Tão comentada por atores políticos nos noticiários todos os dias, a proposta de reforma administrativa ainda necessita de debates e esclarecimentos. Que tal nos debruçarmos sobre o tema em celebração ao Dia do Servidor Público?
Primeiro, é pertinente analisar o contexto da realidade brasileira quanto ao tema.
No Brasil, cargo público sempre foi o objetivo de muitos profissionais e estudantes.
Porém, como é bem sabido, o caminho até esse objetivo é por muitas vezes longo e árduo: antes de gozar do status de servidor público, o candidato precisará passar pelo período árduo do dito “concurseiro”.
Apesar de difícil e disputado, é justamente o concurso a ferramenta que assegura a impessoalidade exigida constitucionalmente no preenchimento de cargos públicos.
E depois da investidura? O que garante que o servidor terá liberdade para agir conforme a estrita legalidade?
Se você pensou na garantia da estabilidade, tem toda a razão!
Para garantir ao agente público a autonomia e independência sem intervenção ou medo de represália, a Constituição Federal de 1988 fixou no seu art. 40 a estabilidade dos servidores públicos após 3 anos de efetivo exercício.
Esse instrumento compreende uma prerrogativa que dá maior segurança ao servidor, na medida em que este pode agir no cumprimento da lei sem temer qualquer influência ou ameaça.
Com isso, para desligar o agente público da Administração Pública é necessária uma sentença judicial transitada em julgado ou que haja processo administrativo em que lhe seja afiançada a ampla defesa.
Quer ver a importância da estabilidade no dia a dia do servidor?
Poucos meses atrás, em razão da pandemia da covid-19, um desembargador do Rio de Janeiro foi multado em abordagem da Guarda Municipal por não usar máscara de proteção facial.
Insatisfeito com a situação, o desembargador acabou rasgando a multa e decidiu ligar para o então secretário municipal de Segurança Pública, adotando um tom de clara "ameaça" ao servidor.
No caso em exame, o guarda municipal foi constrangido no estrito cumprimento do seu dever.1
Imagine a mesma situação, mas agora excluindo da cena a estabilidade garantida em lei, com demissões precárias. Seria ainda pior!
É por isso que se pode concluir que a estabilidade é a medida que se impõe para que haja maior eficiência do serviço público, não podendo ser suprimida.
Salienta-se, porém, que os membros da Segurança Pública não serão afetados.
Mas não é difícil imaginar situações em que servidores poderiam passar pelo mesmo triste episódio que o guarda municipal suportou.
Os efeitos da Reforma Administrativa
Considerando a celebração do Dia do Servidor Público, é oportuno esclarecer as modificações que o atual Governo Federal pretende com a famigerada reforma administrativa, bem como demonstrar as suas controvérsias.
A proposta de emenda constitucional (PEC 32/20) foi apresentada ao Legislativo no início de setembro pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com intenção de realizar uma ampla alteração nesta matéria.
A mais notável das inovações é a ameaça de restrição da estabilidade ou até mesmo sua aniquilação em alguns casos.
Sob o argumento de que os servidores públicos custam demasiadamente caro aos cofres públicos, a referida reforma visa economizar cerca de R$ 800 bilhões com a supressão de garantias até então reservadas aos servidores.2
Para desmistificar alguns desses pontos, cumpre destacar a importância do funcionalismo público.
A título de exemplo, na Noruega, país popularmente conhecido por ostentar um dos mais altos índices de desenvolvimento humano (IDH), cerca de 30% da população nacional são compostos por servidores públicos.3
Já no Brasil, por volta de 3,12 milhões de pessoas são servidores, totalizando um percentual de 1,6% da população brasileira com exercício em cargo ou função pública.
Com volume expressivo de demanda pela prestação de serviço, percebe-se o quanto precisamos apostar na eficiência do serviço público brasileiro.4
Contudo, a proposta coloca em xeque uma prerrogativa que pode acabar gerando precisamente um serviço de eficiência duvidosa.
Isso porque aqueles novos agentes públicos que atuarão fora dos casos ditos “típicos de Estado” não mais terão a autonomia e independência funcional sem medo de retaliação ou ameaça.
Um processo de retirada do servidor mais simples acarretará demissões arbitrárias e desmotivadas.
Não se pode negar a necessidade da estabilidade aos servidores públicos, assegurando a autonomia e independência funcional.
O dinheiro que custeia essa garantia é, na verdade, um investimento que resulta em melhor serviço prestado.
Carreiras típicas de Estado
Cumpre esclarecer que as mudanças propostas pela PEC abrangem os servidores federais, estaduais e municipais.
Mas só passarão a valer, caso aprovadas, para os servidores futuros, de forma que os atuais não sofrerão os ônus dos novos termos pretendidos.
Outro ponto que vale ser analisado diz respeito às intituladas carreiras típicas de Estado, que não sofreriam grandes alterações com a eventual aprovação do texto.
Essa lição merece ser esclarecida, sobretudo porque não há, até o presente momento, uma legislação que trate ou demonstre de maneira exauriente todas as carreiras consideradas típicas de Estado.
O que pode nos orientar a respeito do tema são as dicções de juristas e instituições que já se debruçaram sobre o assunto.
Para o Fórum Permanente de Carreiras típicas de Estado (FONACATE), por exemplo, estão neste rol, dentre outras atividades, os cargos de Segurança Pública, Magistratura, Defensoria Pública e Advocacia Pública.[4]
E os demais cargos?
Bom, em relação aos demais cargos, a reforma pretende flexibilizar a obrigatoriedade do concurso público e até mesmo a estabilidade.
A lógica será a de que, não se tratando de carreiras típicas de Estado, não haveria a necessidade de uma sentença transitada em julgado para a retirada do servidor.
Mas esse raciocínio acaba claramente ferindo o princípio da igualdade prevista na Constituição Federal de 1988.
Ademais, a figura dos cargos comissionados passará a ser compreendida por cargos de liderança e assessoramento, preenchidos por processo seletivo simplificado ou sem nem mesmo seleção obrigatória.
Tal permissividade nitidamente fomentaria a inserção de profissionais somente por questões políticas.
Mas, afinal, a reforma é ou não inconstitucional?
A princípio, é importante dizer que a referida reforma administrativa está em fase de tramitação no Congresso Nacional.
Nesse momento, em tese, as possibilidades de apreciação da (in)constitucionalidade da proposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) são bem limitadas.
Por essa razão, não há posicionamento oficial da Suprema Corte brasileira sobre a conformidade da PEC 32/20 com a Carta Constitucional.
Contudo, cabe a nós, juristas, esclarecer a atual conjuntura dessa possível inovação legal em contraste com a Constituição vigente.
Nesse sentido, a própria lei maior estabelece em seu art. 37 os princípios da eficiência e da impessoalidade.
Evidentemente não se pode olvidar que a estabilidade do servidor público visa atender uma prestação do serviço público mais eficiente e com tratamento isonômico.
É ela o instrumento que afasta a possibilidade de que o agente público aja por medo de demissão ou retaliação.
Protegido por essa garantia, o servidor procederá plenamente em consonância com a lei, podendo declinar de propostas ilegais sem temer arbitrariedades.
Mas agora a pergunta que não quer calar: a previsão da estabilidade pode ser alterada?
Segundo o art. 60, parágrafo 4, inciso IV, não poderá ser objeto de deliberação a emenda constitucional que tente abolir um direito ou garantia individual.
E é nessa categoria que se conforma a estabilidade.
Apesar do art. 5º da Constituição Federal - dispositivo que trata dos direitos e garantias individuais – não mencionar textualmente os servidores, o parágrafo segundo do mesmo dispositivo esclarece que os direitos e garantias individuais previstos na lei maior não excluem outros decorrentes de princípios por ela adotados ou de tratados dos quais o Brasil faça parte.
Ao afirmar isso, como bem ensina o douto Pedro Lenza, o art. 5º, § 2, da Constituição confirma que o rol do referido artigo não é taxativo.
Isto é, há ao longo de toda a Constituição outros princípios que não podem ser abolidos.5
Daí surge verdadeira controvérsia sobre a constitucionalidade da reforma administrativa.
Isto porque, como vimos, entre as modificações prevista está a retirada da a estabilidade daqueles servidores fora dos cargos taxado de “típicos do Estado”, que, até o momento, encontra-se no art. 40 caput da Constituição de 1988.
Dessa maneira, resta clara a conclusão de que a proposta de retirar a estabilidade dos servidores que não exerçam atividades típicas, além de suprimir um direito individual oferecido, atualmente, a praticamente todos os cargos do Brasil, fere o princípio da impessoalidade e eficiência, considerando que enaltece uma categoria de atividades que sequer é prevista pela legislação em detrimento dos demais servidores.
Noutro giro, outra das grandes perdas iminentes que recairão sobre os novos servidores públicos diz respeitos às licenças, férias e bonificações.
É que a PEC 32/20 pretende vedar a concessão de férias superiores a 30 dias, além de proibir também que servidores recebam adicionais referentes a tempo de serviço, popularmente conhecidos como anuênios.
Da mesma forma pretende-se vedar as licenças-prêmio, assim como o adicional ou a indenização por substituição e a progressão ou promoção exclusivamente por tempo de serviço.
E agora?
Como é possível perceber, a referida emenda constitucional tenta suprimir, dentre outras prerrogativas, a estabilidade, que existe justamente em homenagem aos princípios da administração pública fixados na Constituição Federal de 1988.
Anota-se que, mesmo diante do “balde de água fria” promovido pela reforma, há, entretanto, uma boa disposição da mudança ao extinguir a figura da aposentadoria compulsória como forma de punição, possivelmente retirada pela patente insatisfação da sociedade.
Em arremate, o que se espera, sempre, é a valorização do servidor público.
Com esse horizonte, resta ao Congresso Nacional verificar se há de fato interesse público na realização dessa reforma administrativa.
E, se for o caso, caberá também uma deliberação do Supremo Tribunal Federal sobre a sua (in)constitucionalidade.
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1 TJ-SP irá apurar conduta de desembargador que destratou guarda municipal.
5 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24. ed. São Paulo: SARAIVA jur, 2020. p. 1-1134.
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