Migalhas de Peso

Parece que hoje em dia todos os relacionamentos são abusivos e agressivos!

Quando um relacionamento é realmente abusivo?

23/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A banalização das expressões “relacionamento abusivo e “vítima de agressão” tem um lado positivo e um lado negativo.

Será que porque um relacionamento não é exatamente o que você espera que ele é abusivo.

No mesmo sentido, será que toda agressão intitula um agressor e uma vítima aos olhos jurídicos, psiquiátricos, sociológicos e comportamentais?

Todas as relações humanas são minimamente abusivas e invasivas. Antes que minha posição seja rechaçada, explico.

As relações interpessoais, sejam elas profissionais ou pessoais, buscam satisfazer a interesses pessoais de cada um.

Isso é natural do ser humano, por mais tenhamos a certeza de que fazemos algo pelo outro, na verdade fazemos por nós.

Por que ajudamos o outro? Por que nos relacionamos com o outro? Por que nos doamos para outras pessoas?

Sempre há algo dentro de nós que é preenchido, mesmo no clichê “fazer o bem sem olhar a quem”.

Especialmente no quesito relacionamento, buscamos no outro algo que preencha essa satisfação pessoal, assim como a pessoa com quem nos relacionamos é movida pelo mesmo proposito.

Eis que vivemos uma saciedade psicológica quando encontramos alguém que supre nossas lacunas, e a recíproca é verdadeira. Isso faz com que pessoas vivam juntas, construam famílias, namorem, se casem.

E será que nessa construção de vida em conjunto não existem desavenças?

Todas as vezes que há brigas, que as pessoas se exaltam, que se desentendem e dizem o “que não devia ser dito”, por si só, caracterizam um relacionamento abusivo e violento?

Há muitas pessoas que são mal-educadas, emocionalmente imaturas e que não sabem lidar com confrontos e que passarão uma vida sem saber.

Eventualmente, por escolha ou impossibilidade de cortar os vínculos, convivemos com pessoas com esse perfil. As vezes por existir filhos em comum, outras vezes por existir uma relação profissional, ou outros elos que nos impedem de desvincular completamente da pessoa, mas que a “distância segura” é suficiente para barrar a intervenção negativa dos eventos agressivos.

Quando falamos de um perfil abusivo, a história muda, pois as agressões desajustam intensamente a ecologia do sistema que aquelas pessoas estão inseridas.

Desavenças, ajustes, um toma lá dá cá, brigas, eventuais palavras que são ditas e que fogem do padrão que estabelecemos dentro de nós como limite, são ditas reciprocamente, muitas vezes perdoadas, superadas, mas as agressões são cada vez mais intensas.

O ciclo de agressões psicológicas, físicas ou ambas, se repetem, e mais uma vez vem o perdão, seguido de momentos maravilhosos que parece que nunca mais vai acontecer, a famosa lua de mel, e assim sucessivamente.

Esse desajuste na ecologia é toxico para todos que convivem com a pessoa em situação de violência e o agressor abusador, e aos poucos, as pessoas se afastam, por não compreenderem a gravidade dos eventos, seja ou desinformação, ou por estarem manipulados pelo abusador.

Há uma destruição da rede de apoio da pessoa em situação de violência, e uma barreira é construída entre a vida destes e daqueles.

O afastamento na cabeça da vítima pode ter proposito de evitar mais conflitos, como se o isolamento fosse a solução para conter as agressões. Há também um afastamento pela impossibilidade mental de se desvencilhar daquele relacionamento, pois há, sim, um cárcere afetivo que bloqueia a liberdade.

De fato, as pessoas em geral não estão preparadas para lidar, identificar e agir assertivamente em situações de agressão e abusos. E o despreparo, incompreensão, pré-julgamentos, fazem com que a vítima não reporte sua realidade.

A expressão reportar a realidade, engloba tanto levar os fatos as instancias formais de controle, como polícia, poder judiciário, conselhos tutelares, bem como informais ou círculos pessoais, como amigos, familiares.

As ajudas são pedidas de forma velada por essas pessoas que estão em situação de violência, e na maioria das vezes os sinais são imperceptíveis sem um olhar empático.

Infelizmente, por anos ou por uma vida inteira o ciclo de violência se repete, sem que seja quebrado, fazendo com que muitas pessoas vivam a margem de uma vida digna, aumentando as cifras negras de algo repugnante.

Iniciei o presente texto falando do ponto positivo da banalização das expressões “relacionamento abuso e vítimas de violência”, e nesse momento explico. A permissão para falar sobre o assunto como algo banal consequentemente faz com que consigamos identificar as situações que necessitam de intervenção por oferecerem riscos à vítima, aos filhos e outros familiares envolvidos.

Fechando o raciocínio, quando disse que as pessoas se relacionam para suprir algo dentro de si e que encontra no outro. Os relacionamentos abusivos não são diferentes, e é por isso que as pessoas permanecem tanto tempo em algo que objetivamente analisando, faz mal.

E essa visão é algo imprescindível para um olhar empático e sem pré-julgamentos, que pode ser a chave para que a pessoa que está em situação de violência viva uma epifania e definitivamente quebre o ciclo.

_________

*Martina Catini Trombeta é advogada sócia da Catini Trombeta. Pós-graduada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra/PT, Ius Gentium Conimbrigae e em Direito Previdenciário pela FACAB - Universidade Casa Branca.

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