Migalhas de Peso

Primeiras considerações sobre a arbitragem especial tributária do projeto de lei 4.468/20

O novo PL pretende criar uma arbitragem especial tributária para - no curso da fiscalização e, portanto, antes da formalização do lançamento - prevenir conflitos mediante solução de controvérsias sobre matérias de fato.

21/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Há ambiente institucional favorável à criação da arbitragem tributária no Brasil. Isto foi comprovado, em 2019, pela propositura do projeto de lei 4.257/191, de autoria do senador Antonio Anastasia, que pretende alterar a lei 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais) para, entre outras medidas, autorizar a resolução, via arbitragem tributária, de litígios materializados em embargos à execução fiscal, ação anulatória de ato declarativo da dívida fiscal e ação consignatória (desde que o respectivo débito fiscal seja objeto de depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia)2.

A existência deste ambiente favorável foi confirmada pela recente propositura do projeto de lei 4.468/20, de autoria da senadora Daniella Ribeiro e que teve origem, como mostra sua Justificação, em proposta apresentada por Heleno Taveira Torres, Selma Maria Ferreira Lemes e Priscila Faricelli de Mendonça3.

O novo PL pretende criar uma arbitragem especial tributária para - no curso da fiscalização e, portanto, antes da formalização do lançamento - prevenir conflitos mediante solução de controvérsias sobre matérias de fato4 (art. 1º). Além disto, a arbitragem especial tributária do novo PL tem por objetivo solucionar conflitos anteriormente à constituição do crédito tributário nas hipóteses de “consultas que envolvam questões fáticas e sua qualificação jurídica” (art. 12). E pode servir de meio, ainda, para quantificação de crédito do sujeito passivo da obrigação tributária decorrente de decisão judicial transitada em julgado e não liquidado judicialmente (art. 12)5.

Apesar da Justificação do novo PL afirmar que ele contempla “um procedimento diferenciado daquele previsto na lei 9.307/96, diante da especificidade da medida, assim como em vista dos necessários ajustes em decorrência da particularidade da relação fisco e contribuinte, que foram adaptados para o sucesso do instituto”, a Justificação também explicita que o procedimento arbitral especial entre a administração tributária e o sujeito passivo da obrigação tributária terá lugar nas “(...) câmaras arbitrais institucionais já existentes e atuantes (inclusive em arbitragens envolvendo o poder público).6 E a semelhança entre tal procedimento e aquele previsto na lei 9.307/96 (Lei de Arbitragem – LA) é grande, como evidenciam as disposições (e o próprio nome) do novo PL.

Logo, é de arbitragem que trata o novo PL, ainda que de uma arbitragem um pouco diferente daquela disciplinada pela LA. A essência da mencionada arbitragem especial tributária pode ser resumida do seguinte modo: espera-se que ela “(...) possa prevenir controvérsias tributárias, para evitar questionamentos antes mesmo dos lançamentos tributários e aplicações de multas.”7

Os modelos de arbitragem tributária do PL 4.257/19 e do PL 4.468/20 estão limitados, assim, a hipóteses restritas e distintas. Em ambos os casos, a cautela relacionada à constituição do crédito tributário norteia as suas disposições; porém, em momentos diametralmente opostos: o primeiro e mais antigo envolve litígios que digam respeito a crédito tributário já constituído (isto é, o foco é o momento pós-constituição do crédito tributário), e desde que garantido o juízo; o segundo está voltado à prevenção de controvérsias tributárias, antes da constituição do crédito tributário (ou seja, o momento é de pré-constituição do crédito tributário).

É clara a intenção de testar o instituto da arbitragem na seara tributária e de dar passos mais comedidos para tentar desenvolver, gradualmente, um cenário “multiportas” de solução de disputas tributárias, sem provocar uma forte reação contrária.

Ressalte-se, contudo, que os PLs abrangem situações que não podem ser vistas como excludentes, mas sim como complementares8. Uma arbitragem tributária mais ampla, que conjugasse as disposições dos dois PLs, e até as ampliasse, constituiria algo próximo de um modelo ideal: promoveria maior justiça fiscal e, certamente, impulsionaria o desenvolvimento do instituto de modo mais contundente.

Estas e outras questões sobre os PLs serão, porém, abordadas de forma pormenorizada em futuro artigo dos autores. O que se pretende aqui é indicar alguns pontos importantes do PL 4.468/20 (a saber: momento e limites da arbitragem tributária, matérias arbitráveis e regras de aplicação subsidiária), de modo a chamar a atenção para as iniciativas meritórias nele contidas e, ao mesmo tempo, demonstrar a necessidade de revisitação de alguns de seus dispositivos, tudo com a finalidade de apresentar subsídios à construção de uma arbitragem tributária factível – ainda que não ideal – no país.

Neste sentido, é certamente digna de elogios a preocupação do PL 4.468/20 com a prevenção de controvérsias tributárias. Trata-se de objetivo que está em consonância com a natureza jurídica da própria arbitragem.

Tal natureza jurídica foi – e continua a ser - objeto de grande celeuma doutrinária. Há, em resumo, 4 (quatro) correntes principais sobre o tema: (I) a corrente privatista ou contratualista vê na arbitragem um negócio jurídico contratual mediante o qual as partes se comprometem a aceitar a solução dada à controvérsia pelo árbitro, que disporia de poderes contratuais, e não jurisdicionais; (II) a corrente publicista ou jurisdicionalista revisita e atualiza o conceito de jurisdição e entende que, assim como os juízes estatais, os árbitros exercem jurisdição e sua decisão substitui definitivamente a vontade das partes; (III) a corrente intermediária ou mista concilia as correntes anteriores e assinala que a origem da arbitragem é contratual e, seu conteúdo, jurisdicional; e (IV) a corrente autônoma sustenta que a arbitragem não é contratual, jurisdicional ou mista, mas sim autônoma, desenvolvendo-se com base nas suas próprias regras, sem ligação com o sistema jurídico nacional9.

O entendimento doutrinário que tem prevalecido no Brasil salienta que o árbitro exerce jurisdição. Como diz Fredie Didier Jr. sobre a arbitragem: “é propriamente jurisdição, exercida por particulares, com autorização do Estado e como consequência do exercício do direito fundamental de autorregramento (autonomia privada).10

A releitura e atualização do conceito de jurisdição efetuada pela teoria publicista ou jurisdicionalista mostra que a atividade do árbitro tem natureza jurisdicional, na medida em que “(I) a jurisdição não é mais monopólio estatal; (II) a lei pode legitimamente delegar o exercício da função pública jurisdicional a árbitros quando compatível com a Constituição; (III) a arbitragem detém as mesmas características da jurisdição estatal; (IV) a sentença arbitral adquire a qualidade de coisa julgada; (V) a sentença arbitral produz os mesmos efeitos da sentença judicial; (VI) a sentença arbitral doméstica independe de homologação judicial; e (VII) a decisão arbitral não está sujeita a revisão de fundo pelo Poder Judiciário.”11

Na jurisprudência, a posição é a mesma. A edição 122 (Da Arbitragem) da Jurisprudência em Teses do STJ, composta por acórdãos daquele tribunal publicados até 22/3/19, revela, no tema 9, que é pacífico no STJ o entendimento de que: “A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem possui natureza jurisdicional, o que torna possível a existência de conflito de competência entre os juízos estatal e arbitral, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça - STJ o seu julgamento.”12

A natureza jurisdicional da arbitragem evidencia que o juízo arbitral envolve um processo, no qual há exercício do direito de ação pelo autor (requerente) e exercício do direito de defesa pelo réu (requerido)13. “Tanto quanto o processo estatal”, explicitam Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, “tudo quanto no arbitral se faz visa à oferta de uma tutela jurisdicional ou, por outras palavras, de acesso à justiça. E, por ser um processo e nele se exercer a jurisdição, a arbitragem está sujeita aos superiores ditames do direito processual constitucional, sem cuja observância nenhuma decisão arbitral seria legítima, nem a própria inclusão da arbitragem entre os meios de solução de conflitos.”14

De fato, como mostra Ada Pellegrini Grinover, “a leitura atual do princípio constitucional de acesso à justiça (‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’ – Const., art. 5º, inc. XXXV) é hoje compreensiva da justiça arbitral e da conciliativa, incluídas no amplo quadro da política judiciária e consideradas como espécies de exercício jurisdicional.”15

Esta visão atualizada do princípio constitucional de acesso à justiça foi reiterada pelo art. 3º do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15)16. Se o caput deste dispositivo contém a ratificação do princípio, o § 1º alude expressamente à permissão à arbitragem, na forma da lei. “Isso demonstra”, nas palavras de Paulo Magalhães Nasser, “que a própria lei processual trata a arbitragem como uma alternativa concreta à jurisdição estatal, como método adequado à resolução de certos conflitos, inclusive quando reitera no texto legal o amplo acesso à jurisdição para tutelar ameaça ou lesão a direitos.”17

O art. 3º do CPC/15 reconhece, assim, que o amplo acesso à jurisdição para tutelar ameaça ou lesão a direitos diz respeito não apenas à jurisdição estatal, mas também à jurisdição arbitral. Equiparada a sentença arbitral à sentença judicial (art. 31 da LA), isto significa que, seja na jurisdição estatal, seja na jurisdição arbitral, a tutela da ameaça ou da lesão a direitos pode se dar por meio de sentença meramente declaratória, constitutiva (positiva ou negativa) ou condenatória18.

Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.

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1 O PL 4.257/19 estava, por ocasião da elaboração deste texto, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Aguardava-se a apresentação de relatório pelo Senador Tasso Jereissati (Disponível clicando aqui. Acesso em: 16/10/20).

2 Trata-se de projeto que, em essência, tem por finalidade submeter à arbitragem tributária a discussão de litígios que digam respeito a crédito tributário já constituído, e desde que garantido o juízo. Tal PL já foi objeto de diversos artigos dos autores, produzidos no âmbito do Grupo de Pesquisa “Métodos Alternativos de Resolução de Disputa em Matéria Tributária” do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito SP e publicados na coluna Pauta Fiscal do Jota. Por isto, não será objeto de análise específica neste artigo.

3 Disponível clicando aqui. Acesso em: 16/10/20.

4 A Justificação do PL salienta que: "O espaço da arbitragem, como medida de decisão de conflitos preventiva do lançamento tributário, é de expressivo alcance. Basta pensar naqueles casos que implicam inversão do ônus da prova, por presunções e similares, nas hipóteses de bases de cálculo presumidas ou dependentes de arbitramento, como ‘preço de mercado’, ‘valor venal’, ‘valor da terra nua’, pautas de valores, definição de preços de transferência, qualificações de intangíveis, hipóteses de cabimento de analogia e equidade etc. Deixar para o processo administrativo ou judicial esta tarefa somente prejudica todo o sistema de resolução de conflitos, além de onerar as partes, com expectativas de passivos ou ativos que somente após longos embates chega-se a uma solução, nem sempre adequada." (Disponível clicando aqui. Acesso em: 16/10/20).

5 Nesta última hipótese, pode-se dizer que há arbitramento, e não arbitragem. Por isto, ela não será objeto de maiores comentários neste artigo.

6 Disponível clicando aqui. Acesso em: 16/10/20.

7 Disponível clicando aqui. Acesso em: 16/10/20.

8 OKUMA, Alessandra. A Importância da Arbitragem Tributária. Acesso em: 17/10/20.

9 MEGNA, Bruno Lopes. Arbitragem e Administração Pública: Fundamentos Teóricos e Soluções Práticas. Belo Horizonte: Fórum, 2019. pp. 44 a 48 e FICHTNER, José Antonio, MANNHEIMER, Sergio Nelson e MONTEIRO, André Luiz. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 34 a 45.

10 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. V. 1. 22ª ed. rev., atual. e amp. Salvador: Jus Podivm, 2020. pp. 217/218.

11 FICHTNER, José Antonio, MANNHEIMER, Sergio Nelson e MONTEIRO, André Luiz. Ibidem. p. 47. No mesmo sentido, Paulo Magalhães Nasser aduz que há exercício de jurisdição na arbitragem, uma vez que esta última (I) é incentivada pelo art. 3º, § 1º do Código de Processo Civil de 2015; (II) está sujeita aos princípios constitucionais que regem a resolução de conflitos no Estado Democrático de Direito; (III) tem aptidão para criar título executivo judicial, assim como a sentença judicial; e (IV) está apta a formar coisa julgada material (NASSER, Paulo Magalhães. Vinculações Arbitrais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 24).

12 Disponível clicando aqui. Acesso em: 17/10/20. No ano de 2020, isto foi confirmado, por exemplo, pelo acórdão oriundo do julgamento do REsp 1.735.538/SP, Terceira Turma do STJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 6/10/20. Após transcrever o art. 31 da LA (“A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo.”), o voto vencedor afirma o seguinte: “Sobressai evidente o propósito legislativo de a tudo equiparar, mormente em relação aos efeitos, a sentença arbitral à sentença judicial, o que decorre, naturalmente, do reconhecimento de que a atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem possui a natureza jurisdicional, conforme já reconheceu a 2ª seção do STJ, por reiteradas vezes (ut CC 111.230/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 2ª seção, julgado em 8/5/13, DJe 3/4/14; (CC 146.939/PA, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 2ª seção, julgado em 23/11/16, DJe 30/11/16).

13 Evidentemente, isto não significa que o processo estatal e o processo arbitral devam ser idênticos. No acima referido julgamento do REsp 1.735.538/SP, o voto vencedor do Min. Marco Aurélio Bellizze destacou este ponto: “Não se olvida, tampouco se afastam as vantagens de se traçar um paralelo entre o processo judicial e a arbitragem, notadamente por tratarem efetivamente de ramos do Direito Processual. Desse modo, natural que do processo judicial se extraiam as principais noções e, muitas vezes, elementos seguros para solver relevantes indagações surgidas no âmbito da arbitragem, de forma a conceder às partes tratamento isonômico e a propiciar-lhes o pleno contraditório e a ampla defesa. Por consectário, vislumbra-se, em certa medida, a salutar harmonia dos institutos processuais incidentes no processo judicial com aqueles aplicáveis à arbitragem. Essa circunstância, todavia, não autoriza o intérprete a compreender que a arbitragem – regida por princípios próprios – deva observar necessária e detidamente os regramentos disciplinadores do processo judicial, sob pena de desnaturar esse importante modo de heterocomposição.”

14 DINAMARCO, Cândido Rangel e LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016. pp. 150/151.

15 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a Processualidade: Fundamentos para uma Nova Teoria Geral do Processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018. p. 62. O STF teve grande participação nesta releitura do princípio constitucional de acesso à justiça. Tal tribunal apreciou, e reconheceu, a constitucionalidade da LA – especificamente, sua compatibilidade com o art. 5º, inciso XXXV da CF/88 - no julgamento da Sentença Estrangeira 5.206 (Agravo Regimental), Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12/12/01, DJ 30/4/04. A partir de então, reconhecida a compatibilidade da citada lei com a destacada norma constitucional, isto significou, na visão do STF, uma “(...) feição menos reducionista ao direito fundamental à proteção efetiva do Poder Judiciário.” (MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 435).

16Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.

§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”

17 NASSER, Paulo Magalhães. Ibidem. p. 24.

18 DINAMARCO, Cândido Rangel e LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Ibidem. p. 152.

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*André Luiz Fonseca Fernandes é doutorando em Direito Constitucional pelo IDP – Brasília. Coordenador do Comitê Temático de Transação Tributária e Negócio Jurídico Processual do Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária – IBAT. Sócio de Alcides Jorge Costa Advogados Associados.





 

*Andréa Mascitto é professora da FGV Direito SP. Membro do Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária – IBAT. Sócia da área tributária de Pinheiro Neto Advogados.

 

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