Migalhas de Peso

“Somos todas Terezas” - a (re) inclusão feminina e a igualdade de gênero na sociedade e na política

Há várias Terezas em nossa sociedade. Convivem em desigualdade de oportunidades com seus parceiros do sexo masculino e são abafadas pelo negacionismo histórico.

7/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Tereza carregou fardo penoso, poucos machos agüentariam com o peso; ela agüentou e foi em frente, ninguém a viu se queixando, pedindo piedade; se houve quem — rara vez — a ajudasse, assim agiu por dever de amizade, jamais por frouxidão da moça atrevida; onde estivesse afugentava a tristeza. Da desgraça fez pouco caso, meu irmão, para Tereza só a alegria tinha valor. Quer saber se Tereza era de ferro, de aço blindado o coração? Jorge Amado1

1. UMA HISTÓRIA DE LUTAS VELADAS E MORDAÇAS NATURALIZADAS

“Peste, fome e guerra, morte e amor, a vida de Tereza Batista é uma história de cordel”2: tal e qual a epígrafe do romance de Jorge Amado já anuncia, a mulher representada pela personagem é uma guerreira. Enfrenta sua infância roubada, supera violências das mais variadas espécies, vence na batalha constante e cotidiana da desigualdade de gênero arraigada em nossa sociedade e, por fim, após liderar uma greve das minorias e vencer uma epidemia que se alastrava (seria uma premonição de Jorge Amado?), ainda encontra forças para exercer o seu lado feminino e o seu protagonismo social.

Há várias Terezas em nossa sociedade. Convivem em desigualdade de oportunidades com seus parceiros do sexo masculino e são abafadas pelo negacionismo histórico, que, de tão intrínseco, chega a não divulgar tantas heroínas em nossos livros de história3. Nas proximidades de uma nova eleição, e em tempos de “novo normal”, essa observação nunca foi tão necessária.

Em verdade, a guerreira do romance de Jorge Amado, passado no recôncavo baiano do início do século XX, é um estereótipo atemporal. O cenário de lutas, preconceitos, estigmatização e banimento do protagonismo social, é um fenômeno que, ainda nos dias atuais, se repete cotidianamente. As diversas Terezas transitam entre posições sociais, profissionais, religiosas e familiares, cujo registro secular faz parte da estrutura edificante e paralisante de nossa cultura. Mais recentemente, assim como a heroína baiana, nossas heroínas veladas lutam contra a peste viral silenciosa, cujos efeitos se espraiam para além dos prejuízos biológicos, e colocam na mulher mais uma missão multifacetada. As Terezas desses tempos de “novo normal” ganham mais um fardo infindável: o de se adaptar a uma rotina sem intervalos ou empatia, coadunar o seu trabalho com a agenda sem férias ou respiros da promoção da harmonia familiar que lhe é imposta como papel, e, ainda, vencer a missão impossível de travar suas lutas cotidianas sem fazer alarde.

A cobrança de funções paradoxais da mulher não existe por acaso. Esse caráter multifacetado e dinâmico que é peculiar à psique feminina não dá margens à compaixão, ou à percepção do impossível. A fortaleza feminina, de todas as nossas Terezas, acaba sendo arduamente construída sobre tal característica. Justamente por se desdobrar em vários papeis desde a história mais remota, nós, Terezas do século XXI, adquirimos como ninguém um conhecimento ímpar acerca das características de cada membro de nosso Estado- Nação, em cada uma das suas múltiplas funções como cidadãos.

Também não por acaso, pesquisa realizada em 2011 pela Associação Brasileira de Engenheiros de Produção – ABEPRO, constatou que, analisando-se a percepção que os liderados possuem acerca da gestão feminina, destacaram-se as características consideradas femininas pelos teóricos, tais como “autenticidade, colaboração, otimismo, emoção, intuição, iniciativa, sensibilidade, flexibilidade e capacidade de persuasão”, o que justificaria a identificação com uma maior necessidade de oportunidade de participação feminina na gestão pública4.

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1 Trecho da obra “Tereza Batista cansada de guerra”, de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, p. 15.

2 Idem.

3 O projeto “As mina na história”, descrito como “um projeto de recuperação da memória de mulheres que transformaram o Brasil e o mundo”, cita vários exemplos de mulheres “esquecidas” dos livros de história. Indica o exemplo do trabalho da historiadora Ignez Sabino, que, descrevendo a trajetória de suas conterrâneas, as mulheres brasileiras, definiu o seu objetivo como “obscura historiadora” da seguinte forma:
“Eu quero ressuscitar, no presente, as mulheres do passado que jazem obscuras, devendo elas encher-nos de desvanecimento, por ver que bem raramente na humanidade se encontrará tanta aptidão cívica presa aos fastos da história”. CORREA e SILVA, Lalia. O “Panthéon Feminino” das Letras: os desafios das escritoras brasileiras do
século XIX. Disponível em https://asminanahistoria.com/2018/07/11/os-desafios-das-escritoras-brasileiras-do-seculo-xix/. Acesso em 02/07/20.

4 Cf. DE SOUSA, Priscila Felipe; SIQUEIRA, Elisabete Stradiotto; BINOTTO, Erlaine.  LIDERANÇA FEMININA NA GESTÃO PÚBLICA: UM ESTUDO DE CASO DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. p. 11. Disponível em www.abepro.org.br/biblioteca/enegep2011_tn_stp_141_893_18429.pdf. Acesso em 11/07/20.

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*Roberta Ferme Sivolella é juíza auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho. Juíza titular da 2ª vara do Trabalho do RJ. Primeiro membro feminino do Comitê Gestor Nacional do Sistema de Segurança do Poder Judiciário - CNJ. 

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