Migalhas de Peso

Respeito à privacidade, ontem, hoje e sempre...

A própria Constituição da República assinala a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem, a par da inviolabilidade da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e comunicações telefônicas (art. 5º, X e XII).

30/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

O Brasil, seguindo o compasso do mundo, vem progredindo no manejo e salvaguarda dos dados pessoais, estando desde setembro próximo passado sob os influxos da vigência parcial da lei federal 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD).

Nesse contexto, importa destacar que o dever legal quanto à guarda e proteção dos dados pessoais pelas entidades que lidam com usuários externos, sejam pessoas físicas ou jurídicas, não teve seu nascedouro apenas com o início de vigência da LGPD, certo sendo que tanto a Constituição Federal, quanto normas infraconstitucionais, já estatuíam dita obrigação, ainda que, com relação a essas últimas, de forma particularizada segundo marcos regulatórios específicos.

Para efeito de contexto, a própria Constituição da República assinala a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem, a par da inviolabilidade da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e comunicações telefônicas (art. 5º, X e XII), o que faz irrogando às mesmas o status de garantia fundamental.

Tais garantias, mais do que nunca, se mostram indispensáveis à proteção da dignidade dos sujeitos de direito, ante a propulsão das mídias digitais e dinamização dos meios de comunicação, potencializadores que são das interações interpessoais.

Aliás, com relação aos meios de comunicação, digno de nota que a universalização da telefonia fixa (STFC1) e a disseminação da telefonia móvel pessoal (SMP2) – mormente num país como o Brasil, que ostenta quantitativo de terminais móveis ativos superior ao de habitantes –, essa última aliada aos atrativos tecnológicos da comunicação multimídia (SMC3), trouxeram consigo níveis de interação nunca antes experimentados nestes trópicos, o que obviamente avulta a importância da salvaguarda dos dados pessoais dos seus milhões de usuários.

Com esse foco, ainda no que tange aos meios de comunicação, a legislação infraconstitucional editada desde o advento da Constituição Cidadã assinala que o intercâmbio dos dados pessoais apenas se mostra jurígeno quando feito sob prévia autorização do respectivo titular, sendo a ausência dessa passível de ser suprida tão somente via prévia e específica chancela jurisdicional.

À guisa de exceção, mediante requisição expressa e específica das autoridades investigativas (Ministério Público e Polícia Judiciária), para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Loquaz exemplo dessa tutela legal é extraído da lei federal 9.472, de 16/7/97 – Lei Geral de Telecomunicações (LGT) -, que em seus arts. 3º, VI e IX, 72, §§ 1º e 2º, e 94, § 1º4, de forma expressa e sistêmica, assinala o dever de guarda e proteção que compete às operadoras de telefonia quanto à privacidade dos dados pessoais dos seus respectivos usuários.

Assim, os dados pessoais de tais usuários (a exemplo de nome completo, CPF ou CNPJ/MF e endereço) apenas são passíveis de compartilhamento caso expressa e especificamente autorizado pelo respectivo titular. Na ausência desta, apenas ao Poder Judiciário compete à flexibilização da garantia fundamental inata à privacidade (sendo certo que ao Ministério Público e/ou à Polícia Judiciária caberá a requisição de tais dados tão somente para fins de investigação ou processo criminal, nos termos da lei).

É o que se extrai, por exemplo, do cotejo da LGT com o art. 1º, § 3º, da lei federal 10.703/03 e art. 15 da lei federal 12.850/13.

Digno de nota que, reafirmando que o nome completo, número de inscrição junto ao CPF/MF, a par do respectivo endereço, enquanto informações pessoais, integram o núcleo axiológico dos direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados encartados no art. 5º, X e XII da Constituição da República, a que todo e qualquer sujeito de direito faz jus em território nacional, o plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a medida cautelar na ADIn 6.387/DF na sessão de 24/4/20, sob relatoria da ministra Rosa Weber, referendou a decisão liminar exarada pela mesma para efeito de sustar todos os efeitos da medida provisória 954, de 17/4/205, o que fez enaltecendo que:

Tais informações, relacionadas à identificação – efetiva ou potencial – de pessoa natural, configuramdadospessoais e integram, nessa medida, o âmbito de proteção das cláusulas constitucionais assecuratórias da liberdade individual (art. 5º, caput), da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade (art. 5º, X e XII). Sua manipulação e tratamento, desse modo, hão de observar, sob pena de lesão a esses direitos, os limites delineados pela proteção constitucional” (grifos acrescidos, à exceção dos negritos).

Do referido acórdão merece realce, outrossim, a assertiva constante do voto condutor no sentido de que “a adequada tutela do direito à intimidade, privacidade e proteção de dados pessoais é estruturada pela característica da inviolabilidade. Vale dizer, uma vez afrontada a norma de proteção de tais direitos, o ressarcimento se apresenta como tutela insuficiente aos deveres de proteção” (grifos acrescidos).

Ou seja, a tônica deve ser prevenir, não meramente remediar!

Alinhado à dita orientação pretoriana, o plenário do Tribunal Regional Federal da 5º Região, em sessão ordinária de 21/10/20, conjuntamente julgou procedentes as ações rescisórias aforadas respectivamente pelas operadoras de telefonia e seu sindicato representativo, bem como pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), desconstituindo, assim, acórdão de uma de suas turmas datado de 2012 e que fora prolatado em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, da qual emanava ordem para que a Agência Reguladora editasse provimento disciplinando o compartilhamento dos dados pessoais (nome completo, CPF ou CNPF/MF e endereço) de usuários que tivessem realizado ligação a partir de terminal fixo ou móvel, em prol dos destinatários de tais ligações, sem necessidade de apresentação de qualquer justificativa para tal obtenção e à míngua de prévia chancela judicial.

O acórdão rescindendo não apenas determinava inovação no marco regulatório, instituindo verdadeiro “direito potestativo” para o destinatário de uma ligação telefônica, como, outrossim, predeterminava o conteúdo material do regulamento a ser veiculado pela Agência, de modo a franquear, ao recebedor de uma mera ligação telefônica, seja fixa ou móvel, a prerrogativa de obter o nome completo, CPF - ou CNPJ - e endereço do titular do terminal que lhe dirigira uma dada ligação, direito esse a ser exercitado sem necessidade de expor qualquer justificativa (que não o mero fato de ter recebido uma ligação, ainda que por equívoco) e sem prévio contraste judiciário.

Por expressiva maioria, a Corte Regional entendeu que o acórdão rescindendo, ao impor à Agência Reguladora a obrigação de editar um regulamento com o sobredito conteúdo, a par de violar o axioma da separação de poderes (art. 2º, CF), instituíra obrigação que, para além de não estar albergada no marco regulatório das telecomunicações, diretamente negava vigência a vários dos dispositivos legais que o alicerçam, pondo em xeque a garantia da privacidade e intimidade e da proteção dos dados assentada não apenas no art. 5º, X e XII, da CF, mas, tanto quanto, nos referenciados arts. 3º, VI e IX, 72, §§ 1º e 2º da LGT, dados pessoais esses cuja salvaguarda compete às operadoras enquanto no exercício da prestação de serviços que lhes é respectivamente delegada.

Andou bem o Quinto Regional ao fazê-lo, já que a circunstância das comunicações e interações sociais serem cada vez mais dinâmicas e fluídas, nesse mundo globalizado e hiperconectado, não autoriza a mitigação do direito à privacidade e, na mesma toada, daquele inato à proteção dos dados pessoais. Modernidade não combina com efemeridade na aplicação do direito!

A tônica do entendimento reafirmado pelo referido plenário pode ser sintetizada através de excerto do voto exarado pelo desembargador Federal Rogério de Meneses Fialho, que asseverou:

Parece-me que o acórdão violou expressamente o art. 21, inciso XI, da Constituição Federal e o art. 72, § 1º da Lei Geral de Telecomunicações. [...] A privacidade que é assegurada constitucionalmente não é mais aquela privacidade do Século XIX, do direito de ser deixado só; a privacidade, hoje, diz respeito ao autocontrole, à tutela das informações sobre os nossos próprios dados que transitam no mundo físico ou virtual” (grifos acrescidos).

Sendo consabido que o nível de civilidade de uma nação se mede pelo respeito às garantias que a conformam enquanto estado de direito, mormente daquelas clausuladas no ordenamento da imensa maioria das nações ditas democráticas, vale recordar a lição -sempre atual - extraída do artigo “The Right to Privacy”6, escrito pelos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos Samuel Warren e Louis D. Brandeis, em dezembro de 1890, veiculado na Harvard Law Review, no sentido de que, de tempos em tempos, exsurge a necessidade de se redefinir a natureza e extensão da proteção legal quanto ao indivíduo, já que mudanças políticas, sociais e econômicas implicam no reconhecimento de novos direitos, sendo certo que a lei, na sua eterna juventude, deve evoluir para atender aos reclamos da sociedade7.

Nesse sentido, a circunstância de se constatar utilização indevida de meios de comunicação por parte de alguns dos seus milhões de usuários não justifica, por si só, o vilipêndio à moldura constitucional e infraconstitucional desenhada pelo legislador, com os freios e contrapesos emanados dos ônus e bônus jurídicos que colhem a cada um dos sujeitos que integram o tecido social, seja por tal moldura envolver garantias fundamentais (a merecer exegese que lhe instile a máxima efetividade), seja pela indeclinável necessidade de se observar a divisão tripartite do estado (da qual emerge que ao Legislativo compete a função precípua de criação e restrição a direitos, não ao Judiciário), seja pelo princípio da deferência em relação aos marcos regulatórios setoriais (haja vista a expertise técnica exercitada pelas agências reguladoras, sob o influxo de cada um desses), de modo a se viabilizar a coexistência harmônica  das respectivas esferas de direito no âmbito da sociedade hodierna.

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1 Serviço telefônico fixo comutado.

2 Serviço móvel pessoal.

3 Serviço de comunicação multimídia.

4 Lei Federal nº 9.472/97 (LGT):

Art. 3º - O usuário de serviços de telecomunicações tem direito:

VI – à não divulgação de seu código de acesso;

IX - ao respeito de sua privacidade nos documentos de cobrança e na utilização de seus dados pessoais pela prestadora de serviços.

Art. 72 - Apenas na execução de sua atividade, a prestadora poderá valer-se de informações relativas à utilização individual do serviço pelo usuário.

§ 1º A divulgação das informações individuais dependerá de anuência expressa e específica do usuário.

§ 2º A prestadora poderá divulgar a terceiros informações agregadas sobre o uso de seus serviços, desde que eles não permitam a identificação, direta ou indireta, do usuário, ou a violação de sua intimidade.

Art. 94 - No cumprimento dos seus deveres, a concessionária poderá, observadas as condições e limites estabelecidos pela Agência:

§ 1º Em qualquer caso, a concessionária continuará sempre responsável perante a Agência e os usuários (grifos acrescidos).

5 Que dispõe acerca do “compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado e Serviço Móvel Pessoal com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid19), de que trata a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020” (grifos acrescidos).

6 O Direito à Privacidade.

7 Em tradução livre (“[....] but it has been found necessary from time to time to define anew the exact nature and extent of such protection. Political, social, and economic changes entail the recognition of new rights, and the common law, in its eternal youth, grows to meet the demands of society” – grifos acrescidos) – WARREN, Samuel D. BRANDEIS, Louis D. The Right To Privacy. Vol. IV. Cambridge: Nº 05. 1890. Fl. 193.

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*Erik Limongi Sial é advogado e sócio fundador do Limongi Sial & Reynaldo Alves Advocacia e Consultoria Jurídica.

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