Migalhas de Peso

A importância de verificar-se o Sinalagma Contratual

Em tempos de incerteza, o contrato assume um papel de tentar reconstruir os laços econômicos e estruturais de nossa sociedade e, por isso, o sinalagma contratual merece atenção de todos.

20/10/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

O contrato, em tempos de pandemia, tem sido o instrumento civilista com maior repercussão doutrinária seja quanto a sua conservação, extinção ou modificação. Não existem dúvidas que, em uma visão moderna, o negócio jurídico é o principal vetor para a circulação de riqueza nos diversos países ao redor do globo, tornando-se imprescindível a intervenção jurídica para sua conservação (quando necessário).

Nessa esteira entende-se como contrato, a princípio, um ato jurídico de conceito amplo caracterizado como um instrumento bilateral. Obviamente não pode-se ignorar, a constante evolução do negócio jurídico seja pela forma de negociar das pessoas ou pela constante flexibilização dos direitos e garantias fundamentais.

De forma suscinta, o conceito do contrato passou por uma transformação quanto a sua perspectiva objetiva e subjetiva. Sabe-se, pelo estudo de Enzo Roppo, resumidamente, que o contrato concubina as operações econômicas e ao direito (mais um instituto abraçado pela ciência jurídica). O autor chega à conclusão que conforme evoluímos e aprimoramos nossos entendimentos, a teoria geral dos contratos segue, quase de forma conjugal, ao nosso constante aperfeiçoamento1.

É nesse diapasão que, a objetificação do contrato em tempos romano, de sistema feudal, e de capitalismo, teve diversas formas de protagonismo e, é por isso, que não pode-se ignorar, que em época de pandemia, o instrumento civilista terá um papel fundamental de sustentar os pilares econômicos ,esses já danificados, a favor da sociedade.

Nesse sentido que defendo, junto a parcela doutrinária, que questões meramente subjetivistas não podem fazer com que os princípios contratuais, que norteiam a aplicabilidade do instrumento jurídico se desdobrem para melhor atender, em destaque, a dignidade da pessoa humana e, muito menos, de sobrepor os princípios as regras civilistas. Entre outras palavras, deve-se buscar o melhor enquadramento, a cada caso concreto, da conservação contratual.

Destarte, não é cabível ignorarmos, também, que em certas situações, principalmente no que tange as obrigações de fazer, que a regra do caso fortuito ou força maior (art. 393 do CC) pode ser aplicado.

Nesse sentido, surge, principalmente ao devedor, a opção de buscar-se a resolução do contrato; a revisão (aceito por nossa jurisprudência), ou a impossibilidade de responder pelos prejuízos causados (artigos 478 a 480, do CC, quando presente os requisitos).

Nesse sentido, excepcionalmente fundamenta Simão:

Há hipóteses em que a força maior resulta da pandemia? Há e são relacionadas à prestação de fazer. A empreitada não pode prosseguir pela pandemia. Não se podem reunir os pedreiros e demais funcionários em tempo de quarentena, A prestação de serviços de limpeza para, porque o prefeito de certa cidade decreta quarentena que efetivamente proíbe o cidadão de sair de sua casa2.

Sem delongas, e não discutindo-se a questão da aplicabilidade de caso fortuito ou de força maior, em relação a pandemia, e, muito menos, a evasão para as obrigações de fazer, foca-se, aqui, somente nas questões de prestações pecuniárias. O que pretende-se alcançar, em primeiro plano, é o respeito, principalmente pela atuação estatal ao plano sinalagmático contratual.

O preceito sinalagmático, em outras palavras, significa bilateralidade, são as prestações e contraprestações, é a relação obrigacional entre pessoas determinadas (o contratante/consumidor e o vendedor). Hironaka, de forma complementar, bem expõe:

A relação obrigacional é uma relação jurídica que existe sempre entre pessoas determinadas (duas ou mais), da qual pelo menos uma é devedora e a outra credora. Há na relação uma prestação delimitada. Outros deveres de conduta – que estão delimitados e são, de certo modo, secundários – também podem ser exigidos. O dever primário e decisivo, que dá conteúdo e significado à relação obrigacional e determina o caráter típico da mesma é a prestação determinada. A obrigação está dirigida a esta prestação determinada ao devedor, ou à prestação de ambas as partes, o que corresponde, neste caso, ao próprio sinalagma. Quando a prestação é cumprida, ter-se-á alcançado a finalidade da obrigação, restando esta, geralmente, extinta.3

A análise a ser feita pelo judiciário cabe a cada caso concreto, pois a depender da ocasião a imprevisibilidade da pandemia pode apenas ter tornado mais custosa ao devedor a prestação até então pactuada, o que a meu ver, não configura os institutos presentes nos artigos 317 e 478 a 480, ambos do Código Civil, pois não houve nenhuma alteração na base objetiva do negócio jurídico.

Conforme sábias palavras de Pontes de Miranda, citado por Simão:

Base do negócio jurídico é o elemento circunstancial ou estado geral de coisas cuja existência ou subsistência é essencial a que o contrato subsista, salvo onde o acordo dos figurantes restringiu a relevância do elemento ou estado geral de coisas. Deixa de subsistir a base do negócio jurídico: a) se, tratando-se de negócio jurídico bilateral, deixar de haver contraprestação (se deixa de haver prestação, há o inadimplemento – a resolução); b) se não se pode obter a finalidade objetiva do negócio jurídico, ainda que possível a prestação, entendendo-se que a finalidade de um dos figurantes que o outro admitiu é objetiva4.

É, nesse sentido, que o Código Civil e o Código do Consumidor, em nenhum momento, se posicionam a favor do subjetivismo e, muito menos, de sobrepor a dignidade da pessoa humana e seus corolários a base objetiva dos negócios, a não ser em situações de ilicitude na formação contratual (art. 104, CC) e imorais, o que ensejam a aplicação dos artigos (artigos 317, 478 a 480, ambos do CC e, artigo 6 do CDC).

Em contramão, o que existe, na verdade, é uma suposta inferioridade das regras civilistas aos princípios e garantias fundamentais que foram repatriadas, em razão da pirâmide normativa de Kelsen, as nossas leis. Portanto, o que deve ocorrer é uma relação circular / complementar entre as regras e princípios, sem sobrepor, em nenhum momento, uma sobre a outra.

Assim, quando a regra não for suficiente para o caso concreto convoca-se o princípio para sanar (complementar) a lacuna faltante para melhor engajamento da situação e, vice-versa. Consequentemente, em situações em que os infinitos princípios abrem um leque de opções, é dever das regras filtrá-los para alcançar, o princípio, que melhor se encaixe ao caso concreto, assim ocorrendo a relação circular defendida por Marcelo Neves.

Contudo, em nenhum momento, exige-se da jurisprudência, principalmente no que tange as prestações pecuniárias plausíveis de cumprimento, em tempos de pandemia, que princípios sejam suscitados para complementar uma regra completa (não existem dúvidas quanto sua aplicação aos casos concretos, não necessitando de complementação) por questões meramente subjetivas, na verdade, o próprio judiciário, nessas situações, cria uma lacuna inexistente para a possibilidade de invocação dos princípios (da boa-fé objetiva, da função social, do equilíbrio econômico, da conservação contratual e etc) visando atingir um mesmo fim, a dignidade da pessoa humana. 

De outro modo, apesar do cumprimento da obrigação pecuniária e, por sua extinção, a relação jurídica dos polos da relação contratual permanece durante o tempo, isso devido a aplicação do princípio da boa – fé objetiva e sua função integrativa, ou seja, os deveres acessórios devem ser cumpridos e, isso reflete em um vínculo permanente entre o contratante e o contratado.

Os deveres acessórios, ou laterais, nasceram de uma acepção objetiva que resultou nos chamados standards jurídicos frutos da observância doutrinária quanto ao BGB, e que acabou sendo repatriado ao nosso ordenamento como regra de comportamento. É um instituto jurídico indicativo de (i) uma estrutura normativa dotada de prestatividade; (ii) um cânone de interpretação dos contratos e (iii) um standard comportamental, como bem leciona Judith Martins5.

Nessa vertente que no plano sinalagmático contratual, os contratantes se alternam entre credor e devedor, devido a troca de direitos e garantias obrigacionais. É, nesse sentido, que Hironaka cita Orlando Gomes:

Orlando Gomes, a respeito desta complexidade obrigacional e sua conjugação sinalagmática menciona que nas relações obrigacionais mais simples, os dois contratantes se contrapõem, cada qual em uma das posições, mas predominando, todavia, as relações mais complexas, nas quais cada partícipe contratual ocupa, ao mesmo tempo, a posição jurídica ativa e passiva, porque, ao mesmo tempo lhe tocam direitos e obrigações que, inversamente, correspondem também ao outro partícipe6.

Nesse campo da prestação e da contraprestação, a cada caso, que cabe a averiguação do Estado Juiz, pois se as questões subjetivas forem abusivamente suscitadas e aceitas por nossa jurisprudência, poderá o devedor, a qualquer custo, modificar a base (objetiva) do negócio jurídico de relação simétrica (existe uma concordância quanto as cláusulas contratuais) ocasionando na quebra do ordenamento jurídico e, na inconsistência jurídica. Por mais, abre-se um leque para o oportunismo, ou seja, como a utilização da assimetria informacional de forma auto interessada e maliciosa7.

___________

1- ROPPO, Enzo. O Contrato. 2.Ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 22.

2- FERNANDO SIMÃO, José. Impactos da Covid-19 no Direito Imobiliário. Porto Alegre: Paixão, Ibradim, 2020, p. 196.

3- HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A chamada causa dos contratos: relações contratuais de fato. Revista de Direito do Consumidor: vol. 93, Mai – Jun / 2014, p. 210.

4- FERNANDO SIMÃO, José. Impactos da Covid-19 no Direito Imobiliário. Porto Alegre: Paixão, Ibradim, 2020, p.198.

5- MARTINS – COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Saraiva, 2.ed., p. 42, 2018.

6- GOMES, Orlando. Direito das obrigações. 11. ed. rev. e atual. por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 13

7- KLEIN, Vinicius; DANNA, Luciani. Oportunismo contratual em Tempos de Covid-19. Acesso em: 08.08.2020

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*Gabriel Bezerra Lins da Silva é bacharel no Curso de Direito na Universidade Católica de Pernambuco. Pós Graduando em Direito Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro do Grupo de Pesquisa Logos: Processo, Linguagem e Tecnologia do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD-Unicap-CNPq). Membro Colaborador da Comissão de Direito imobiliário da OAB/PE. Associado do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Prestador de Serviços ao Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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