Migalhas de Peso

Aspectos históricos e atuais dos crimes contra a saúde pública

Em tempos de pandemia, este cenário se repete, por isso a importância dos crimes contra a saúde pública, para assegurar que as infrações praticadas pelo agente que descumpre as recomendações do poder público sejam penalizadas.

12/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Dentre as primeiras conquistas do operariado pode-se destacar a concessão de alguns benefícios sociais, o que por um lado ampliou os direitos da classe trabalhadora e por outro permitiu o controle deste pelo Estado. A Era Vargas no Brasil (1930-1945), sob influência do Welfare State, foi marcada por uma série de medidas que estreitavam as relações entre o Estado e o sistema político-econômico, de forma que o modo de pensar a produção também se modificava, no mesmo passo avançava a pressão operária em busca de garantias por direitos básicos e leis que regessem o relacionamento entre o proletariado e os patrões. Sendo assim, durante o governo foram pactuadas diversas iniciativas com o objetivo de minimizar os efeitos destes conflitos, como a criação do Ministério do Trabalho Indústria e Comércio, em 1930, e a CLT, em 1934, ocorre que no que tange a doutrina da “paz social” havia uma política de controle e dominação da atividade e da organização política do proletariado (IANNI, 1979). Dentre os diversos governos que se sucederam, as políticas sociais seguiram sendo tidas como ofício para aprovação popular.

No período ditatorial (1964-1985), a saúde pública passou a ser vista como mais uma forma de gerar lucro e piorou consideravelmente, uma vez que os maiores investimentos estavam voltados para a Medicina Previdenciária, de forma que em 1970 fora criado o Movimento pela Reforma Sanitária, trazendo uma produção teórico-crítica ao capitalismo. Apenas no período de redemocratização, a partir da Constituição Federal de 1988, que a saúde passou a ser direito de todos e dever do Estado (previsto no artigo 196 da CF/88), com a instituição, então, do SUS, que fora regulamentado posteriormente, em 1990, com a lei Orgânica da Saúde (lei 8.080/90). Para Estefam (2018, p. 291), “a saúde da coletividade em geral toca proximamente com o direito à vida (CF, art. 5º, caput) e, ademais, com a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III)”, pode-se dizer assim, que historicamente a saúde é um viés da luta de classes, e muito embora seja legalmente um dever do Estado, ainda hoje é coordenada por interesses econômicos e políticos.

Na concepção Welzel (1997, p. 5), “bem jurídico é um bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente. (...) é todo estado social desejável que o Direito quer resguardar de lesões”, nesse prisma, é o bem socialmente relevante e juridicamente valioso, são aqueles em consonância com o Estado democrático de Direito e que de certa forma delimitam a intervenção penal. No tocante do bem jurídico da saúde, para Bitencourt (2019, p. 359),

ela é reconhecida pelo nosso ordenamento jurídico como um direito de todos e, consequentemente, como um bem de interesse social garantido pelo Estado mediante políticas sociais e econômicas, que visam tanto à redução do risco de doença e de outros gravames como ao acesso universal igualitário.

Assim, pode-se afirmar que a saúde compõe um bem jurídico coletivo e de clara ascensão social, sendo, portanto, dever do Estado protegê-la, de modo que há previsão da criminalização das condutas que ponham em perigo ou com potencial nocivo à saúde coletiva. O Código Penal brasileiro, no que diz respeito ao bem jurídico saúde pública, descreve no seu Título VIII (Dos Crimes contra a Incolumidade Pública) as ações que ferem a saúde coletiva, deixando claro que estas se dão quando o perigo ou a lesão atingirem uma ou várias pessoas indeterminadas, ou seja, não há determinação de vítima pelo agente, uma vez que se assim não o fosse, o sujeito responderia pelo crime praticado àquela (s) vitima (s) determinada (s), nessa lógica, para Jesus (1996, p. 311), a saúde pública é “a normalidade física, mental e orgânica de um número indeterminado de pessoas”.

Com o intuito de assegurar a manutenção da ordem e das relações sociais, “o sistema punitivo do Estado estabelece o mais rigoroso instrumento de controle social formal. Por seu turno, a conduta delituosa é a mais grave forma de transgressão de normas existentes na sociedade” (SOUZA e JUPIASSÚ, 2020, p. 287), deste modo, mediante a incriminação e a imposição de uma pena, garante-se a proteção dos bens jurídicos revestidos de certo valor. Partindo dessa premissa, supostamente, atingir-se-ia a integridade dos bens jurídicos dos demais integrantes da comunidade. Portanto, a relevância dos crimes contra a saúde pública está atrelada à garantia de uma conquista histórica do proletariado, tal como, com a necessidade da preservação do bem-estar populacional e de uma vida satisfatória.

Com o surto da Covid 19, doença causada pelo coronavírus, foi declarado no Brasil estado de calamidade, de forma que as autoridades realizaram medidas drásticas por meio de decretos ou portarias, no intuito de conter o vírus que se alastra mundialmente. Ocorre que por uma onda conversadora que toma o país, e por tamanho descredito à ciência, muitas pessoas desacreditaram nos efeitos da doença e deixaram de cumprir as medidas indicadas pelas autoridades, fato é que ao infringi-las o agente viola também a legislação penal. Nesse passo, aquele que não respeitar as medidas de isolamento social e quarentena em caso de contagio, responde pela conduta tipificada no artigo 267 do CP, sendo responsabilizado pelo crime de pandemia. Por outro lado, aquele que não estiver contaminado e igualmente contrariar as medidas de prevenção, responde pelo crime de infração de medida sanitária, previsto no artigo 268 da supracitada legislação. Essas são possibilidades bastante graves, principalmente quando se tratando de um momento delicado, que afeta o físico e o mental de milhões de pessoas.

Nesse aspecto, para Nucci (2019, p. 271), “introduzir e propagar doença contagiosa significa que a determinação do poder público deve voltar-se à introdução (ingresso ou entrada) ou à propagação (proliferação ou multiplicação) da doença”, dessa forma, o ente público deve sim agir de modo a conter e evitar potenciais riscos que causem ou venham a causar colapsos que atinjam sua população de forma direta ou indireta, por óbvio, o ideal é que os entes públicos cumpram com medidas a título de evitar crises maiores na saúde pública, mas, em muitas vezes cabe ao judiciário, quando provocado, assegurar as normas constitucionais para garantir a (de certa forma) segurança da população.

Diante da análise realizada, é importante ressaltar que o Estado brasileiro não assegura com excelência (e nem perto disso) nenhuma demanda social, e muito disso se dá, pois, até hoje muito se vê os benefícios sociais como gasto e não investimento. Em tempos de pandemia, este cenário se repete, por isso a importância dos crimes contra a saúde pública, para assegurar que as infrações praticadas pelo agente que descumpre as recomendações do poder público sejam penalizadas, garantindo a existência da sociedade e proporcionando estabilidade às relações interpessoais.  

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IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização, 1979.

ESTEFAM, André. Direito penal, volume 3: parte especial (arts. 235 a 359-H). 5. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 291.

WELZEL, Hans. Derecho penal alemán: parte geral. 4. ed. Santiago do Chile: Jurídica de Chile, 1997.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial 4: crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública. 13. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 359.

JESUS, Damásio E. Direito penal: Parte especial. v. 3. 11aed., São Paulo: Saraiva, 1996.

SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal: volume único. 2. ed. – São Paulo: Atlas, 2020, p. 287.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito parte especial: arts. 213 a 361 do código penal. 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 271.

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*Bianca Helena dos Santos é graduanda em Direito da UCAM – Universidade Cândido Mendes, e Assistente de Pesquisa.

 

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