Ninguém mais dúvida que um sistema de insolvência seguro e estruturado para responder as demandas da atividade empresarial é essencial ao fortalecimento da economia de um país. Nesse espectro, diante da incapacidade do decreto lei 7661/45 em permitir a reestruturação daquelas, ou mesmo satisfazer, ainda que parcialmente, os interesses dos credores na falência, logo no início de sua vigência, se soube que seria absolutamente necessário modificar os rumos tomados. Depois de décadas, mas neste diapasão, o Ministro da Justiça brasileiro convocou uma comissão para elaborar um projeto de lei que substituísse todo o diploma citado. Assim, na década de 1990, fora apresentado a Câmara dos Deputados, o projeto de lei ordinária Federal 4.376 que, após nada menos de 10 (dez anos) de tramitação chegou ao Senado sob o n 71/03. Nesta última casa, o projeto foi alterado retornando, assim, àquela, onde deliberado, terminou por ser sancionado pelo Presidente de República, e assim promulgada a Lei Ordinária Federal n.11.101/2005. Que reste claro: a LRJF foi um divisor de águas na história do direito empresarial nacional.
A mudança foi paradigmática. Inspirados na legislação norte americana, foram sufragados 12 (doze) princípios1 fundantes: 1) o da preservação da empresa; 2) o da separação dos conceitos; 3) o da recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4) o da retirada do mercado de sociedades e empresários não recuperáveis; 5) o da proteção aos trabalhadores; 6) o da redução do custo crédito no Brasil; 7) o da celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8) o da segurança jurídica; 9) o da participação ativa dos credores; 10) o da maximização do valor dos ativos do falido; 11) o da desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 12) o do rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Um bem elaborado e sistematizado projeto em resposta as demandas do passado. Um elogiável em que pese imperfeito trabalho, verdadeiro arcabouço lógico jurídico que deveria acompanhar a atividade de todos os operadores do direito e mesmo, o legislador reformador.
Ocorre, porém, que passados 15 (quinze) anos, muito precisava avançar. Com a construção diária do direito, sobretudo por nossas cortes, e ainda em se considerando a chamada “agenda econômica do país” (mormente o que tangencia a construção de um ambiente econômico mais salutar para retomada de investimentos e geração de renda), restou evidente o surgimento de novas necessidades oriundas de novas demandas bem como de soluções mais eficiente para as antigas. Com o passar do tempo, por exemplo, ficou claro que o esperado equilíbrio entre credores e devedores na recuperação judicial não fora alcançado a contento. Eis, exatamente, o contexto que acompanha a reforma da atual Lei de Recuperação Judicial e Falência. Na busca de respostas aos problemas citados entre outros, o Deputado Hugo Leal apresentou na Câmara dos Deputados o PL 6.229/05. Durante sua tramitação fora realizadas diversas emendas, e para o objeto deste artigo, façamos o necessário corte metodológico nos atentando ao proposto pelo Deputado Alceu Moreira. O projeto chegou ao Senado Federal sob o 44.58/20 devendo ser votado em breve.
Desse modo, com vistas a modificação do regime jurídico vivenciado por produtores e sociedades empresárias rurais foram propostas alterações aos artigos 48; 70-A, 72 da lei 11.101/05 bem como ao art. 11 da lei 8289/94. Neste trabalho, nos ateremos a esta última, sendo que nos próximos, as demais normas serão analisadas.
Feita essa breve, mas necessária introdução, primeiramente, devemos contextualizar o leitor acerca do momento histórico vivido pelo produtor rural (aqui entendido como pessoa física que exercer atividade econômica rural), que atravessa crise financeira, hoje. Durante muito tempo, diante da lacuna legal, os tribunais do país se dividiram acerca da legitimidade daquele em ajuizar ação de recuperação judicial. De um lado, alguns entendiam que só aqueles que organizassem sua atividade rural em sociedade empresarial o poderiam, e para tanto, necessário que o interessado tivesse inscrito no Registro de Pessoas Jurídica há, no mínimo 2 (dois) anos2. Essa corrente entende que tal inscrição tem caráter constitutivo, ou seja, só se é empresário, após o ato. Em outra mão, havia os que entendiam que o produtor rural, por ter regime especial (art. 971 do CC), seria empresário ainda que não se inscrevesse no citado Registro. Alegam, em síntese, que o registro teria natureza jurídica meramente declaratória, ou seja, não criaria novo status, apenas reconhecendo fatos já existentes. Em outubro de 2019, a 4ª turma do STJ em julgamento histórico, se filiou a segunda corrente no REsp 1800032/MT, e mais recentemente no REsp 1.834.452/MT e mais recentemente, a Terceira Turma no REsp 1.811.953/MT. Diante da controvérsia gerada pela ausência de clareza do texto legal, o Poder Judiciário através de nossa Alta corte firmou interpretação legitima trazendo segurança a todos os players. Como cediço: o mercado se amolda aos fatos, pretendendo apenas que haja segurança jurídica para possibilitar a tomada de decisões com previsibilidade.
Por óbvio, que ao esclarecer a possibilidade de acesso do produtor rural ao mecanismo da Recuperação Judicial (e assim novação das obrigações contraídas), o Poder Judiciário desagradou parte dos integrantes do mercado, que se socorriam de algumas parcas decisões judiciais para vedar o acesso daquele ao soerguimento de sua atividade. Tanto é assim, que se percebe após o julgamento citado, a maciça divulgação de uma plêiade de material jornalístico nos principais veículos de comunicação do país; artigo; lives e eventos, a tentar a espraiar o interesse dos vencidos pela opinião pública3. O bem orquestrado trabalho pretende alardear um assustador panorama da Recuperação Judicial, e assim, o encarecimento do crédito rural. A consequência seria desastrosa a todos: se se encarece o crédito rural, se encareceria o alimento na mesa do brasileiro, argumento que sozinho, seria apto a arrebanhar um sem fim de simpatizantes desatento a verdades dos fatos. A eloquência é tamanha que há quem, em discurso inválido e generalizante, afirme, inclusive, que toda Recuperação Judicial de produtor rural seria fraude uma vez que o agronegócio nacional se encontra em franca expansão.
Nesse sentido, se percebe que as emendas apresentadas pelo nobre deputado, em que pese oportunizarem expressamente o acesso a RJ (novel redação do art.70), e ainda facilitar a comprovação de sua atividade (art.70-A), em verdade, em uma análise integrada das normas, se constituem obstáculo desarrazoável ao acesso efetivo ao instrumento. Explicamos melhor: em que pese ter previsão expressa acerca da possibilidade da recuperação judicial para o produtor rural (o que já vinha sendo autorizado pela imensa maioria dos tribunais estaduais, e Terceira e Quarta turmas de Direito Civil do STJ), o conteúdo da norma terminou por ser esvaziada já que no projeto, sem qualquer razão jurídica razoável, foram retirados do processo de soerguimento, títulos rurais importantíssimos. Eis o exato contexto da norma do art. 11 da lei ordinária Federal 8.929/94, que (se o projeto for aprovado) passará a ter a seguinte redação:
Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e garantias cedulares vinculados a` Ce'dula de Produto Rural – CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou ainda, representativa de operação de troca por insumos (“barter”), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto.
Parágrafo único. Caberá ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento definir quais atos e eventos se caracterizam como caso fortuito ou força maior para os efeitos deste artigo”.(NR)
Primeiramente, é necessário apontar que o legislador tem discricionariedade para sistematizar a lei, mas, a boa técnica legislativa sugere que tenha coerência técnica ao fazê-lo. Nesse sentido, Gilmar Mendes e Nestor José Forster Junior4 elucidam que para alcançar aquele desiderato, algumas regras devem ser observadas como é o caso de: 1) matérias que guardem afinidade objetiva devem ser tratadas em um mesmo contexto e 2) institutos diversos devem ser tratados separadamente. Assim, quando o legislador pretendeu retirar um crédito do rol dos não submetidos a recuperação judicial, deveria incluir a norma no rol do art. 49 da lei ordinária Federal 11.205/05, espaço adequado para o ponto como fizera o legislador de 2005. Assim, se permitiria que o intérprete pudesse conferir caráter sistemático, harmônico e unitário às regras de mesma natureza, reduzindo a judicialização do tema.
Segundo: calha esclarecer que diversamente do previsto no caput do artigo, o que se sujeita ao processo de recuperação judicial são os créditos existentes, vencidos ou vincendos, sendo estes garantidos ou não. É a faculdade do credor de exigir o cumprimento da prestação do devedor o objeto do processo de soerguimento e não a garantia em si. O erro linguístico é evidente e como tal, causa insegurança.
Terceiro: como em outros dispositivos deste PL, se verifica aqui, mais uma tentativa de retirada de créditos do processo recuperacional excepcionando a regra fundamente do sistema de insolvência vigente sem, no entanto, qualquer critério jurídico que a justificasse. Não há lógica jurídica a fundamentar a exclusão do crédito apenas por ele se materializar na Cédula de Produto Rural física (tenha ele sido antecipado total ou parcialmente ou mesmo representativo da operação de barter) como se demonstrará a seguir.
Aqui, se faz necessário discorrer sobre esse vital instrumento de financiamento da atividade rural sobretudo para os que não lidam contumazmente com a matéria. Diante da impossibilidade de o Estado brasileiro continuar financiando a atividade rural nos termos que fizera no passado, na década de 1990, fora introduzido no ordenamento nacional, por meio da lei ordinária Federal 8929/94, um título de crédito referenciado a produtos do agronegócio: a CÉDULA DE PRODUTO RURAL, ou CPR. Segundo o professor Fábio Ulhoa Coelho5, estes são títulos que documentam direitos cujo objeto, seria direta ou indiretamente, uma commodity agropecuária. Uma de suas mais importantes caraterísticas é, justamente, sua extrema versatilidade pois se presta a “aquisição de insumos, financiamento da produção junto a trading companies ou instituições financeiras, prestação de garantia, instrumentalização da venda do produto agrícola ou pecuário, investimento especulativo e até documento assecuratório do domínio ou da posse de commodities”. Assim, resta claro que a CPR é meio que instrumentaliza diversas obrigações, não se tratando de um contrato pura e simplesmente.
A CPR física (espécie tal qual a CPR financeira) é, por definição legal,6 um título líquido e certo em que o emitente se compromete, a entregar o produto na quantidade e qualidade prevista no instrumento. Ela pode ser emitida em razão de qualquer negócio jurídico como é o caso de compra e venda de produto7 ; outorga de garantia8; ou operação de barter 9, para citar algumas. Desse modo, em todas as suas possibilidades, independente do negócio jurídico que lhe deu origem, o instrumento materializa um compromisso assumido pelo devedor de que, no prazo e do modo estabelecidos, entregará determinado produto ao credor.
Oras, se é produto, necessariamente, é uma coisa móvel e de acordo com o artigo 1267 do CC, a propriedade da coisa móvel é transferida com a tradição. Desse modo, só podemos concluir que o devedor entrega ao credor produto de sua propriedade. Repitamos para que reste sólido: apenas com a tradição, é que o credor passa a ser titular do direito de propriedade do produto. Assim sendo, de antemão, já se percebe que diversamente do consignado pelo legislador, quando o produtor rural entrega o produto, não se trata de mera restituição10, e sim, verdadeira, transferência do seu patrimônio para seu credor em adimplemento uma obrigação contraída. Nesse diapasão, temos que se a coisa móvel é de propriedade do produtor e este se liga ao seu credor por uma relação creditícia, não há razão lógico jurídica para retirar tal crédito da recuperação judicial. Se assim o faz, que se esclareça: se trata de opção política do legislador, que inclusive, colide frontalmente com o sistema codificado civil (como retro evidenciado) bem como os próprios princípios da reestruturação empresarial no país anteriormente citados. Ao escolher retirar o crédito da CPR física genericamente, o legislador pretende proteger os financiadores do agro: sejam eles bancos públicos ou privados, tradings, revendas, instituições financeiras e mesmo outras sociedades rurais e produtores (que terminam por também fomentar outros membros da cadeia produtiva), instituindo obstáculo a impossibilitar que produtores e sociedades rurais recuperáveis se recuperem, o que se frisa: não aconteceu com qualquer outra categoria econômica.
Ao fim, de tudo o aqui exposto, temos que a reforma da Lei de Recuperação e Falência é necessária sim, mas os aspectos que tangenciam o produtor rural precisam ser revistos pois criam, mais uma vez, obstáculos a seu soerguimento como em nenhuma outra categoria. Como visto, não há racionalidade lógico jurídica para se retirar da RJ um crédito tão importante como é o inscrito nas CPRs físicas. Aliás, há um movimento sistêmico com vistas a retirar o direito do produtor soerguer há muito inaugurado e bem orquestrado na lei 13.986/2011 (lei do agro). Inclusive, do modo como foi previsto, se criou uma incongruência sistêmica: se a CPR materializar uma garantia real como o penhor de safra e o crédito não entrar na RJ, como este será adimplido? Se esse mesmo produtor der outra garantia real que não commodity agrícola para o mesmo credor e na mesma oportunidade, então, entraria? Qual a justificativa para essa diferenciação? Outro ponto importante: se o patrimônio pessoal do produtor rural responde por suas dívidas empresariais, e este tiver sua RJ deferida, como ficarão esses débitos? Como serão pagos? Não o serão? E no caso de falência, estão a esta submetidos mesmo não entrando em recuperação judicial? A solução imposta no projeto não resolve os efeitos da escolha. Se o legislador, contrariando os princípios da RJ, escolheu privilegiar financiadores, ao menos, deveria ter trazido solução adequada e harmônica para os efeitos de sua opção, o que não foi feito. Aguardemos assim, que no Senado, a regra seja modificada.
___________
1- Disponível aqui.
2- Antes do final do julgamento do REsp1800032-MT, tive a oportunidade de escrever artigo sobre o tema, e para os interessados, sugiro a consulta ao mesmo: A recuperação judicial do empresário rural pessoa física .
3- Comportamento, que limitado aos parâmetros éticos, é ordinário e até mesmo: salutar para uma toda a democracia. Assim sendo, não se trata aqui de uma crítica sobre a prática a em si, mas mera constatação de fatos sem qualquer juízo de valor.
4- MENDES, Gilmar Ferreira Forster Júnior, Nestor José. Manual de Redação da Presidência da República.2. ed. Rev. e atual. Brasília. Presidência da República, 2002.
5- COELHO, Fábio Ulhoa. Títulos do Agronegócio in Direito do Agronegócio. Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: 2011. Quartier Latin.
6- Art. 1 da lei 8929/94
7- Ex: pecuarista vende ao frigorífico determinada quantidade de bois a ser entregue em data certa, emitindo assim a CPR física em favor do seu credor.
8- Ex: sojicultor contrai mútuo em banco e oferta como garantia (penhor) determinada quantidade de sacas de soja, emitindo assim CPR física em favor do seu credor.
9- Ex: produtor de algodão adquire adubo de uma revenda, ao invés de pagar em dinheiro, se obriga a entregar determinada quantidade de toneladas de algodão assim que colher, emitindo assim CPR física em favor do seu credor.
10- Segundo o dicionário Aurélio 8 edição, Editora Positivo: Res.ti.tuir. (Latin Restituere 1C vtd e tdi). 1 Entregar (o que se tinha por empréstimo ou indevidamente); devolver, repor. 2. Fazer voltar, retornar.. 3. Compensar, ressarcir. Tdc. 4. Enviar ou encaminhar ao lugar de origem. (C.:42.)
___________
*Samantha Rondon Gahyva é social do escritório Gahyva e Maldonado Sociedade de Advogados, especializada em Agronegócio e insolvência. É administradora judicial e integrante do Centro de Mulheres na Reestruturação, CMR.