O STF, por maioria, apreciando o tema 532 da repercussão geral, devolveu à BHTrans a prerrogativa de aplicar multas de trânsito, poder que a empresa havia perdido há 11 (onze anos). A decisão foi prolatada no último dia 23 de outubro, julgamento do RE 633782, no bojo de um processo cuja relatoria foi da lavra do Ministro Luiz Fux, o qual votou pelo provimento do recurso interposto pela aludida sociedade de economia mista que coordena o trânsito na região de Belo Horizonte/MG. A tese fixada foi a seguinte:
É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, às pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrrencial.
O cotejo analítico do caso e da decisão nos reclama, inexoravelmente, um retorno à história. A BHTrans perdeu o direito de sancionar motoristas infratores em 10 de novembro de 2009, por decisão, à época, unânime (5 votos a 0), no âmbito da 2ª turma do STJ. Os Ministros acompanharam o voto do então relator, o Ministro Mauro Campbell Marques.
Fazendo um breve corte epistemológico, não é despiciendo lembrar que a decisão do STJ (acima descrita) levou em conta a construção doutrinária denominada de “ciclo de polícia”, que se desenvolve em quatro fases, cada uma correspondendo a um modo de atuação da Administração: a 1) ordem de polícia, o 2) consentimento de polícia, 3) a fiscalização de polícia e 4) a sanção de polícia1.
Retornando, ao caso sub examine, infere-se que o STJ prestigiou a tese de que somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, seguindo o entendimento de que aqueles referentes à legislação e à sanção derivam de coerção do Poder Público, este, supostamente, indelegável às pessoas jurídicas de direito privado2.
O imbróglio teve sua gênese em 2004, quando um promotor de justiça ajuizou ação civil pública questionando o poder de polícia da BHTrans. A ação foi julgada na Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte e as prerrogativas da referida Sociedade de Economia Mista foram mantidas. Dois anos depois, em fevereiro de 2006, o aludido representante do parquet moveu novas demandas no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e no STJ. Foi derrotado no primeiro, mas logrou êxito no segundo.
Imperioso rememorar, ainda, que o STF já havia se manifestado, em diversas outras oportunidades, sobre questão relativa à delegação de poder de polícia administrativa a entidades privadas, a exemplo do julgamento da ADIn 1.717, de relatoria do então Ministro Sydney Sanches. Naquela ocasião, o Pleno do Tribunal concluiu pela indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir”.3
Feito esse breve escorço histórico, passa-se a analisar a decisão do Pretório Excelso no RE 633782, que, no nosso sentir, restaura a legalidade no caso sub examine e, dado o seu caráter de leading case, promove verdadeira reviravolta (positiva) no enfrentamento da matéria. Pois bem.
A ideia se afigura perfeitamente assimilável e se coaduna com os ditames do Direito Administrativo Contemporâneo, o qual, em consonância com a Jurisprudência do STF, demanda a extensão do regime inerente à Fazenda Pública às empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras, exclusivamente, de serviço público e em regime não concorrencial.
Exemplifica-se: pode um Município criar uma empresa pública (ou uma sociedade de economia mista), atribuindo-lhe a competência de regular o transporte municipal, conceder as linhas de ônibus, bem assim estabelecer normatização administrativa para o setor, inclusive sancionando os que as descumprirem? Perfeitamente. É sua a discricionariedade quanto à escolha do modelo de entidade, desde que, não transgredindo os limites impostos por normas constitucionais ou legais nacionais (standards), contenha-se no âmbito do interesse local.
Costuma-se verberar a tese de que uma pessoa jurídica de direito privado, uma empresa pública ou sociedade de econômica mista, v.g., possa exercer poderes de autoridade. De fato, não seria admissível o exercício de prerrogativas de autoridade por uma empresa pública exploradora de atividade econômica. Entretanto, não é desse tipo de entidade e atividade que se cuida, in casu. Estar-se a cogitar, no caso em tela, de uma sociedade de economia mista (cujo principal acionista é o próprio Município de Belo Horizonte, vale ressaltar) gestora de atividade administrativa.
Na doutrina, em que pese a existência de entendimentos díspares, deve reinar a convicção de que, a despeito de não serem, genericamente, dotadas de prerrogativas próprias às pessoas públicas, podem recebê-las, por lei específica. Nenhuma vedação ou impossibilidade existe nesse sentido. A propósito do tema, oportuno evocar os escólios valiosos de Diógenes Gasparini, acerca das possíveis prerrogativas das empresas públicas (prestadoras de serviços públicos):
“Não possuem as empresas públicas, em razão de sua natureza privada, privilégios de qualquer espécie. Assim, não gozam de foro ou juízo privilegiado, salvo se prestadoras de serviço público. Nesses casos, o serviço público que prestam e os bens a ele vinculados gozam de especial proteção (inalienabilidade, impenhorabilidade, imprescritibilidade e não-oneração) em razão do princípio da continuidade do serviço público (RT, 738:317). Isso não significa que não possam ter os que a lei autorizadora de sua instituição, ou outra, outorgar-lhes, desde que não são se trate de privilégios fiscais não extensivos às empresas do setor privado (art. 173, § 2º). A restrição não se põe se forem prestadoras de serviços públicos. Nessa hipótese, pode-se-lhes outorgar qualquer prerrogativa, pois escapam da restrição do dispositivo constitucional” (grifou-se)4.
Na dicção do renomado mestre, a lei pode, especificamente, atribuir às empresas públicas (e, analogamente, às sociedades de economia mista) que desempenham atividade administrativa quaisquer prerrogativas, inclusive poder de polícia. Nesse sentido, pontua:
“A regra é a indelegabilidade da atribuição de polícia administrativa. Seu exercício sobre dada matéria, serviço de táxi, por exemplo, cabe ao Município que o realiza com recursos pessoais e materiais, pois é a pessoa competente para legislar. Embora essa seja a regra, admite-se a delegação desde que outorgada a uma pessoa pública administrativa, como é a autarquia, ou a uma pessoa governamental, como é a empresa pública”.
Pode-se, nesse ponto, à margem de qualquer vedação legal ou constitucional, impor-se bitolas ao ente político interessado, dizendo-lhe ter que tratar-se de pessoa de natureza pública? Crê-se que não. O que vale em maior monta é aferir qual o caminho que melhor atenderá ao interesse público, suscitando menos riscos ao oferecimento das comodidades desejadas e carecidas pela comunidade. Pondera, com precisão, José dos Santos Carvalho Filho:
“Se determinado serviço é federal, deve a União geri-lo ou controlá-lo por si ou por Estados-Membros e Municípios, se com estes melhor se tornar a operacionalização da atividade. O mesmo se passa com os serviços estaduais: se necessário for, devem eles geri-los associadamente com os Municípios. O que se pretende, em última análise, é que os cidadãos recebam os serviços públicos com melhor qualidade e com maior eficiência”.5
O que parece razoável afirmar é que tal entidade administrativa de natureza privada, pela própria especificidade das relações jurídicas em que estará envolvida, submeter-se-á a um regime jurídico com traços peculiares. Ademais, cabe à lei-quadro (skeleton type), de autoria do ente público delegante, estreitar os lindes da atuação de polícia da estatal com personalidade jurídica de direito privado, como forma de resguardar, de um lado, os princípios da legalidade e do interesse público, e do outro, a racionalização, a eficiência e a efetividade no exercício de atividades prestadas pelo Estado (lato sensu).
In fine, relevante assinalar que, como a entidade administrativa será gestora e não simples prestadora de serviços, poderia, dada a singularidade de sua posição, também exercer função regulatória. O que importa, na verdade, é que essa função seja orientada por critérios técnicos (e não por critérios políticos).
Não se enxerga óbice, enfim, a que os Municípios e o Estado transfiram tais prerrogativas a um ente por eles próprios gerados. Se poderiam fazê-lo para uma autarquia, a mesma lógica se aplica em relação a uma empresa pública ou sociedade de economia mista. Em ambas as situações, tem-se rigorosamente o mesmo fenômeno jurídico.
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1- MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2014. P. 440/444.
2- (STJ, EDcl no REsp 817.534/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Julgado em 25/5/2010, Dje 16/6/2020; e REsp. 817.534/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 10/11/2009, Dje 10/12/2009).
3- (STF, ADI 1717, Relator Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 7/11/2002, DJ 28/3/2003).
4- Direito Administrativo. 9ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 381.
5- Manual de Direito Administrativo, 12ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 325.
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Flávio Germano de Sena Teixeira é advogado no Almeida Paula Advogados Associados. Procurador do Estado de Pernambuco, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor de Direito Administrativo.
Flávio Germano de Sena Teixeira Júnior é advogado no Almeida Paula Advogados Associado. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB-PE e membro do Grupo de Pesquisa Direito e Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).