Já faz algum tempo que temos dedicado atenção especial ao pagamento com sub-rogação no negócio de seguro. Esse instituto garante que, por efeito da indenização paga por conta do sinistro, a seguradora se veja colocada como no lugar do segurado, passando a ter o direito de buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano.
Trata-se de algo que se pode dizer até próprio da gênese do negócio, pois influencia a contraprestação do contratante, ao contribuir para a avaliação do prêmio que este deve pagar, para obter a garantia do interesse que o preocupa. No Brasil de hoje, é o art. 786 do Código Civil que o regula diretamente.
Contudo, antes mesmo do artigo e do código, em relação ao seguro de dano em geral, tudo isso já havia sido pacificado e ordenado, por meio do enunciado de súmula 188/STF: “O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até o limite previsto no contrato de seguro”.
Se a Corte Suprema sumulou o assunto, quando era de sua competência o trato de temas de Direito do Seguro, é porque foi muito questionado em disputas judiciais. Muitas vezes, pelo esforço retórico e pelos recortes que a razão é capaz de operar até por brincadeira, aquilo que a princípio não cogitamos vira, para alguns, uma hipótese cogitável. Naturalmente, elabora-se a súmula para pacificar o assunto e, com ela, preservar a segurança jurídica. Súmula essa que, além de ter se inspirado no art. 728 do Código Comercial, não ignorou o teor do art. 989 do antigo Código Civil: “Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor, senão até à soma, que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.”.
É preciso logo esclarecer: a sub-rogação não acontece porque o contrato de seguro a prevê, e sim porque a legislação o determina. Nesse sentido, a apólice só repete a norma. De modo que a sub-rogação, no contexto securitário, acaba não sendo convencional, mas legal.
Sua primeira consequência para a companhia de seguros é o direito à exigência do crédito que pagou em nome do terceiro, em face de quem poderá fazer seus pedidos de reembolso. Mais do que um direito, o ressarcimento é dever da seguradora, ato de fidelidade e respeito ao colégio de segurados (princípio do mutualismo), além de vital para a saúde do seguro.
Sua segunda consequência, a restringir os termos em que se deve interpretar a primeira, é que a seguradora não se prende exatamente a contratos e condições que o segurado tenha firmado.
Vinculada aos limites materiais do crédito, a sub-rogação opera de um ao outro a transferência de direitos que havia na relação original. Características de ordem procedimental e personalíssima, por mais que assumidas pela vontade enfática do segurado, dela não passam de maneira alguma; isto é, não atravessam o véu da sub-rogação, sob pena de ofenderem a ratio que a ordena e a ontologia que a constitui. Como até hoje entende o Superior Tribunal de Justiça, a sub-rogação transmite não mais do que os direitos materiais (REsp 1.038.607/SP, rel. ministro Massami Uyeda).
Com base nos ensinamentos de Donati, Pedro Alvim vai nos lembrar das três funções desse instituto sui generis, que é a sub-rogação:
“[...] a instituição da sub-rogação legal do segurador nos direitos do segurado contra o terceiro responsável é fruto de uma política legislativa que, eliminando a locupletação do segurado em salvaguarda do princípio indenitário, evita também que o terceiro se exonere da tutela do princípio da responsabilidade; por outro lado, sob o duplo aspecto da diminuição do prêmio e da maior garantia coletiva, afasta-se o enriquecimento indébito do segurador.
Em outras palavras, no seguro a sub-rogação existe por três razões: evitar que o segurado seja indenizado duas vezes, não liberar o causador do dano — que sem isso se veria livre pela precaução de sua vítima — e salvaguardar o fundo do mútuo.
Aqui realmente não cabe a máxima romana: aquele que recebe o bônus tem de suportar o ônus; a seguradora já o suportou no momento imediatamente anterior, ao pagar a indenização por risco que a conduta de terceiro concretizou.
Se também fosse levada aos deveres surgidos da vontade exclusiva do segurado, haveria uma espécie de bis in idem dos encargos; e essa sub-rogação legal, junto com o direito de regresso que acarreta, acabaria desviada dos contornos jurídicos da origem, os quais certamente não se identificam com as do instrumento por meio do qual o segurado se obriga diante dum terceiro. Afinal, não pode ele dispor daquele direito cujo exercício não lhe caberia mais, uma vez que a sub-rogação, retirando-lhe o interesse em receber a compensação dos prejuízos daquele que os causou e fazendo-o nascer à seguradora, que virtualmente já o detinha e depois atualmente passou a poder exercê-lo, mudaria bem o enfoque da dinâmica reparatória.
Por isso é uma substituição que deve ser sempre entendida em termos. Nunca literalmente.
Expressamente o art. 786 determina que ao pagar a indenização a seguradora se sub-rogará, observados os limites do valor respectivo, “nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”.
Com exceção do valor, não se fala em restrições e deveres, apenas em direitos e ações. Da premissa de que a lei não emprega palavras inúteis, nem deixaria de mencionar as essenciais, juntando a isso uma interpretação teleológica da sub-rogação, conclui-se que o legislador resguardou, para a seguradora que paga a indenização, o direito de exigir o ressarcimento integral daquele valor, desvinculado de quaisquer dificuldades por ela não aceitas de forma livre e desimpedida. Tanto é que teve o cuidado de ratificar o sentido do caput no texto do § 2º: É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.
Noutras palavras: nenhum ônus ou dever será transmitido à seguradora sub-rogada. Filtrando ainda mais a ideia, nenhuma condição inibidora do exercício do direito contra o causador do dano é oponível a ela. Sendo a sub-rogação um instituto que busca principalmente evitar a impunidade do causador do ilícito, deve sempre ser interpretada em benefício do pagante, e não do terceiro por quem ele paga.
Eis um exemplo: no contexto internacional da compra e venda, num caso em que o transportador marítimo devolve, ao fim de uma viagem, inteiramente variadas as mercadorias que lhe confiaram, é comum e quase certo que o dono delas seja indenizado por alguma seguradora; tão comum e ainda mais certo é que, em seguida, esta venha a buscar o ressarcimento em regresso da empresa que as transportou mal. Em contratos do gênero, de adesão aliás, costuma existir uma cláusula que em tese obriga os aderentes a resolver suas pendências em câmaras de arbitragem no exterior. Pois bem: essa cláusula é perfeitamente ineficaz em relação à seguradora.
Isso porque, por versar sobre aspectos procedimentais e com personalíssima obrigação de fazer, a disposição contratual não pode, mediante imotivadas ampliações interpretativas, projetar efeitos para além da figura do segurado, que dele fez parte. Não devem nunca ultrapassar a sub-rogação, se com seu conteúdo a seguradora não houver anuído de forma expressa, contra o risco dum impedimento fatal, tácito e abusivo ao exercício do direito dela.
A sub-rogação originária do pagamento da indenização de seguro, embora especial, é maior que a do art. 346 do Código Civil, que é geral e alcança mais hipóteses. Também nascida da lei, mas em virtude do contrato de seguro, acaba ganhando maior força em virtude de uma natureza diferenciada, sensível e eminentemente social.
Por isso também que não se admite a transferência do que não seja restrito aos aspectos materiais do crédito.
O equívoco talvez ocorra por frequentemente a confundirem com certo tipo de cessão de crédito. Sua condição é, porém, ao mesmo tempo, menor e maior que a da cessão de crédito. Menor porque específica; maior porque mais exigente e alvo de proteção. No mesmo sentido do que aqui se defende, eis a doutrina de peso: posição clássica, não só do STJ, mas de Pontes de Miranda, J. M. de Carvalho Santos, Clóvis Beviláqua, Arruda Alvim.
Em princípio, a lei não teria motivo para criar dois institutos a fim de regular a mesma situação. Nem os dois se confundem. Cessão de crédito é venda; sub-rogação é efeito do adimplemento da dívida. Cessão de crédito transmite o valor com todos os encargos que o cercam; sub-rogação só transmite o direito em sua porção material. Cessão de crédito pode passar muito além do valor pago; sub-rogação restringe-se a ele.
Como exposta pela boa e velha doutrina e amparada pela jurisprudência perene, a sub-rogação é, no dizer dos italianos, “tipo giuridico completo e non controverso”, causando estranheza o ressurgimento de discussões a esse respeito, com base na decisão SEC 14.930-EX, que não é precedente e é muito citada, pouco compreendida e raramente lida.
Mais do que uma certeza legal, essa transferência se funda em alguns dos mais princípios vetores do Direito: a proporcionalidade, a razoabilidade, a equidade.
Pensar em transmitir obrigações pactuadas pelo segurado é errado, porque esvazia a dignidade da sub-rogação e produz efeitos negativos sobre o ressarcimento em regresso. Não é exagero afirmar que poderá beneficiar o autor do ato ilícito. E isso, quer parecer, é tão ou mais grave do que prejudicar a seguradora. Seria virar do avesso a sub-rogação.
Caso se carregasse o instituto com vícios dos quais por sua própria natureza ele se mostra liberto, o ressarcimento ver-se-ia inibido, castigado, obliterado; e sabemos todos quão importante ele é para a defesa do mútuo e o triunfo do bem comum.
Sub-rogação e regresso são basicamente dois estágios vitais do seguro. Pelas consequências que advêm da sua ligação direta com as atividades do corpo empresarial, por sua localização no coração do prêmio — capaz de aumentá-lo ou diminui-lo, aos movimentos da sístole e da diástole, a orientar a circulação econômica —, ambos se mostram fundamentais para manter o bem-estar da sociedade.
É desta maneira, punindo o culpado e honrando o princípio indenitário, que a prosperidade do ressarcimento renova aquele fundo primevo, o idílio matinal dos contratos, sob o qual a seguradora assumiu os riscos do segurado, proporcionando-lhe o ambiente adequado para respirar com alívio; pelo repetido retorno à condição primitiva, esse reparo, que a simples natureza das coisas sugere como correto e nada menos que natural, umedece o solo fértil dos negócios e faz reflorescer toda a confiança no ciclo, que o ilícito abalou. O exercício do regresso é, por conta disso, o fim e o começo; é a eterna primavera do seguro.
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