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Retrospectiva 2006: Justiça confirma importância da liberdade de imprensa

O ano de 2006 manteve a tendência de altos índices de ações restritivas às divulgações da mídia, porém o fator positivo em tudo isso é que, ao que verificamos, a maioria esmagadora das reclamações judiciais, visando obstaculizar a publicação de notícias, ou foram de plano rejeitadas em primeiras instâncias ou, quando aceitas em primeiro grau, firmemente rechaçadas em instâncias superiores.

18/12/2006


Retrospectiva 2006: Justiça confirma importância da liberdade de imprensa

Lourival J. Santos*

O ano de 2006 manteve a tendência de altos índices de ações restritivas às divulgações da mídia, porém o fator positivo em tudo isso é que, ao que verificamos, a maioria esmagadora das reclamações judiciais, visando obstaculizar a publicação de notícias, ou foram de plano rejeitadas em primeiras instâncias ou, quando aceitas em primeiro grau, firmemente rechaçadas em instâncias superiores.

Foi grande o número de casos judiciais distribuídos, em grande parte, por pessoas de projeção pública, discutindo divulgações que lhes fossem inconvenientes ou reveladoras de fatos do seu desagrado. Muitos casos, tanto na área civil, quanto na criminal, se encontram em trâmite normal, porém, nenhum pedido envolvendo cerceamento a veículo de comunicação, pelo menos ao que pudemos constatar e naqueles em que a defesa nos coube, teve êxito em seu intento, o que é extremamente positivo para o fortalecimento das instituições democráticas e para o estado de direito.

Injusto será desperceber, no caso, a postura firme do Judiciário que, embora criticável em algumas decisões subjetivas e até passionais, como um todo, esteve atento aos princípios e valores constitucionais, pelos quais o emprego da censura prévia, sob qualquer aspecto, é inadmissível.

Para ilustrar, permitimo-nos citar excerto pinçado de acórdão em que foi relator o ministro Celso de Mello, o qual, muito embora tenha sido proferido em 2005, serve como parâmetro seguro da posição da Suprema Corte, por um de seus mais abalizados representantes, sobre a liberdade de expressão sem restrições: “Essa garantia básica da liberdade de expressão do pensamento (...) representa, em seu próprio e essencial significado, um dos fundamentos em que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento”.1

No campo do direito eleitoral, no qual os processos triplicaram em relação à eleição anterior, a postura do Judiciário também foi irrepreensível, afastando pedidos de publicação de respostas infundados e não estruturados por provas convincentes, frustrando as inúmeras tentativas de utilização, por candidatos e partidos políticos, dos veículos midiáticos como palanques eleitorais. Alguns casos tiveram de ser discutidos no TSE, no qual a presença do ministro Marco Aurélio Mello, presidente da Corte e um dos mais aguerridos defensores da liberdade de expressão no país, contribuiu decisivamente para a cuidadosa observância e rigorosa aplicação dos princípios constitucionais garantidores da livre manifestação do pensamento e da informação.

O DANO MORAL E A IMPRENSA

O dano moral, como de praxe, capitaneou em 2006, assim como vinha ocorrendo em anos anteriores, discussões no campo da responsabilidade civil na imprensa, e a mídia, por sua vez, apresentou-se como o terreno mais fértil para os pedidos de indenização dessa natureza.

No tocante às demandas nesse campo, a conclusão a que se chega é que, no ano de 2006, foi perceptível o amadurecimento nas interpretações das questões sobre indenizações extrapatrimoniais, conseqüência natural do transcurso de quase duas décadas da promulgação da Carta Magna, dentro da qual, como se sabe, o dano moral, pela primeira vez, foi prestigiado com raro destaque. As condenações nesse terreno, salvo exceções, tornaram-se mais equilibradas em relação a valores, o que era raro em períodos anteriores, e mesmo os pedidos são menos exagerados.

Não mais são discutidos com tanto vigor, aspectos, que até bem pouco eram fortemente debatidos, a exemplo do critério do “punitive damage” como desestímulo ao cometimento de atos puníveis, além de fator determinante de condenações em altas verbas. Hoje prevalece o critério da razoabilidade e proporcionalidade no arbitramento das indenizações, tanto que o Judiciário, pelo Superior Tribunal de Justiça, tomou para si a incumbência de exercer o controle do valor das indenizações por dano moral, para evitar abusos e distorções resultantes de interpretações e julgamentos subjetivos.2

É forte também o entendimento, com o qual comungamos, de que o caráter punitivo do dano moral não é consentâneo com o sistema legal brasileiro, onde a função de punir e de aplicar penas sai do campo do interesse privado da vítima, para refletir-se no interesse do Estado. Assim, a aplicação de pena punitiva, sem a existência de norma legal que a preveja e a tipifique adequadamente, deixaria a imposição da pena à mercê de critérios eminentemente subjetivos, o que não seria compatível com o sistema legal pátrio, o qual, segundo o jurista Humberto Theodoro Junior, brilhante defensor dessa tese, “há muito tempo separou, completamente, a responsabilidade civil da responsabilidade penal”.3

Também são cada vez mais escassas as discussões sobre o chamado dano à imagem, como se este se constituísse numa espécie de dano especial, além dos danos moral e material compreendidos na responsabilidade civil. Tais discussões foram geradas pela dúbia redação do inciso V, do artigo 5° da Constituição, que o inciso X, do mesmo artigo, corrigiu, porém sem evitar que intérpretes apressados discutissem com veemência a tese da terceira espécie de dano, que obviamente não existe.

Já não domina mais o entendimento, a nosso ver injustificável, de que a utilização da imagem de per si determine a presença do dano moral objetivo, sem a efetiva prova das ocorrências do ato ilícito, da lesão sofrida no campo da intimidade e do nexo causal entre o ato comissivo ou omissivo do agente e o prejuízo sofrido pela vítima, como convém ao caso.

Por fim, nem se discute que a utilização da imagem, mesmo não autorizada, poderá ser totalmente lícita, no caso das ilustrações de matérias jornalísticas.

OS PODERES EXECUTIVO E LEGISLATIVO E A IMPRENSA LIVRE

Nessa área, como vem ocorrendo nos últimos anos, preocupam as constantes investidas dos poderes Executivo e Legislativo contra a liberdade de imprensa.

Foram emblemáticas as discussões sobre o Projeto de Lei 3.985/04, cujo objetivo era a criação do Conselho Federal de Jornalismo. O texto do anteprojeto, apresentado pelo Executivo para definir a competência do Conselho, constituiu exemplo claro da intenção repressora do governo federal à liberdade do exercício do jornalismo e da prestação de informação no país, ao definir a competência do Conselho para: “exercer a fiscalização do exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo”.

Essa vocação cerceadora da liberdade de expressão transpareceu igualmente no Projeto de Lei 79/04, regulador da profissão de jornalista, vetado pelo Presidente da República em meados de 2006, após forte desaprovação de grandes entidades ligadas à mídia, de empresas do ramo e de jornalistas, muitos deles renomados profissionais, todos conscientes da inconstitucionalidade do PL e da sua nocividade, à classe e à sociedade, caso fosse sancionado.

Sugeria o Projeto a criação de inaceitável reserva de mercado de trabalho, pela qual considerava absolutamente privativas de jornalistas, sem execeção, todas as atividades desenvolvidas dentro da mídia impressa e eletrônica, incluindo rádio, televisão e internet, com o que agredia princípios constitucionais protetores dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art.1°, inciso IV, c/c o art. 5°, inciso VIII, da Constituição).

Como tivemos a oportunidade de nos manifestar, em parecer que emitimos na qualidade de diretor jurídico da Aner (Associação Nacional de Editores de Revistas) e representando, também, as mais importantes entidades da mídia em geral: “... a liberdade do cidadão, independentemente do seu conhecimento técnico e cultural, estaria cerceada para os meios de comunicação em geral, apenas e tão somente pela eventual ausência de um diploma de jornalista, que funcionaria, no caso, como salvo-conduto para a expressão cultural de qualquer natureza”.4

O veto presidencial alcançado foi mais que oportuno, pois tramita no Judiciário mais de uma ação discutindo a inconstitucionalidade da obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da função. Uma delas, que tem a natureza de ação civil pública, encontra-se em grau de recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal.5

Em suma, no campo político preocupam as constantes manifestações de autoridades criticando a liberdade de imprensa, como se ela representasse um risco para a segurança da sociedade, quando se sabe que o direito de informação e de crítica, ainda que exercido de forma ostensiva, deverá ser preservado como um dos valores básicos da própria sociedade democrática. Rui Barbosa, um dos mais brilhantes defensores da liberdade de imprensa do País, ensinava que: “Não é a imprensa que faz a opinião, mas a opinião que faz a imprensa. Toda a vez que o governo se arma de restrições contra esta, é que menos confia naquela”.6

Obviamente que o cometimento de abusos pela imprensa em nome da liberdade de expressão deverão ser punidos pelo Estado, entretanto o que não se admite é que se reprima a liberdade de crítica ou da exposição de fatos e de idéias, sob a justificativa de se evitar o cometimento de abusos. Isto configura ato de censura, inaceitável dentro do Estado Democrático de Direito.

Ainda sobre esse tema vale destacar um Projeto de Lei do Senado Federal 257/2005, em trâmite no Congresso Nacional, com o objetivo de alterar a Lei de Imprensa em vigor:

“Art. 1º - O art. 12 da Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 12 - ....................


§ 2º- Os meios de comunicação e divulgação referidos no

§ 1º deverão, previamente à publicação de notícia que impute a prática de condutas tipificadas como ilícito administrativo, civil, penal ou com repercussão negativa sobre a dignidade de alguém:


I- proceder à criteriosa investigação de sua veracidade, bem como da autenticidade dos documentos que porventura lhes sirvam de base;


II- levá-la ao conhecimento daqueles a quem ela se refira, dando oportunidade de manifestação, em tempo hábil antes de sua veiculação”.7

Isto significa que o legislador pretende amordaçar a imprensa, obrigando-a a realizar investigações criteriosas (expressão subjetiva), e ainda submeter às pessoas envolvidas em futuras matérias jornalísticas a apreciação prévia do que porventura poderá ser publicado. É como se pretendesse que todas as notícias que resultaram no impeachment do Presidente da República em 1992, somente pudessem ter sido publicadas depois de analisadas e aprovadas previamente por ele. Ou, que todas as CPIs e escândalos ainda não julgados definitivamente fossem divulgados pela mídia após a aprovação do texto pelos envolvidos nas falcatruas, ou da conclusão das CPIs. Isto seria o fim da imprensa no País e o grande golpe contra o Estado Democrático de Direito.

Para finalizar, entendemos que o ano de 2006, ao mesmo tempo em que foi pródigo em discussões sobre a liberdade de expressão e de comunicação, o que é altamente construtivo e democrático, nos deixa como legado, certa preocupação pelas vocações paternalistas, restritivas à livre manifestação da palavra e da exposição de idéias, fatos e pensamentos, que ainda teimam em perdurar no País, apesar da democracia.

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1córdão do STF, Petição nº 3486-4 – Brasília/DF – agosto de 2005.

2TJ, 4ª Turma, R.Especial nº 265.133/RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, c.c 19109/2000.

3Humberto Theodoro Júnior, “Dano Moral”, Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 62. – Contra a aplicação do caráter punitivo ao dano moral, por representar, segundo o jurista, desrespeito à tipicidade e legalidade da pena.

4Opinião legal sobre a inconstitucionalidade do Projeto de Lei Complementar nº 079/04 – publicado no Conjur.

5Ação Cautelar 1406/9 em RE interposto c/ Acórdão do TRF, 3ª Região – Apelação 2001.61.00.025946/3 – Relator Min. Gilmar Mendes.

6Rui Barbosa, “Obras Completas”, Vol. XX, Tomo IV, p. 142, citado no “Dicionário de Conceitos e Pensamentos”, de Luiz Rezende de Andrade Ribeiro, Edart, 1967, p. 188.

7Projeto de Lei do Senado Federal nº 257, de 2005.

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* Advogado do escritório Lourival J. Santos - Advogados









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