Migalhas de Peso

Direito ao esquecimento e a LGPD

A lei 13.709/18 – LGPD – traz regras que servirão para nortear a aplicação dos direitos à informação e liberdade de expressão quando em confronto com o direito ao apagamento de dados, como referido na lei nacional, mais conhecido como "direito ao esquecimento”.

30/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A internet é, sem dúvida, um avanço científico-tecnológico dos mais importantes dos últimos cem anos, festejada como ferramenta de pesquisa e disponibilização de informações nos mais variados ramos do interesse humano. Desse ponto de partida, já se pode avaliar sua relevância para o direito à informação na atualidade.

No entanto, é também já notório o poder destrutivo que a internet vem causando à vida particular dos indivíduos em face da perenidade, velocidade e alcance de informações que, por razões de foro íntimo, não se desejaria expor. A internet se revela fora do controle da esfera estatal e pessoal, colocando à disposição de uma quantidade indiscriminada de pessoas os dados particulares das demais, disponibilizando novos e antigos fatos, a qualquer tempo, modo e lugar.1 E o fato é que pode existir um interesse da pessoa em garantir a memória “certa” a respeito de seus dados pessoais, assim como que erros cometidos no passado não lhe tragam indefinidamente prejuízos cujas consequências já enfrentou. Alberga-se tal interesse por meio do chamado “direito ao esquecimento”.

Uma primeira observação que se pode fazer em relação ao direito ao esquecimento reside na falta, em especial no âmbito da legislação, de aceitação plena ao uso da expressão “direito ao esquecimento”, o que implica no fato de que as normas jurídicas ainda não a adotam uniformemente. No direito estrangeiro, vê-se, por exemplo, o Regulamento da União Europeia (UE) 2016/679, cujo art. 17º, que trata do direito ao apagamento de dados e, em seguida, como um subtítulo, o “direito a ser esquecido”. Ademais, no considerando 66 da mesma norma consta também a declaração “direito a ser esquecido no ambiente por via eletrônica”.2

 A expressão direito ao esquecimento traduz, na verdade, o de não se conceder acesso a informações pessoais cuja publicidade se queira restringir. A palavra esquecimento é apenas retórica. A ideia subjacente é o ato de apagar uma informação e o esquecimento desta é a consequência desejada pelo titular do dado. É compreensível que exista o interesse da pessoa em garantir a memória certa a respeito de seus dados pessoais, assim como que erros cometidos no passado não lhe tragam indefinidamente prejuízos cujas consequências já enfrentou.

Ocorre que, para outras pessoas, a informação e a liberdade de expressão podem ser igualmente caras. Ao longo da história, aqueles que se viram instados a examinar o chamado direito ao esquecimento se viram no dilema de ponderar diversos valores e garantias, especialmente o direito de informação e de memória, assim como da liberdade de imprensa.3 Pedro Trovão do Rosário colocou a questão nestes termos:

O problema essencial, ou ponto de partida do direito a ser esquecido encontra-se na necessidade de encontrarmos parâmetros de concordância entre as liberdades de expressão (compreendida aqui também pelas liberdades de informação e imprensa) e a protecção da vida privada e familiar da pessoa humana (...), os quais não só não são absolutos como inconstantes e, problema seguinte, a efetivação da(s) solução(ões) que encontrarmos”.4

Para esse autor, a regulamentação europeia, já antes aqui mencionada5, está alinhada com a ideia de uma crescente liberdade concedida ao proprietário dos dados, com o correspondente aumento de responsabilidades, constituindo-se em exemplo de um Estado fiscalizador do cumprimento de direitos fundamentais.6 A proposta da norma, portanto, segundo referido autor, seria de que os Estados-Membros conciliem, por meio de lei, o direito à proteção de dados pessoais com o direito à liberdade de expressão e de informação.

Já no âmbito do direito brasileiro, a lei 13.709, publicada em 14 de agosto de 2018, vem trazer novos contornos à proteção de dados também ao nosso país. Neste brevíssimo estudo, fazemos um esforço por compreender como essa norma brasileira pretende enfrentar a questão do direito ao esquecimento, ou seja, quais parâmetros traz para que se estabeleça uma concordância entre as liberdades de expressão e a proteção da vida privada e familiar da pessoa humana.

Antes da vigente LGPD, o direito ao esquecimento tinha pouca regulação legal no Brasil, o antigo Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Acesso à Informação e a Lei do Habeas Data), além de uma jurisprudência vacilante. Contudo, a lei 13.709 faz importantes avanços no tema. Vejamos.

De logo, o chamado Novo Marco Civil da Internet cria órgãos para o trato específico da proteção de dados na internet. Ademais, institui regras preventivas, tais como o prévio consentimento expresso ao tratamento de dados, a possibilidade da reclamação administrativa, por meio dos órgãos de defesa do consumidor e a inversão do ônus da prova em casos judiciais, nas hipóteses que menciona. Afora isso, a lei também cria sanções de várias espécies, da mais simples advertência a pesadas multas e até a impossibilidade de permanência na atividade do controlador de dados que infringe a lei. É sem dúvida uma norma de forte cunho protetivo aos direitos dos usuários da internet.

No que diz respeito aos princípios norteadores da LGPD, estão estes destacados no art. 3º, dentre os quais, sem qualquer ordem de hierarquia, a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal, e a proteção da privacidade e a proteção dos dados pessoais, na forma da lei, assim como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Esta enunciação é a fonte primária para o aplicador da lei em seu enfrentamento a cada caso concreto.

Notamos que a lei brasileira não adotou a expressão direito ao esquecimento. Em seu lugar, podemos encontrar a palavra “eliminação”, cujo significado vem expresso no inciso XIV do art. 5º da lei como a “exclusão de dado ou de conjunto de dados armazenados em banco de dados, independentemente do procedimento empregado”. Nessa razão, este direito está mais conexo com a ideia do impedimento à manutenção da publicidade acerca de algo que se deseja seja esquecido, nos casos e circunstâncias em que a lei permite tal privacidade.

O aspecto mais relevante da lei para o tema do direito ao esquecimento se encontra nessa prerrogativa que tem o titular dos dados pessoais a obter do controlador, em relação aos seus dados por ele tratados, a eliminação destes, a qualquer momento e mediante requisição. E, o mais importante, é que se pode antever, nas hipóteses em que o tal direito é excepcionado, aquelas situações em que prevaleceriam outros direitos. Com efeito, a lei excepciona de logo os casos de cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; de estudo por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais; de transferência a terceiro, desde que respeitados os requisitos de tratamento de dados dispostos na Lei; ou uso exclusivo do controlador, vedado seu acesso por terceiro, e desde que anonimizados os dados. A identificação das situações de legítima eliminação dos dados aqui prevista, note-se bem, representa já um parâmetro a ser seguido pelos usuários assim como para os estudiosos e operadores do direito ao esquecimento. 

Afora esse ponto específico, podemos observar na lei brasileira uma busca pela proteção das informações desde a concepção, pois o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado mediante o fornecimento de consentimento pelo titular. Tal consentimento se refere a uma “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (art. 5º, XII da LGPG).

Preventivamente, pois, a norma veda o tratamento de dados pessoais mediante vício de consentimento, devendo este se dar por escrito e referir-se a finalidades determinadas, considerando-se nulas as autorizações genéricas para o tratamento de dados pessoais. Em reforço dessa determinação, a revogação do consentimento pode ser feita a qualquer tempo, mediante manifestação expressa do titular, por procedimento gratuito e facilitado.

É quando trata o legislador dos dados pessoais sensíveis que melhor podemos elucidar de que forma pretende a lei prevenir que haja desobediência aos direitos albergados. Os dados sensíveis são aqueles de ordem pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, referente à saúde ou à vida sexual e dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.

De acordo com o art. 11 do já chamado Novo Marco Civil da Internet, o consentimento dado pelo titular ao tratamento de dados pessoais sensíveis deverá se dar de forma específica e destacada, assim como para finalidades específicas. Ou seja, se os dados se referem a origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, referente à saúde ou à vida sexual e dado genético ou biométrico, o tratamento deverá ter uma finalidade especifica, uma justificativa para tanto, assim como o consentimento deverá ser específico. Ademais, sem fornecimento de consentimento do titular, o tratamento de dados sensíveis somente poderá ocorrer em situações bem específicas, conforme dispõem os artigos 11 a 13 da LGPD.

Um dos maiores acertos da norma, não se porá dúvida, é a de instituir o direito de petição administrativa à Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD (§ 1º do art. 18), corrigindo o grave problema de ter o usuário de recorrer ao Poder Judiciário para corrigir danos ao seu direito.

Em conclusão, no que tange ao direito à proteção de dados na internet, pode-se dizer que a publicação, no Brasil, da lei 13.709/18 dotará o país de uma legislação que tem ferramentas para interferir positivamente na sociedade, amparando os usuários da internet, assim como com regras que poderão contribuir para resoluções relacionadas a direito ao esquecimento, ou apagamento de dados, como referiu a lei nacional.   

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1 LIMA, Erik Noleta Kirk Palma– Direito ao Esquecimento: Discussão Europeia e sua Repercussão no Brasil.

2 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE. Dito Regulamento criou regras para a proteção de dados pessoais e, em seu art. 17, prevê expressamente o “direito ao apagamento de dados”, ao qual deu um subtítulo de “direito a ser esquecido”.

3 Ver FERRIANI, Luciana de P. Assis, Direito ao Esquecimento; FERRIANI, Luciana de P. Assis, Direito ao Esquecimento; CONSALTER, Zilda Mara, Direito ao Esquecimento: proteção da intimidade e ambiente virtual; COSTA, André Brandão Nery. Direito ao esquecimento na internet: a scarlat letter digital.

4 ROSÁRIO, Pedro Trovão do. O direito a ser esquecido. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 53,p.121-139,dez.2017.ISSN1982-9957. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 out. 2020. doi: clicando aqui.

5 Regulamento (UE) 2016/679

6 Idem, p. 178.

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*Lírida Macedo é especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas e em Direito e Processo do Trabalho pela PUC/MG. Sócia fundadora do escritório Erick Macedo Advocacia.

 

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