Tereza carregou fardo penoso, poucos machos agüentariam com o peso; ela agüentou e foi em frente, ninguém a viu se queixando, pedindo piedade; se houve quem — rara vez — a ajudasse, assim agiu por dever de amizade, jamais por frouxidão da moça atrevida; onde estivesse afugentava a tristeza. Da desgraça fez pouco caso, meu irmão, para Tereza só a alegria tinha valor. Quer saber se Tereza era de ferro, de aço blindado o coração? Jorge Amado1
1. UMA HISTÓRIA DE LUTAS VELADAS E MORDAÇAS NATURALIZADAS
“Peste, fome e guerra, morte e amor, a vida de Tereza Batista é uma história de cordel”2: tal e qual a epígrafe do romance de Jorge Amado já anuncia, a mulher representada pela personagem é uma guerreira. Enfrenta sua infância roubada, supera violências das mais variadas espécies, vence na batalha constante e cotidiana da desigualdade de gênero arraigada em nossa sociedade e, por fim, após liderar uma greve das minorias e vencer uma epidemia que se alastrava (seria uma premonição de Jorge Amado?), ainda encontra forças para exercer o seu lado feminino e o seu protagonismo social.
Há várias Terezas em nossa sociedade. Convivem em desigualdade de oportunidades com seus parceiros do sexo masculino e são abafadas pelo negacionismo histórico, que, de tão intrínseco, chega a não divulgar tantas heroínas em nossos livros de história3. Nas proximidades de uma nova eleição, e em tempos de “novo normal”, essa observação nunca foi tão necessária.
Em verdade, a guerreira do romance de Jorge Amado, passado no recôncavo baiano do início do século XX, é um estereótipo atemporal. O cenário de lutas, preconceitos, estigmatização e banimento do protagonismo social, é um fenômeno que, ainda nos dias atuais, se repete cotidianamente. As diversas Terezas transitam entre posições sociais, profissionais, religiosas e familiares, cujo registro secular faz parte da estrutura edificante e paralisante de nossa cultura. Mais recentemente, assim como a heroína baiana, nossas heroínas veladas lutam contra a peste viral silenciosa, cujos efeitos se espraiam para além dos prejuízos biológicos, e colocam na mulher mais uma missão multifacetada. As Terezas desses tempos de “novo normal” ganham mais um fardo infindável: o de se adaptar a uma rotina sem intervalos ou empatia, coadunar o seu trabalho com a agenda sem férias ou respiros da promoção da harmonia familiar que lhe é imposta como papel, e, ainda, vencer a missão impossível de travar suas lutas cotidianas sem fazer alarde.
A cobrança de funções paradoxais da mulher não existe por acaso. Esse caráter multifacetado e dinâmico que é peculiar à psique feminina não dá margens à compaixão, ou à percepção do impossível. A fortaleza feminina, de todas as nossas Terezas, acaba sendo arduamente construída sobre tal característica. Justamente por se desdobrar em vários papeis desde a história mais remota, nós, Terezas do século XXI, adquirimos como ninguém um conhecimento ímpar acerca das características de cada membro de nosso Estado- Nação, em cada uma das suas múltiplas funções como cidadãos.
Também não por acaso, pesquisa realizada em 2011 pela Associação Brasileira de Engenheiros de Produção – ABEPRO, constatou que, analisando-se a percepção que os liderados possuem acerca da gestão feminina, destacaram-se as características consideradas femininas pelos teóricos, tais como “autenticidade, colaboração, otimismo, emoção, intuição, iniciativa, sensibilidade, flexibilidade e capacidade de persuasão”, o que justificaria a identificação com uma maior necessidade de oportunidade de participação feminina na gestão pública4.
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1 Trecho da obra “Tereza Batista cansada de guerra”, de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, p. 15.
2 Idem.
3 O projeto “As mina na história”, descrito como “um projeto de recuperação da memória de mulheres que transformaram o Brasil e o mundo”, cita vários exemplos de mulheres “esquecidas” dos livros de história. Indica o exemplo do trabalho da historiadora Ignez Sabino, que, descrevendo a trajetória de suas conterrâneas, as mulheres brasileiras, definiu o seu objetivo como “obscura historiadora” da seguinte forma:
“Eu quero ressuscitar, no presente, as mulheres do passado que jazem obscuras, devendo elas encher-nos de desvanecimento, por ver que bem raramente na humanidade se encontrará tanta aptidão cívica presa aos fastos da história”. CORREA e SILVA, Lalia. O “Panthéon Feminino” das Letras: os desafios das escritoras brasileiras do
século XIX. Disponível em https://asminanahistoria.com/2018/07/11/os-desafios-das-escritoras-brasileiras-do-seculo-xix/. Acesso em 02/07/20.
4 Cf. DE SOUSA, Priscila Felipe; SIQUEIRA, Elisabete Stradiotto; BINOTTO, Erlaine. LIDERANÇA FEMININA NA GESTÃO PÚBLICA: UM ESTUDO DE CASO DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. p. 11. Disponível em www.abepro.org.br/biblioteca/enegep2011_tn_stp_141_893_18429.pdf. Acesso em 11/07/20.
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