direitos e garantias fundamentais, e do artigo 944 do Código Civil, a dispor que a indenização se mede pela extensão do dano.
Não há como justificar a limitação de responsabilidade do transportador aéreo de carga em caso de faltas e avarias, danos derivados da desídia operacional e da incúria contratual.
Ora, o dano contratual e o modo como o Judiciário lida com ele trazem implicações, especialmente ante a análise econômica do Direito, com as interpretações que lhe dá a Escola de Chicago. Decisões judiciais não existem num mundo à parte, e acabam projetando, nessa realidade una em que todas as ciências coexistem, consequências econômicas por vezes perigosas.
A punição exemplar ao transportador desidioso, garantindo o princípio da reparação civil integral, oferece uma previsibilidade mercadológica, consubstanciada naquela certeza razoável sem a qual os negócios simplesmente não andam.
Sendo assim, é preciso tomar um cuidado extremo ao aplicar precedentes, vendo se as circunstâncias que embasaram o paradigma se amoldam ao caso que se apresenta. E aqui evidentemente não se fala da mesma coisa.
O precedente em exame não pode ser aplicado naqueles litígios em cujo polo ativo está o segurador da carga, sob pena de afetar toda uma cadeia de negócios muito mais ampla que a de transporte.
E nem se diga que competiria o pagamento do frete maior, com declaração de valor da carga, para garantir, segundo a própria Convenção de Montreal, a reparação civil integral.
O segurador sub-rogado não é parte no contrato de transporte. E não pode exigir do dono da carga, seu segurado, esse tipo de ônus sob pena de eventualmente incidir em dirigismo contratual, abuso na gestão do negócio de seguro.
Diga-se ainda que o valor da caga confiada ao transportador é conhecido e, portanto, declarado, mesmo que indiretamente.
Ao manusear as faturas comerciais (invoices), a transportadora se vê diante do valor da mercadoria — e isto afasta qualquer intento de limitar responsabilidades (art. 22.3 da Convenção). O conteúdo da carga e seu respectivo valor eram presentes à consciência dela antes do sinistro; se não conhecidos, eram conhecíveis; se não em ato, o eram em potência.
No transporte internacional de carga os valores são rigorosamente documentados, submetidos à apreciação de órgãos públicos alfandegários, além de previa e formalmente conhecidos pelos transportadores.
Pouco importa a modalidade de frete pago para um determinado transporte, se ad valorem ou não. Não é adequado tratar tais casos sob a mesma dinâmica da decisão do Supremo; aqui, pelo contrário, a carga possui valor líquido e certo, previamente conhecido pelo transportador aéreo.
Supondo, porém, que o transportador não verifique os documentos que lhe correm as mãos, é preciso ser franco: que teria a ver com isso a seguradora sub-rogada?
Absolutamente nada. Pelo contrário, qualquer conduta sua no sentido de determinar ao segurado do pagamento de frete bem maior, a chantagem comercial do transportador, poderia até gerar problemas legais.
Paga a indenização, só lhe interessa receber o que o ato ilícito a fez desembolsar para cobrir as perdas do dono da carga, para tratar das feridas de um patrimônio comum ao mútuo por ela resguardado e esfuracado pela negligência de terceiro. Na condição de transportador de cargas, não pode se dizer desconhecedor do valor daquilo que carrega.
Não fosse dessa forma, no confronto judicial com a seguradora sub-rogada, o transportador aéreo poderia imaginar-se eternamente protegido contra o próprio dever, coberto pela aura tépida e complacente da limitação, como se a Convenção de Montreal lhe fosse sair perdoando quase que a dívida toda. E isso seria uma aberração. O Direito não se presta ao torto nem pode prescindir da ordenança moral.
Valor conhecido, ou conhecível, é valor declarado. Ainda que a ciência se dê por outros meios, idôneos é certo, como pela consulta a faturas comerciais, exatamente como no RE 1.242.964/SP, em que, nas palavras do ministro Luiz Fux: "(...) o tribunal a quo concluiu que teria havido a declaração do valor da carga transportada, circunstância que, nos termos das referidas Convenções, afasta a limitação da responsabilidade do transportador".
Por fim, e de se dizer, com base na mesma Convenção de Montreal — quando não pela quase onipresente culpa grave ou pelo sempre presumido conhecimento do valor — no artigo 37 que Tribunais estaduais têm, em não poucos casos, rejeitado as disposições tarifadas para o exercício do seu direito de regresso:
"PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. TRANSPORTE AÉREO. CARGA. AVARIA. SEGURO. REGRESSO. CONVENÇÃO DE MONTREAL. DECADÊNCIA. LIMITE. 1. Ainda que a Convenção de Montreal se aplique a indenizações por dano material relativas a carga, é certo que a própria convenção observou que não afetaria direito de regresso. O direito de regresso, então, segue normas internas. 2. Não cabe aplicação da indenização tarifada da Convenção de Montreal quando a carga transportada é devidamente informada, inclusive quanto a seu valor. 3. O Mantra Siscomex supre a falta de protesto. Diante disso, não há que se falar em decadência por falta de protesto. 4. A empresa que efetivamente presta o transporte é parte legítima para responder por danos decorrentes desse serviço. 5. Recurso não provido". (TJ/SP - Ap. Cível 1061664-45.2019.8.26.0100 - 14ª Câmara de Direito Privado - rel. Melo Colombi - J. 12/02/20).
Na leitura muito prudente do voto, a própria Convenção de Montreal acaba prevendo que o direito de regresso não pode ser por ela prejudicado, permanecendo a seguradora sub-rogada deste modo imune ao critério limitador.
Já se mostra que a situação não pode ser considerada sob um único aspecto. Divergindo os fatos, a natureza das partes que demandam, não há precedente válido (art. 926 e 927, III, CPC). A complexidade que não poucas vezes envolve os desdobramentos econômicos do ressarcimento da seguradora é maior do que a de um passageiro cuja bagagem tenha sido extraviada com um punhado de roupas e meia dúzia de acessórios.
A aplicação do tema 210 em um litígio de ressarcimento de seguradora sub-rogada contra transportador, por exemplo, poderá fazer com que este, causador de um dano de R$ 10 milhões, pague algo perto de R$ 10 mil reais. E isso é um rematado absurdo, incompatível com o que há de mais antigo e de mais moderno no Direito. Vai atingir a espinha dorsal do sistema de seguros.
Casos de descumprimento contratual de transporte de cargas, inseridos no contexto da sub-rogação da seguradora, não podem se submeter a esse critério, independentemente do pagamento do frete ad valorem.
Isso quem diz é o próprio Supremo Tribunal Federal, que distingue a situação do segurador sub-rogado quando trata do seu Tema 210 de repercussão geral.
Limitar a responsabilidade do danador é danar uma segunda vez a vítima. No caso específico do segurador sub-rogado é lesar diretamente o colégio de segurados, o mútuo, e, indiretamente, toda a sociedade, dada a singular importância do negócio de seguro. Disse isso ontem; digo hoje; direi amanhã.
Claro que nem todo mundo enxerga assim. Há decisões contrárias ao que aqui se defende nos Tribunais de Justiça e no próprio Superior Tribunal de Justiça.
Mas a expectativa é positiva quanto ao bom ajuste do tema, sobretudo a partir das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, que reconhecem a posição singular do segurador sub-rogado.
_________