Migalhas de Peso

Revisão da preventiva a cada 90 dias e ilegalidade

Melhores exegeses virão. Temos certeza.

28/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

É a seguinte a redação do parágrafo único do artigo 316 do CPP, concedida pela recente lei 13.964/19: Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

A revisão da preventiva a cada noventa dias foi introduzida, não em favor dos poucos presos que dispõem de recursos para constituir advogados, sim daqueles menos favorecidos. O problema do esquecimento do reexame dos requisitos da preventiva e de direitos de presos é grave. Procurando minorá-lo, a partir do ano de 2008, o Conselho Nacional de Justiça passou a organizar e incentivar mutirões carcerários. Consoante informação constante do portal do CNJ, “os esforços concentrados resultaram na análise de cerca de 400 mil processos com mais de 80 mil benefícios concedidos, como progressão de pena, liberdade provisória, direito a trabalho externo, entre outros. Pelo menos 45 mil presos foram libertados por terem cumprido suas penas”. Ou seja, um preso a cada dez estavam ilegalmente presos. Conclui-se, por conseguinte, que o legislador não estava pagodeando ao conferir nova redação ao artigo 316 e seu parágrafo único, por meio da Lei n. 13.964/2019.

Por outro lado, a literalidade dos normativo mencionado deixa a desejar. É preciso interpretá-lo adequadamente com subvenções dos princípios acusatório, da ampla defesa e do contraditório, deste último maximamente. Acusatoriedade não significa tão somente que o juiz não deve sair à cata de provas por conta própria. Tem o sentido, também, de que se deve evitar que o juiz mergulhe solitário no exame de provas, sem a colaboração contraditória das partes. Preserva-se assim sua imparcialidade. Ampla defesa, dentre outras acepções, dispõe a de que é a defesa quem melhor possui condições para avaliar o que é melhor ao acusado.

A cada noventa dias o juiz deve proceder a revisão da preventiva, e de ofício, consoante a expressão legal. De ofício não quer dizer que juiz deva examinar sozinho a necessidade de manutenção da preventiva. Significa que deve de ofício, periodicamente, dar início ao procedimento de revisão. Não é do interesse da defesa que o juiz fique, no curso da instrução, repetidamente, analisando a prova, de maneira inquisitiva, para fiscalizar, e buscar - é consequência -, a presença de requisitos da cautelar. Tal repetição pode ser prejudicial à conservação da imparcialidade.

Assim, indaga-se, o que o juiz deve fazer de ofício? Deve dar partida ao procedimento de reexame dos requisitos da preventiva. Para isso, o primeiro passo é dar vista dos autos à defesa, que deverá se manifestar, fundamentadamente, requerendo a cassação da cautelar. Ou, noutra hipótese, dando ciência de que recebeu os autos para se manifestar sobre a preventiva, devolvê-los em silêncio, sem qualquer requerimento. Não se requer relaxamento de preventiva quando a situação probatória processual é inadequada. Não é ampla defesa imergir o juiz em conjunto probatório desfavorável ao acusado. Defesa sem técnica é defesa deficiente. Com ou sem requerimento de relaxamento de prisão, os autos devem ir com vista ao Ministério Público, que deverá se manifestar contra ou a favor da manutenção da prisão. A seguir, o juiz decide. Havendo requerimento de relaxamento da prisão, o juiz deverá se manifestar examinando os fundamentos expostos por ambas as partes. Não havendo, bastará o juiz despachar a devolução dos autos ao cartório.

Essa solução interpretativa complementa o princípio constitucional do contraditório. O parágrafo 3º do artigo 282 prescreve que o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, para se manifestar. A analogia se impõe. O pedido de manutenção da preventiva por parte do MP é reclamação de caráter permanente, ou seja, persiste enquanto não há manifestação em contrário daquele órgão.

Essa é a revisão de ofício, ou melhor dizendo, o procedimento de revisão de ofício. É a medida que o juiz deve levar a efeito a cada noventa dias.

E se o procedimento não for praticado? Diante da impetração de habeas corpus com fundamento na não reavaliação tempestiva da preventiva: primeiro, a revisão feita após a impetração do habeas corpus não afasta a ilegalidade; e segundo, há, em princípio, ilegalidade da prisão. Em princípio, ressalvou-se. Razões de ordem pública e justificativa fundamentada para a não realização tempestiva podem, eventual e excepcionalmente, afastar a ilegalidade. Outra exegese reduziria a ação de habeas corpus em instrumento de pedido de reexame das condições da preventiva. Risível.

Os atos essenciais previstos na lei processual existem para serem cumpridos. Se violados, deve incidir necessariamente uma sanção. Sem sanções ao descumprimento de atos essenciais, os tribunais, compostos por juízes mais velhos, e presumidamente mais experientes, não podem exercer uma importante função recursal, a pedagógica. No que diz respeito às nulidades processuais, o que não é exatamente o caso (trata-se de nulidade no processo, e não nulidade do processo), quando o tribunal anula o trabalho realizado pelo juiz de primeira instância, há nessa decisão, além de conteúdo sancionador, significação pedagógica e preventiva.

Legislador não é aconselhador. Ele produziu, no exercício de poder legislativo, comando legal destinado ao cumprimento. Legislador, enquanto político, é gestor e detentores de parcela de poder estatal. Não apenas na operação do direito por parte de aplicadores como também nos relacionamentos em geral, quando se invade a autoridade alheia, se perde a própria. O legislador, ao estatuir o parágrafo único do presente dispositivo, foi gestor. Gestor diligente tendo em vista o caos prisional, com indigência de recursos diversos, entre os quais a escassez da assistência judiciária aos menos favorecidos.

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*Flavio Meirelles Medeiros é advogado.

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