Migalhas de Peso

A desnecessidade do exame de corpo de delito direto em crimes materiais apurados por interceptação telefônica

Como é notório, o crime organizado tem se tornado cada vez mais estruturado e dinâmico, de modo que o líder muita das vezes sequer tem contato direto com a droga e em determinadas situações.

29/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A interceptação telefônica possui regulamento na lei 9.296/96, consistindo em uma medida cautelar probatória, tendo natureza jurídica de meio de obtenção de prova. A sua natureza deixa nítido que por ser um meio de se obter provas, nem todas as interceptações telefônicas implantadas no âmbito de uma investigação policial possuem um resultado efetivo ou esperado pelos investigadores que por ela representam.

A título de exemplo, é comum que em alguns casos seja possível que uma determinada organização criminosa tenha a sua desarticulação, e em outros, todavia, não seja possível obter qualquer resultado do trabalho de interceptação.

Na prática, a interceptação telefônica é uma ferramenta muito utilizada pela Polícia Judiciária para se poder obter elementos informativos de casos mais complexos em que não há possibilidade de obtenção de elementos informativos pela via normal ou ordinária (ex.: prova testemunhal), daí a imprescindibilidade da interceptação telefônica.

O cerne do presente artigo é questionar se a interceptação telefônica supre a prova da materialidade nos delitos classificados pela doutrina como materiais, como por exemplo, os casos envolvendo o tráfico ilícito de drogas em que não há a apreensão da droga ou o homicídio em que não há a localização do cadáver.

O tema não é tão fácil de ser debatido, sendo este o motivo de se enfrentá-lo. Historicamente, durante alguns anos, o STJ vinha decidindo que a ausência de apreensão de drogas não seria motivo suficiente para desconfigurar a materialidade do delito de tráfico ilícito de drogas nos casos em que a investigação fosse subsidiada por uma interceptação telefônica farta de áudios que demonstrassem a existência do delito.

O STJ chegou a firmar tal posicionamento no HC 131.455/MT1, julgado em 02/08/2012, em que a Relatora Maria Thereza de Assis Moura se manifestou no sentido de que “a ausência da apreensão da droga não torna a conduta atípica se existirem outros elementos de provas aptos a comprovarem o tráfico”.

No mesmo sentido, alguns anos depois, a Quinta Turma do STJ chegou a confirmar a interpretação de que nos delitos de tráfico de drogas que possuem farto lastro probatório consubstanciados em trabalho de interceptação telefônica, ainda que não houvesse a apreensão da droga, seria possível haver a responsabilização criminal dos envolvidos. Neste sentido tem-se o HC 463.822/SC2 julgado em 28/09/2018:

“Em que pese a obrigatoriedade do exame de corpo de delito em todos os crimes que deixarem vestígios (art. 158 CPP), há que considerar a exceção disposta no art. 167 do CPP: Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta. (Grifo meu)”.

Inclusive, para corroborar com a tese nada absurda que vinha se adotando o Superior Tribunal de Justiça, o próprio Supremo Tribunal Federal também já chegou a decidir no HC 130.265/DF3, julgado no ano de 2016, de Relatoria do Ministro Teori Zavascki que:

“A falta de laudo pericial não conduz, necessariamente, à inexistência de prova da materialidade de crime que deixa vestígios, a qual pode ser demonstrada, em casos excepcionais, por outros elementos probatórios constante dos autos da ação penal”.

Ocorre que as decisões que vinham sendo adotadas pelo STJ foram sendo abandonadas neste ano de 2020 pela sua Sexta Turma ao enfrentar o tema em pelo menos duas situações interessantes de casos envolvendo investigação de tráfico de drogas por meio de interceptações telefônicas. O interessante é que em ambos os casos também não houve a apreensão da droga, tendo ambos os julgados desfechos diferentes dos que já foram decididos em anos anteriores, conforme se foi possível observar em linhas acima.

No primeiro caso decidido no julgamento do REsp 1.800.660/MG4, julgado em 11/02/2020, o STJ trouxe um posicionamento paradigmático no sentido de que sequer deve haver o recebimento da peça acusatória em situações de não apreensão da droga, ainda que haja interceptação telefônica demonstrando a conduta de cada um dos envolvidos.

Esse caso em análise envolveu uma investigação de tráfico internacional de drogas em que uma remessa de aproximadamente 100kg (cem quilogramas) de pasta base de cocaína e 20kg (quilogramas) de cloridrato estariam sendo enviadas do Paraguai para a cidade de Uberlândia-MG, e o Superior Tribunal se posicionou favorável à rejeição da denúncia, pois in casu não teria havido justa causa para o seu recebimento, porquanto não teria havido a apreensão da substância com nenhum dos envolvidos. Para a Sexta Turma:

“A caracterização do crime de tráfico de drogas prescinde de apreensão de droga em poder de cada um dos acusados, podendo ser comprovada pela existência de estupefacientes com apenas parte deles. 2. A prova da materialidade também pode ser demonstrada por outros meios quando seja a apreensão impossibilitada por ação do criminoso – que não poderia de sua má-fé se beneficiar. 3. Deve ser mantida a rejeição da denúncia por ausência de lastro probatório mínimo, quando não houver a apreensão de substância entorpecente com nenhum dos acusados.” (Grifo meu).

Em situação semelhante decidida no AgRg no HC 578.400/PR5, julgado em 13/08/2020, o Superior Tribunal de Justiça trouxe o mesmo posicionamento de que no delito de tráfico de drogas há necessidade de apreensão da droga para que exista ao menos o recebimento da peça acusatória. Vejamos trecho do julgado:

“É imprescindível, para a demonstração da materialidade do delito de tráfico de drogas, a apreensão do entorpecente, o que deve ser comprovado por meio de laudo de constatação, nos termos do art. 50, §1º, da lei 11.343/2006”.

Observa-se então que a Sexta Turma do STJ exige que em se tratando de interceptação telefônica voltada para a investigação de tráfico ilícito de drogas, haja a necessidade de apreensão da droga com algum dos envolvidos na ação delituosa, sob pena de sequer haver o recebimento da peça acusatória por inexistir lastro probatório mínimo ao oferecimento da denúncia, isto é, inexiste a chamada justa causa.

É interessante essa posição da Sexta Turma, pois dela surge a indagação de qual deve ser o posicionamento do Superior Tribunal em se tratando de caso envolvendo o delito de homicídio, já que se trata também de delito material que deixa vestígios. Nos casos envolvendo tal delito num contexto em que o autor do delito escondeu o cadáver, impossibilitando que este seja encontrado será que se o delito for descoberto por meio de áudios de interceptação telefônica não haveria como suprir a prova da materialidade do delito de homicídio pelos áudios captados? Ou será que mesmo com riqueza de detalhes o caso objeto de investigação sequer teria o possível recebimento da denúncia pelo Poder Judiciário por inexistência de justa causa?

Esse questionamento é interessante, pois apesar de o tráfico ilícito de drogas e o de homicídio serem crimes que protegem bens jurídicos diversos, ambos são delitos classificados como materiais, deixando vestígios. Logo, diante de situações que envolvam crimes que deixam vestígios é adequado e proporcional que decisões como às dadas recentemente pela Sexta Turma sejam consideradas como prevalecentes em nosso ordenamento?

Ora, a resposta para tais questionamentos, na opinião deste autor, é depende. Primeiramente vale salientar que o CPP em seu art. 167 dispõe que “não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”.  Isso enfatiza que até mesmo nos delitos classificados como materiais seja possível suprir a materialidade pelo exame de corpo delito indireto, ou seja, pelas provas testemunhais ou até mesmo documentais, como é o caso da interceptação telefônica. No Manual de Processo Penal do brilhante autor Renato Brasileiro de Lima é possível encontrar corrente doutrinária que defende essa posição, inclusive enfatizando o julgado do Supremo Tribunal Federal acima exposto que admite o exame de corpo delito indireto nos delitos de tráfico de drogas”. Diz o autor:

“Perceba-se que, para essa primeira corrente, o exame de corpo de delito indireto não é propriamente um exame, mas sim a prova testemunhal ou documental suprindo a ausência do exame direto, em virtude do desaparecimento dos vestígios deixados pela infração penal”.

 Logo, se a interceptação telefônica for composta por elementos informativos que denotem a relevância dos áudios captados, filio-me à posição de que seria sim possível a responsabilização criminal dos envolvidos na investigação, ainda que não houvesse apreensão da droga ou ainda que não fosse localizado o cadáver em um crime de homicídio, pois a interceptação telefônica constituiria um exame de corpo de delito indireto, isto é, uma prova documental que demonstraria a prova da materialidade do delito de tráfico de drogas, de associação para o tráfico ou de homicídio, por exemplo.

Por outro lado, se a interceptação telefônica é composta por captação de áudios que não demonstram relevância ou que a relevância deles é fragilizada por não possibilitar a identificação da natureza da droga a ser comercializada ou dos envolvidos na negociação da droga em um caso de tráfico de drogas, ou saber quem é exatamente a vítima em um caso de homicídio, difícil se faz a responsabilização criminal de alguns dos envolvidos, pois estaria ausente a justa causa, quarta condição da ação penal para o oferecimento da peça acusatória.

Desse modo, conclui-se que o melhor entendimento para crimes materiais que deixam vestígios, como são os casos de tráfico de drogas e de homicídio, é que se faça uma análise do caso concreto, pois também desconsiderar, de forma absoluta, que áudios relevantes de uma interceptação telefônica sejam utilizados como elementos informativos hábeis a demonstrar o lastro probatório mínimo e a formar a justa causa constitui fundamento que enfraquece a atuação do Estado e fortalece ainda mais o crime organizado. Como é notório, o crime organizado tem se tornado cada vez mais estruturado e dinâmico, de modo que o líder muita das vezes sequer tem contato direto com a droga e em determinadas situações, em frações de minutos uma remessa imensa de droga é encaminhada de um local para o outro tornando impossível a apreensão da droga, ainda que haja muito esforço da força policial.

__________

1- STJ, HC 131.455/MT, Relatora: Maria Thereza de Assis Moura, Julgado em 02/08/2012.

2- STJ, HC 463.822/SC, Relator: Reynaldo Soares da Fonseca, Julgado em 18/09/2018. DJe 28/09/2018.

3- STF, HC 130.265/DF, Relator: Teori Zavascki, DJe 13/06/2016

4- STJ, REsp 1.800.660/MG, Relator: Nefi Cordeiro, Julgado em 11/02/2020. DJe 25/05/2020.

5- STJ, AgRg no HC 578.400/PR, Relator: Nefi Cordeiro, Julgado em 04/08/2020, DJe 13/08/2020.

__________

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 721.

CONTEÚDO JURÍDICO. Interceptação telefônica como meio de prova e a materialidade no crime de tráfico de drogas. Disponível aqui. Acesso em 19 de out. 2020.

Site do STF. Disponível aqui. Acesso em 19 de out. 2020.

Jurisprudência do STJ JusBrasil. Disponível aqui. Acesso em 19 de out. 2020.

Jurisprudência do STJ JusBrasil. Disponível aqui. Acesso em 19 de out. 2020.

__________

*João Gabriel Cardoso é delegado de Polícia Civil no Estado do Ceará. Palestrante. Professor de Direito Penal pela Faculdade Ieducare e Faculdade Alencarina de Sobral. Professor de Legislação Especial e de Peças Práticas pelo Curso Preparatório para Carreiras Jurídicas Universo Juris. Autor de diversos artigos jurídicos em Revistas Especializadas. Coautor da obra jurídica “Direito Penal das Minorias e dos Grupos Vulneráveis” pela Editora Juspodvm. 

 

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