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Arbitragem e precedentes: possível vinculação do árbitro e mecanismos de controle

Este artigo objetiva analisar os impactos do sistema de precedentes nas jurisdições estatal e arbitral para discorrer sobre a possível vinculação do árbitro aos precedentes judiciais vinculantes nas arbitragens sob a égide da legislação brasileira.

30/10/2020

1. Introdução

O presente estudo busca empreender uma análise sobre a relação entre dois temas que ganharam especial relevo nos últimos vinte anos: a arbitragem e a necessidade de uniformidade entre os posicionamentos jurisdicionais. Um diálogo necessário, porquanto as questões atinentes ao assunto que aqui será tratado passaram por significativa evolução e foram objeto de pesquisas e escritos por parcela relevante da doutrina.

Além de uma necessária, mas sucinta, digressão histórica acerca do método extrajudicial de heterocomposição de conflitos, hoje tão difundido em nosso país, será realizada investigação sobre os impactos do sistema de precedentes na jurisdição estatal e no procedimento arbitral, sobretudo tendo em vista a (eventual) vinculação do árbitro aos precedentes judiciais (notadamente aos intitulados vinculantes). Os meios de impugnação das sentenças arbitrais também serão abordados, principalmente para que se tenha um panorama de quais seriam os mecanismos de controle no que diz respeito à (des)conformidade da sentença arbitral em relação ao direito brasileiro.

Conforme será examinado, o percurso teórico do estudo aqui proposto passa pela averiguação da trajetória da arbitragem no Brasil e da natureza jurídica conferida a tal instituto na atualidade. Buscaremos investigar, ainda, o papel que os precedentes – como fonte do direito – exercem no ordenamento jurídico brasileiro, além das alterações promovidas nos últimos anos em nosso sistema jurisdicional.

Nesse contexto, diante das mudanças empreendidas pelo Código de Processo Civil de 2015 (Código Fux), atentando para o fato de que um sistema de precedentes é visto, ao redor do mundo, como significativo avanço na prestação jurisdicional por inúmeros fatores, pretendemos analisar seus reflexos nos procedimentos arbitrais sob a égide da legislação nacional, sempre considerando as diferenças e as semelhanças entre a arbitragem e o procedimento jurisdicional tradicional conduzido pelo Poder Judiciário.

Ademais, se ratificada a hipótese de que os árbitros devem respeitar os precedentes judiciais, tem-se como finalidade perquirir os mecanismos de que o ordenamento jurídico brasileiro dispõe para a impugnação da sentença arbitral que negue a aplicação de precedente (ou persuasivo ou vinculante).

Neste trabalho – desde logo se ressalte esta importante premissa –, não abordaremos a problemática em torno da arbitragem por equidade. Como nesta modalidade não se seguem as leis e as normas positivadas nos ordenamentos, buscar compreender os reflexos do sistema de precedentes sobre tais procedimentos é uma tarefa absolutamente estéril.

Do mesmo modo, a análise pretendida não diz respeito aos procedimentos arbitrais que se realizem com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.

Portanto, é prudente sublinhar, toda e qualquer abordagem jurídica lançada neste estudo diz respeito às arbitragens de direito, sob a égide da legislação brasileira, de livre escolha das partes.

2. A arbitragem, sua origem e seu caráter jurisdicional

A arbitragem é método heterocompositivo de solução de controvérsias, no qual terceiro imparcial, nomeado pelas partes no gozo de autonomia privada, decide o conflito vivenciado pelos sujeitos. Além de ser manifestação jurisdicional, encontra fundamento na vontade das partes.1

Sobre a origem do instituto, afirma-se que a arbitragem é tão antiga quanto à própria humanidade, pois decorreria simplesmente da nomeação de terceiro para resolução de conflitos. Na história da civilização, por exemplo, é empregada desde os períodos da Grécia e da Roma antiga, quando os cidadãos já submetiam a um terceiro imparcial a resolução de suas disputas.2-3

No sistema jurídico brasileiro, é possível identificar a arbitragem já no período da colonização portuguesa. Como aponta José Augusto Delgado, considerando somente o período de Brasil independente, o primeiro dispositivo legal a fazer referência à arbitragem foi a Constituição Imperial de 1824, a qual estabelecia, em seu art. 160, a prerrogativa das partes de nomearem árbitros para solucionar os conflitos de natureza cível4. As decisões proferidas seriam executadas sem possibilidade de recurso5.

Ainda no período monárquico, a arbitragem voltou a ser objeto de leis, dentre as quais se pode destacar o Código Comercial de 1850 e o Decreto 3.900 de 1867, marcos legislativos que definiram a trajetória da arbitragem durante os séculos XIX e XX. O citado Código Comercial estabelecia a arbitragem compulsória para a resolução dos conflitos de natureza societária e para as causas relacionadas a locações comerciais6.

Diante da obrigatoriedade do procedimento arbitral para solução das querelas envolvendo questões mercantis determinadas pelo Código Comercial de 1850, esse passou a ser o meio de resolução de uma fração relevante dos litígios daquele período, tendo sido regulado no mesmo ano pela edição do Decreto 737. A homologação da decisão arbitral pelo juízo estatal, no entanto, não deixava de ser uma exigência7.

Diante das críticas à compulsoriedade da arbitragem, foram editados os Decretos 1.350, em 1866, e 3.900, em 1867, os quais foram responsáveis pela extinção da arbitragem compulsória no direito brasileiro, com a revogação do Decreto 737. O compromisso arbitral foi entendido como mera promessa de contratar. Além disso, não havia possibilidade de execução específica do compromisso para instaurar a arbitragem, caso uma das partes não estivesse de acordo com o procedimento privado8.

No século XX, o primeiro diploma normativo que impactou a arbitragem foi o Código Civil de 1916. Clóvis Beviláqua, assim como a doutrina que prevalecia à época, entendia que o compromisso arbitral tinha como principal objetivo a extinção das obrigações, fato que o tornava semelhante ao instituto da transação. Desse modo, o legislador de 1916, além de reafirmar a voluntariedade da arbitragem, também passou a considerá-la questão de direito material9.

A Constituição de 1934 voltou a dar destaque ao instituto, haja vista ter estabelecido, ao distribuir as competências dos entes federativos, que à União caberia legislar sobre as matérias referentes à arbitragem10. Tendo em conta as possibilidades abertas com a definição da competência da União para legislar sobre as questões referentes à arbitragem, esse tema voltou a ser tratado pela legislação processual quando foi editado o Código de Processo Civil de 1939.

Como relembra Marcos Fioravanti11, o Código de Processo Civil de 1939 dedicou uma seção com dezoito artigos à arbitragem e reafirmou a voluntariedade como requisito essencial para instauração do procedimento arbitral, passando a proibir que as partes celebrassem compromisso arbitral depois de proferida decisão do Poder Judiciário12.

Com a edição do Código de Processo Civil de 1973, não houve grande alteração na disciplina da arbitragem, que continuou a ser tratada na seção “Do Juízo Arbitral”, fato que demonstrava o pouco interesse do legislador pelo tema, reflexo do ‘adormecimento’ da arbitragem (termo utilizado por Marcos Fioravanti13).

Mesmo prevista desde o período imperial e mantida ao longo dos anos, a arbitragem passou um longo período esquecida pela sociedade. Foi somente no último quartel do século passado que iniciou a trajetória de crescimento, ganhando espaço em litígios de circunstâncias muito especiais, que demandassem procedimento mais célere e maior especialização dos julgadores. Tal ressurgimento parece, em alguma medida, relacionado com a globalização e com os inúmeros entraves pelos quais vinha – e vem –passando o acesso à justiça.

Segundo aponta Carlos Augusto da Silveira Lobo, a arbitragem esteve em baixa por tantos anos principalmente porque

“era lembrada para solucionar alguns casos excepcionais, sem que fosse percebida a sua qualidade de constituir um meio socialmente relevante de resolver litígios. No geral, a arbitragem era alvo de suspeitas e reservas pelos que consideravam que a prestação jurisdicional era atividade privativa do Poder Público.”14

A ideia do “monopólio” da jurisdição afeta ao Estado sempre foi um componente cultural de nosso povo.

Todavia, diante de numerosas atribulações que o Poder Judiciário passou a enfrentar, sobretudo no que diz respeito à entrega de tutela jurisdicional efetiva, fez-se necessária a busca por outros mecanismos que privilegiassem o acesso à justiça e a solução adequada de conflitos.

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1 Sobre a controvérsia entre a natureza jurisdicional ou contratual da arbitragem, ver CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e jurisdição. Revista de Processo, v. 58, 1990. p. 33-40.

2 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. Versão eletrônica, capítulo 1.

3 Veja-se também SALOMÃO, Luis Felipe. A atualização da lei de arbitragem. Disponível em: [www.migalhas.com.br/depeso/211461/a-atualizacao-da-lei-de-arbitragem]. Acesso em: 04.05.2020.

4 Sobre a trajetória da arbitragem no Brasil, são válidos os apontamentos do Ministro José Augusto Delgado, v. DELGADO, José Augusto. A arbitragem no Brasil: evolução histórica e conceitual. Revista de Direito Renovar, n. 17, mai.-ago. 2000, passim. Disponível em: [www.escolamp.org.br/arquivos/22_05.pdf]. Acesso em: 13.04.2020.

5 FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. A arbitragem e os precedentes judiciais: observância, respeito ou vinculação. (Dissertação de Mestrado) – apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. p. 61.

6 LOBO, Carlos Augusto da Silveira. História e perspectivas da arbitragem no Brasil. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 50, jul.-set. 2016, passim.

7 LOBO, Carlos Augusto da Silveira. Op. cit., p. 2.

8 “O Código Comercial, de 1850, estabeleceu a arbitragem como meio de solução obrigatório para diversos conflitos de caráter comercial, entre eles o conflito entre sócio de uma sociedade comercial. No entanto, em 1866 a arbitragem obrigatória foi abolida pela Lei 1.350, permanecendo em vigor somente a arbitragem voluntária. O Dec. 3.900/1867, por sua vez, estabeleceu que a cláusula compromissória teria natureza de promessa de contratar, não sendo permitida a execução específica desta” (WALD, Arnoldo. Maturidade e originalidade da arbitragem no direito brasileiro. In: VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Aspectos da arbitragem institucional: 12 anos da Lei 9.307/1996. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 242.)

9 FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. Op. cit., p. 62.

10 DELGADO, José Augusto. Op. cit., p. 7.

11 FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. Op. cit., p. 63.

12 FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. Op. cit., p. 63.

13 FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. Op. cit., p. 63.

14 LOBO, Carlos Augusto da Silveira. Op. cit., p. 5-6.

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*Luis Felipe Salomão é ministro do STJ. Presidente da Comissão de Juristas que elaborou anteprojeto da ampliação da Lei de Arbitragem e a Lei de Mediação. Doutor honoris causa em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade Cândido Mendes. Professor Emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e da Escola Paulista da Magistratura. 





*
Rodrigo Fux é doutorando e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado. 




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