Apesar da democratização do acesso à internet ser limitada, segundo o relatório de 2019 da Comissão de Banda Larga das Nações Unidas 51% da população mundial está conectada à rede No Brasil, três em cada quatro brasileiros acessam a internet, conforme a pesquisa TIC Domicílios 2019 realizada pelo Centro Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação. Isso quer dizer que, se anteriormente apenas a elite dispunha de meios para expor suas ideias com vasto alcance, hoje, qualquer indivíduo com uma conta em alguma das dezenas de redes sociais existentes pode “viralizar” nesse mundo.
Entretanto, o poder de expor na rede intimidades que outrora se restringiam à escritos em diários (trancados por cadeados, diga-se de passagem) trouxe consequências que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não foi capaz de disciplinar, criando danos à honra dificilmente revertidos, diante da rapidez com que as informações se propagam. De acordo com o levantamento da Digital in 2018, no Facebook, há mais de 2 bilhões de usuários ativos e no Instagram mais de 1 bilhão de usuários, entre eles inúmeros perfis pessoais e páginas responsáveis pelo estímulo ao linchamento virtual e exposição da intimidade alheia.
Portanto, é difícil manter-se alheio ao mundo virtual devido à crescente facilidade ao acesso das tecnologias aliada a uma oportunidade de liberdade de expressão a qual nunca existiu antes. A internet permite que qualquer pessoa publique atos que vão dos mais irrelevantes até aqueles que podem ferir a honra de terceiro e que, por isso, ensejam responsabilização jurídica. Neste contexto de fluidez de informações, o direito ao esquecimento virtual, anteriormente pleiteado especialmente por famosos (vide o célebre caso “Xuxa vs. Google”) tornou-se um instituto acessível também ao cidadão anônimo vítima de fake news ou linchamento virtual que requeira o esquecimento de fatos a seu respeito.
O direito ao esquecimento ou também denominado “direito de ser deixado em paz”, ou ainda “the right to be let alone” na língua inglesa consiste na prerrogativa que o indivíduo possui de não permitir que a exposição de fatos ocorridos em algum momento de sua vida lhe cause sofrimento na atualidade. Isso significa que é indiferente a discussão da veracidade do fato, bastando apenas prejuízo ao titular para que seja requerido o esquecimento. Deve-se atentar ainda, que o direito ao esquecimento diverge do direito à privacidade, visto que este último aborda fatos contemporâneos e não passados do indivíduo.
Na esfera penal há um tipo de direito ao esquecimento previsto no artigo 202 da lei de Execução Penal (lei 7.210/84). Trata-se do instituto da reabilitação criminal que consiste na ocultação em atestados e certidões dos antecedentes criminais de sentenciados que já cumpriram condenação, visto que a exposição desses dados, inegavelmente, traz inúmeros prejuízos para a ressocialização do ex-detento. O artigo supramencionado possui a seguinte redação:
“Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.”
Como observado, o instituto da reabilitação criminal limita-se apenas a ocultar referências a condenações em atestados e certidões, ou seja, esse mecanismo não alcança outras áreas da vida do indivíduo, tal como a virtual. Sendo assim, no contexto de uma sociedade informatizada, a não ocultação desses dados em páginas de internet e redes sociais traz danos severos a aquele que já cumpriu sua parcela com a Justiça.
Ainda que amplamente discutido no Brasil e em outros países, (vide julgamento do Tribunal de Paris em 1983) o direito ao esquecimento aplicado ao ambiente virtual não está previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro. Sendo assim, o direito em questão é derivado principalmente do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e do direito à privacidade, intimidade e honra assegurados pelo art. 5º, inciso X da CF/88 e pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 21.
Em 2013 houve progresso quanto à formalidade do direito ao esquecimento com a aprovação na VI Jornada de Direito Civil do CJF do Enunciado n. 531, que conta com a seguinte redação: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.
Além disso, tendo em vista a ausência de previsão legal, a jurisprudência possui papel crucial para a efetivação do direito ao esquecimento. Um dos casos mais célebres e que é base para a discussão no campo virtual foi contra a Rede Globo. A menção do nome de um acusado de participar da Chacina da Candelária no programa “Linha-Direta Justiça” exibido em 2006 desencadeou na ação, visto que suspeito fora absolvido do crime. O STJ decidiu favoravelmente ao autor, sob o argumento da possibilidade de se contar a história da Chacina sem a necessidade de mencionar o nome do acusado.
Recentemente, a 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo negou um pedido de exclusão nos buscadores Google e Bing da condição de cotista racial de um homem aprovado em concurso público. O autor argumenta que é preterido nos processos seletivos de empresas privadas quando estas tomam conhecimento de sua aprovação por cota. Ainda assim, o TJ entendeu que o fato de ser aprovado com uso de cota racial não constitui violação alguma à honra e imagem do autor e que, portanto, não faz jus ao instituto do esquecimento.
Observando-se os casos expostos acima, há uma linha tênue entre direito ao esquecimento e o cerceamento da liberdade de expressão e informação. Devido à falta de parâmetros legais para determinar o esquecimento, cabe ao Judiciário analisar, caso a caso, as múltiplas demandas submetidas a apreciação. Além disso, sabe-se que uma decisão favorável à ocultação do fato dificilmente não enfrentará discussões técnicas no campo da tecnologia, pois a informação raramente é completamente removida.
Diante das novas celeumas jurídicas decorrentes da sociedade da informação, a normatização se mostra uma via adequada para dessobrecarregar o Judiciário da missão de adequar normas antigas à realidade atual. Sobretudo, a primeira etapa é ter ciência de que a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada não só no campo físico, como também no mundo virtual.
__________
NOBERTO, Cristiane e LOIOLA, Catarina. 51% da população mundial têm acesso à internet, mostra estudo da ONU. Disponível aqui.
VALENTE, Jonas. Brasil tem 134 milhões de usuários de internet, aponta pesquisa. Disponível em aqui. Acesso em: 05 abr. 2020.
TOURRUCOO, Juliana. Veja quantos usuários tem o Facebook, YouTube, Instagram e as outras redes sociais. Disponível em: https://www.goobec.com.br/blog/redes-sociais-dados-estatisticos-2018/. Acesso em: 05 abr. 2020
BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. 1ª Edição. Porto Alegre, RS. Arquipélago. 2017.
PECK, Patrícia. Direito Digital. 6ª Edição. São Paulo. Saraiva. 2016.
CAMPANA, Giovanna Capucho. Direito ao esquecimento na internet. 2017. 684 f. Caderno de pós-graduação em direito: Estado, sociedade e direito. Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Brasília. 2017
OLIVA, Afonso Carvalho de. CRUZ, Marco A. R. Cunha e. Um estudo do caso Xuxa vs. Google Search (REsp 1.316.921): O direito ao esquecimento na internet e o Superior Tribunal de Justiça. 2014. 22 f. I Congresso Internacional de Direitos da Personalidade. UniCesumar. Paraná. 2014.
CANÁRIO, Pedro. STJ aplica 'direito ao esquecimento' pela primeira vez. Acesso em: 20 mai. 2020.
Lei de Execução Penal. Disponível aqui. Acesso em: 15 ago. 2020.
RIBAS, Mariana. TJSP: não há direito ao esquecimento sobre aprovação em concurso por meio de cota. Acesso em: 02 out. 2020.
__________
*Vitória Ramos é acadêmica de Direito e pesquisadora do programa de Iniciação Científica.